https://revista.unitins.br/index.php/humanidadeseinovacao/article/view/9113
A importância do trabalho e seu impacto no psiquismo
Em uma de suas últimas entrevistas, ao ser perguntado sobre o que seria recomendável para preservar a saúde mental, Freud respondeu que além da pessoa ter uma vida emocional e sexual satisfatória, também deveria desempenhar um trabalho com o qual se identificasse, já indicando a importância do trabalho no funcionamento psíquico da pessoa.
O trabalho ocupa posição central na vida do ser humano, e desempenha várias funções: além da sobrevivência, a inclusão social , a constituição identitária e psíquica e a manutenção da saúde mental. O trabalho possui dimensões, como a divisão técnica, social e hierárquica, que influenciam a subjetividade e causam impacto na saúde dos trabalhadores.
A Psicodinâmica do Trabalho, fundada por Christophe Dejours, possui como foco a relação entre trabalho e saúde mental. Nessa abordagem nenhum trabalho é neutro no que se refere à saúde do trabalhador. Dejours afirma que ela “ se ocupa da análise das relações entre o trabalho e a saúde mental dos trabalhadores, considerando o trabalho como uma atividade social e psicológica que envolve as relações interpessoais, as condições de produção e as estratégias de defesa dos trabalhadores. (Dejours, 1992, p.11).Essa abordagem também se propõe a compreender a subjetividade do indivíduo e como sua relação com a organização afetam a saúde mental e qualidade de vida no trabalho. Analisa as práticas de gestão e políticas organizacionais para compreender situações que podem contribuir para a promoção ou adoecimento do trabalhador. E para isso, utiliza duas categorias de análise: a organização do trabalho, que considera as condições de trabalho e as relações de trabalho e a mobilização subjetiva do trabalhador, que considera as vivências de prazer-sofrimento , as estratégias defensivas e as patologias(Machado e Macêdo, 2022).
A organização do trabalho é entendida como sendo a divisão do conteúdo da tarefa, o sistema hierárquico, as modalidades de comando, as relações de poder, as questões de responsabilidade. De uma maneira mais ampla, a organização do trabalho é a forma como, por um lado, as tarefas são definidas, divididas e distribuídas entre os trabalhadores; por outro, a forma como são concebidas as prescrições, e, a forma como se operam a fiscalização, o controle, a ordem, a direção e a hierarquia. (Dejours, 1992, p.53)
A mobilização subjetiva do trabalho se caracteriza por um permanente processo de relação entre sofrimento e prazer, passível de gerar estratégias defensivas a fim de que o indivíduo lide com sua subjetividade no contexto da realidade objetiva do trabalho (Fleury & Macêdo, 2015). Segundo Dejours (1992), na abordagem psicodinâmica, as vivências de prazer e sofrimento funcionam como indicadores de saúde.
As vivências de prazer estão relacionadas à maior liberdade e autonomia, que tornam possível o engajamento do sujeito no trabalho, de forma a desafiá-lo em aplicar sua inteligência, garantindo-lhe toda sorte de satisfação pulsional (psíquica, visceral e motora). O prazer no trabalho pode ser tomado como uma vivência individual proveniente da satisfação dos desejos e necessidades do corpo-mente. A relação entre as vivências de prazer-sofrimento indica um caráter dialético , ambivalente e complementar, sendo que a partir dela que o sujeito busca dar sentido ao seu trabalho. O sofrimento pode ser criativo, quando o trabalho permite ao trabalhador transformar o sofrimento em ajustes na organização do trabalho, gerando prazer; pode também ser patológico, que ocorre quando falham todas as estratégias para lidar com o sofrimento, podendo levar a patologias). Se exposto a vivências de sofrimento, o indivíduo utiliza estratégias de defesa para lidar com esse contexto, que podem ser individuais, como a negação e a racionalização , ou coletivas, quando envolvem o grupo de trabalhadores (Macêdo, 2015).
A precarização das relações de trabalho
A partir da segunda metade do século XX, a economia brasileira começou a passar por adaptações para acompanhar as mudanças do mercado global, o que influenciou na flexibilidade das jornadas e regimes de trabalho, assim como na desregulamentação da legislação que garante os direitos trabalhistas (CLT). A população de baixa renda foi a que mais sofreu com essas mudanças, uma vez que ela carece de mecanismos para se inserir nos processos formais do capitalismo (Costa, 2005).
A precarização é um processo multidimensional que altera a vida dentro e fora do trabalho, se caracterizando por indicadores no contexto social. Relatórios da OIT (2018, 2019) que analisam os mercados de trabalho indicam uma desaceleração econômica e ampla variação dos indicadores. Há geração insuficiente de postos de trabalho, mesmo com crescimento da população economicamente ativa (PEA); aumento do desemprego e informalidade; expansão dos empregos temporários e sem contrato, trabalhadores sem acesso à seguridade social; flexibilização das condições para a rescisão dos contratos de trabalho; redução das indenizações por demissão; imposição de limites ao direito de greve; e deterioração dos rendimentos do trabalho num significativo número de países.
Nas organizações a precarização se baseia em vínculos de trabalho com perdas de direitos trabalhistas; precarização da saúde dos trabalhadores; fragilização identitária; falta de reconhecimento social e do processo das identidades e fragilização dos agentes sociais. (Franco, Druck and Seligmann-Silva,2010). A Uberização se constitui como uma forma de precarização que tem se ampliado mundialmente.
O termo uberização começou a ser amplamente utilizado a partir da intensificação do uso da plataforma digital Uber, porém é um processo que foi iniciado há muitos anos e se estende a muitas profissões. A uberização é considerada a amplificação do processo de informalização do trabalho, promovendo mudanças qualitativas na conceituação desse modelo de trabalho, e resulta em uma nova forma de controle, gerenciamento e organização do trabalho. Nessa perspectiva, juntamente com o processo de terceirização do trabalho, ela pressupõe a flexibilização das relações de trabalho, o que implica na potencialização da exploração do trabalho por meio da legitimação da transferência de custos e riscos para os trabalhadores (Franco e Ferraz, 2019Luvisa e Moraes, 2020; Abílio, 2020a).
Slee (2017) comenta que a Uber surgiu nos Estados Unidos da América (EUA), na cidade de São Francisco, em 2008. A ideia por trás da Uber parece ser bem simples: nas cidades, há pessoas que têm tempo disponível para trabalhar como motorista freelance (seja porque estão desempregadas, seja porque querem complementar sua renda para além da ocupação principal) e há passageiros em potencial. Quem precisa se deslocar pela cidade analisa as opções disponíveis. Escolhendo o serviço da Uber, com poucos toques no smartphone o motorista surge e deixa o solicitante no destino ordenado. O pagamento é abatido no cartão de crédito cadastrado pelo cliente e o motorista recebe o valor já com o desconto percentual do Uber. Com esse “simples” modelo de negócio a Uber já alcançava, em 2017, um valor de mercado de 70 bilhões de dólares.
Derivado do fenômeno social que tomou visibilidade com a entrada da empresa Uber no mercado, o termo Uberização se refere a processos que não se restringem a essa empresa nem se iniciam com ela, e que culminam em uma nova forma de controle, gerenciamento e organização do trabalho. A Uberização refere-se às regulações estatais e ao papel ativo do Estado na eliminação de direitos, de mediações e controles publicamente constituídos; resulta da flexibilização do trabalho, aqui compreendida como essa eliminação de freios legais à exploração do trabalho, que envolve a legitimação, legalização e banalização da transferência de custos e riscos ao trabalhador.
Para Howe (2008), a Uberização é um termo embasado em diferentes definições que se referem ao trabalho por plataforma, à gig economy. Segundo ele, quando o jornalista Jeff Howe propôs o termo em 2008, deixou evidente que as terceirizações teriam alcançado ao estágio da transferência de trabalho, custos e responsabilidades, que antes eram responsabilidade das empresas, para os trabalhadores, utilizando sistemas em redes de subcontratação. Atualmente, essa transferência de trabalho está explícita em diversas plataformas digitais que contam com a adesão da multidão de usuários, sendo de dois tipos: de um lado, os usuários trabalhadores e de outro os usuários-consumidores. Desse modo, as empresas se apresentam enquanto mediadoras, quando, em realidade, operam novas formas de subordinação e controle do trabalho, o que possibilita o gerenciamento algorítmico do trabalho, onde softwares substituem a função de gestão de pessoas, antes desempenhada por gestores humanos.
O crowdsourcing permitiu a transformação do trabalho formal em trabalho precarizado, aliado às novas formas de controle automatizadas possibilitou o gerenciamento algorítmico do trabalho. Houve a construção de um discurso ideologicamente comprometido com a ideia de camuflar a exploração e precarização, com o uso inadequado do termo empreendedor para o trabalhador uberizado, propondo-se seu deslocamento para a definição de auto gerente subordinado.
A Uberização é uma tendência global de transformação do trabalhador em trabalhador autônomo, e resulta de regulações do Estado. Definida como uma nova forma de organização, as empresas designam sua atividade principal como mediadoras que detêm meios tecnológicos para a promoção e organização do encontro entre oferta e procura de diferentes atividades econômicas, se baseia na eliminação de direitos, na dispersão centralizada de cadeias produtivas e no desenvolvimento tecnológico. Introduziu o gerenciamento algorítmico, que possibilitou a extração, processamento e administração de dados de uma multidão de trabalhadores, de forma centralizada e monopolizada. Gera trabalhadores desprotegidos socialmente, que arcam com riscos e custos de sua atividade, vivem na incerteza sobre sua própria remuneração e carga de trabalho e estão subordinados a novas lógicas de empresas que têm alto poder de monopolização e centralização .
O modelo de trabalho crowdwork se caracteriza pela proposta de servir de ponte entre prestadores de serviço e usuários/clientes, ou seja, as plataformas digitais constroem o espaço para envolver a oferta e demanda, não sendo delimitado um espaço físico para a execução do trabalho. Ademais, o trabalhador Just-in-time é aquele remunerado apenas pelo serviço prestado, desconsiderando o tempo que fica disponível ao trabalho, mas não produz . A expansão do grupo de trabalhadores Just-in-time complexifica o processo de flexibilização do trabalho pois transfere riscos, custos e responsabilidades para o trabalhador, mas a organização do trabalho e o Estado se isentam de qualquer suporte (Franco e Ferraz, 2019Luvisa e Moraes, 2020; Abílio, 2020a).
Apesar de adotar um discurso de “parceria” e “empreendedorismo”, as práticas de seleção e contratação de trabalhadores que aderem às plataformas que sinaliza uma relação precarizada das relações de trabalho, que inclui um autogerenciamento subordinado, o qual “deixa mais evidente que o que está em jogo é a terceirização de parte do gerenciamento do trabalho para o próprio trabalhador” (Abílio, 2019, p.49). Esse mecanismo utilizado pelas organizações dos aplicativos também contribui para a exploração e adoecimento do trabalhador.
A organização do trabalho das plataformas digitais utiliza como sistema de gestão o gerenciamento algorítmico que intensifica a flexibilização do trabalho devido à ausência de regras pré-estabelecidas. Todavia, de modo análogo, a plataforma administra a distribuição do trabalho, a extensão das jornadas e determina o valor repassado aos trabalhadores, estabelecendo uma nova forma de subordinação. Além disso, o gerenciamento via algoritmo é capaz de fiscalizar e analisar dados, substituindo decisões que antes eram realizadas por gestores humanos visando traçar procedimentos e ajustes (Abílio, 2020a).
Trabalhadores precarizados se caracterizam pela sua instabilidade. Sua presença no mundo do trabalho e da Uberização é intensificada com as crises econômicas mundiais, como a causada pela Pandemia da COVID-19, a Reforma Trabalhista e Previdenciária Brasileira, conforme Batista, 2021; Castro, 2021; Standing, 2014; Uchôa-de-Oliveira, 2020.
No cenário da uberização, o trabalhador ao se deparar com as prescrições do mercado de trabalho, utiliza sua própria inteligência e criatividade para se inserir nele, mesmo tendo que desistir de ter um contrato de trabalho seguindo as normas da CLT. Para sobreviver, liga-se aos aplicativos uberizados e adere ao seu discurso de liberdade e autonomia (Jardim, 2021). Todavia o fato de não assinar um contrato de trabalho formal ou não ser obrigado a cumprir determinada carga horária por dia não significa autonomia para os trabalhadores, nem garante vivências de prazer (Lourenço, 2022).
No Brasil, a Nova Legislação Trabalhista aprovada em 2017 e a medida provisória MP 905/2019 contribuíram para a expansão da precarização das relações de trabalho, ao regulamentar práticas de espoliação de direitos do trabalhador. Dados recentes do IBGE/PNAD- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Pesquisa Nacional por Amostra de domicílios contínua (2019,2020) indicam que 44% das pessoas ocupadas encontra-se na informalidade, 26% trabalhando por conta própria e 8% subocupados. Dados indicam que 3,8 milhões de brasileiros tinham no trabalho por aplicativo sua principal fonte de renda. Aproximadamente 17 milhões de pessoas obtêm regularmente algum rendimento por meio do trabalho por aplicativo no Brasil.
Coutinho e Ferreira (2021) expõe que no primeiro trimestre de 2020 apenas 28% dos trabalhadores domésticos exerciam suas atividades com carteira assinada segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (PNAD Contínua). O autor destaca durante a pandemia do COVID-19 colaborou para o aumento do desemprego, vulnerabilidade e precarização do trabalhador doméstico. Dados do IPEA (2019), demonstram que devido à crise econômica famílias optaram pela contratação de diaristas em vez de contratação de empregadas com carteira assinada, assim em 2018 as diaristas já se encontravam num total de 2,5 milhões de mulheres, ou seja, 44% dentro desta categoria.
O objetivo do estudo foi analisar o impacto do trabalho uberizado na subjetividade do trabalhador.
Método
Trata-se de um estudo de caso que teve o caráter descritivo e exploratório. Foram realizadas 30 entrevistas com trabalhadores uberizados, utilizou-se a análise clínica do trabalho embasada na Psicodinâmica do Trabalho.[1]
Participaram da pesquisa trinta trabalhadores que prestavam serviços para plataformas/organizações de aplicativos. Destes, dez atuavam como entregadores de alimentos, dez atuavam como motoristas de aplicativos e dez atuavam como faxineiras. A maioria (90%) era do sexo masculino; a idade variou de 20 a 46 anos, com idade média de 22 anos. Em relação ao estado civil, houve uma predominância (76%) de solteiros, sendo 19% casados e 5% em união estável. Em relação à escolaridade, houve diferenciação, pois no grupo de motoristas de aplicativos houve prevalência de trabalhadores com ensino médio completo e superior (68%), enquanto no grupo de entregadores de alimentos e faxineiras a predominância foi de ensino fundamental incompleto (62%). Todos participaram voluntariamente da pesquisa e assinaram o TCLE.
Resultados e discussão
Os resultados serão apresentados considerando as seguintes categorias de análise: a precarização das relações de trabalho expressas na organização do trabalho, abordando as condições e relações de trabalho, sinalizadas pelo tipo de contrato, uso de máquinas e equipamentos, avaliação por algoritmos e a mobilização subjetiva dos trabalhadores em relação ao seu trabalho com aplicativos, indicando suas vivências de prazer-sofrimento e as estratégias de enfrentamento.
Os dados do presente estudo demonstram que a organização do trabalho no modelo uberizado adota um discurso ideológico de “parceria” para atrair os sujeitos que desejam maior rendimento monetário e flexibilidade de horários. Frente ao desemprego causado pela falta de qualificação profissional e/ou pela crise sanitária mundial da COVID-19, os indivíduos aderem ao discurso propagado e se ligam às plataformas de aplicativo.[2] Esse fator é exemplificado pelo fragmento :“Veio a pandemia, eles me mandaram embora e eu fui pro aplicativo.” (E5)
Ao descrever o trabalho atual, o termo autônomo esteve presente no discurso de todos, mas somente de um motorista de aplicativo ele foi acompanhado pelo termo empresário autônomo. Na descrição da trajetória profissional, percebeu-se que no grupo dos motoristas havia uma predominância daqueles que já haviam trabalhado anteriormente, mas que optaram por essa atividade visando enfrentar o desemprego e pouca oferta de trabalho, principalmente após o início da pandemia. Dentre os motivos declarados para a decisão de trabalhar com os aplicativos, tanto no grupo dos motoristas quanto no dos entregadores de alimentos e das faxineiras emergiu do discurso como primeiro fator ter ficado desempregado 40%, sugestão de familiares e amigos 20%, falência de negócio próprio 20%, além dos que responderam que era a primeira experiência profissional movida pela necessidade de uma renda, principalmente no grupo de entregadores e faxineiras . O trecho do discurso de um participante ilustra: “Comecei por causa da falta de vagas no mercado de trabalho.”(E5).
Esse dado indica que o fator da situação econômica do país cria condições para a expansão da Uberização, uma vez que há o aumento do desemprego, que se constitui como um dos fatores que levam os trabalhadores a se submeter a essa forma de trabalho, até para quem já foi empresário e sofreu uma falência.
A precarização das relações de trabalho se expressa na organização do trabalho e engloba os aspectos ligados às condições de trabalho e as relações socioprofissionais. Em relação às condições de trabalho, foram levantados dados relacionados ao tipo de contrato de trabalho, carga horária e jornada laboral, a importância da tecnologia, Das máquinas e equipamentos e os riscos ocupacionais.
Ao serem perguntados sobre a forma de contratação e treinamento, todos os participantes dos três grupos responderam que não há contrato de trabalho, pois são autônomos. Enviam os dados de cadastro, que são avaliados, baixam o aplicativo e começam a trabalhar. Há um monitoramento da entrega e avaliação dos serviços, e o aplicativo retém uma porcentagem do faturamento do trabalhador.
Todos afirmaram que não receberam nenhum treinamento, e dois entregadores comentaram que quando configuravam o aplicativo de entrega, havia uma breve descrição dos procedimentos, que foram enviados digitalmente. A precarização das relações de trabalho estava presente na falta de contrato formal de trabalho, onde apenas foi necessário aceitar os termos do aplicativo; a falta de treinamento, em que todos os motoristas relataram não receber nenhum treinamento da plataforma além da falta de equipamentos adequados. Isso está ilustrado no trecho de discurso do participante:
“Quando a gente entra no aplicativo, não tem nenhum vínculo trabalhista né? Nenhum, nenhum. Só que eu tenho que seguir algumas normas do aplicativo, como não cancelar em excesso, não recusar em excesso, é feito uma avaliação do passageiro ao final de cada corrida, essa avaliação minha tem um patamar mínimo que ela não pode chegar nele, então eu tenho que sempre procurar estar prestando um bom serviço para ser bem avaliado e continuar entre aspas empregado no aplicativo. Uai a vantagem é que eu trabalho a hora que eu quero, desligo a hora que eu quero, paro na hora que eu quero e a desvantagem é que você não tem nenhum vínculo empregatício, não tem o acerto, não tem o FGTS, não têm a garantia de nada, essa é a desvantagem.”(M9):
O termo cunhado por De Stefano (1998), ‘work on demand’, contribui para a presente análise. Como demonstram os entrevistados, ao iniciar sua jornada de trabalho, eles não têm qualquer garantia sobre quanto de trabalho/remuneração terá recebido até o final do dia, entretanto está todo o tempo disponível ao trabalho; ou seja, opera aí uma mudança na distinção entre o que é e o que não é tempo de trabalho. O fato de o trabalhador não ser mais contratado e sim um “parceiro” carrega nesse termo uma ideologia de alienação, solicitando uma adesão e submissão à situação de trabalho precarizado. O trabalhador uberizado encontra-se inteiramente desprovido de garantias, direitos ou segurança associados ao trabalho; arca com riscos e custos de sua atividade; está disponível ao trabalho e é recrutado e remunerado sob novas lógicas, segundo Abilio (2020), e Belém, Macêdo e Santos (2022).
A jornada de trabalho é flexível, não tem horário nem local fixo, e depende do prestador de serviços sua gestão. Dependendo do horário há maior demanda, os valores são diferenciados como forma de premiar os prestadores para haver uma maior disponibilidade para aceitar as chamadas dos clientes. Ao serem perguntados quantas horas trabalhavam por dia, no grupo dos motoristas há uma média diária de 9 horas e meia, e no grupo de entregadores, a média diária foi de 9 horas, já as faxineiras depende do número de faxinas realizadas em um dia e da duração de cada uma, variando de 8 a 12 horas.
No grupo dos entregadores, os dados indicam que a jornada de trabalho é extensa, sendo que 90% deles realizam o cálculo da quantidade de horas trabalhadas por dia, mas não mencionam a carga horária semanal. Apenas um trabalhador não relatou a média por dia, apontando ter horário variável. Portanto, a média diária, daqueles que fizeram o cálculo, é 10 horas, com frequência variável de 6 a 12 horas por dia. Segundo relatos, 70% iniciam a jornada do dia às 11:00. O fim da jornada é bastante variável, 50% fazem uma pausa durante o dia, retorna e trabalha até a madrugada. Além disso, 60% alegaram não possuir descanso semanal. Essas condições laborais são expostas pelos entregadores nas narrativas abaixo.
No grupo das faxineiras, segundos os relatos, a maioria ficam à disposição da plataforma pelo menos duas vezes por semana, com turnos variando de quatro a oito horas, matutino e vespertino. A média são de oito a doze horas diárias, sendo que não recebem almoço e o vale transporte já está incluso no valor da diária, que representa 39% do valor pago pelo cliente. A média de recebimentos não chega nem ao valor corresponde ao salário-mínimo vigente à época da coleta de dados. Dois trechos ilustram : “É média de doze horas por dia, sem intervalo de almoço.”(F6)
“Uai, eles colocam assim, manda um dia antes o negócio falando no aplicativo o horário das oito horas por dia, aí eles colocam assim de oito horas , entra oito horas de serviço e aí no final ele não coloca mas, se você não tirar a hora do almoço das oito as quatro ou se tirar minutos você desconta, aí coloca lá, o… pra onde você tem que ir, aí eles escreve assim no… negócio embaixo, não oferece almoço.”(F8)
Como o rendimento líquido resulta exatamente dessa maior disponibilidade para atender aos chamados, esses prestadores de serviço devem ampliar a jornada laboral. A média de rendimento líquido variou entre os grupos, sendo quase equivalente ao valor do salário-mínimo vigente à época da coleta de dados. Há que se ressaltar que esses prestadores de serviço estavam alijados de todo e qualquer acesso a direitos trabalhistas, previdenciários, inclusive para o caso de acidentes laborais, muito frequentes.
“No caso, só as taxas, moça, o resto não mudaria nada não. As taxas são muito baixas, as taxas são as mesmas de cinco anos atrás, se você for olhar a cinco anos atrás, a taxa mínima era quatro e cinquenta, hoje em dia, é quatro e noventa, não mudou nada, cinco anos se passou.” (M7).
Esse fator gera uma sobrecarga de trabalho, levando o motorista a ter que realizar jornadas excessivas, com uma variação de 8 a 16 horas por dia, sendo que 80% dos motoristas entrevistados relataram que têm sobrecarga de trabalho.
Esses pontos contradizem com o Trabalho Decente da OIT (ONU, 1999), que tem finalidade de promover oportunidades de trabalho, de qualidade, em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humana; aspectos esses que não são priorizados no trabalho uberizado, conforme Santos, Macêdo e Belém (2022). O que pode ser observado diante da fala do participante “cansativa, estressante, não é fácil não”(M9). Outro ponto frisado pelos participantes foram os riscos diante da pouca informação a respeito dos passageiros, e como essa preocupação causa tensão no trabalho, o que fica evidente nas falas dos participantes “Regular, por causa de um certo perigo que a gente enfrenta, sabe. É porque a gente não sabe quem realmente tá levando né, então tem uma certa insegurança” (M3): “Porque não tem segurança né!”; (M6).
O fato de a jornada de trabalho não ser previamente fixada não retira, assim, do capitalista o papel de comprador de força de trabalho, nem do trabalhador o papel de vendedor de força de trabalho, pois o que se altera é a necessidade de capital adiantado pelo capitalista, sendo repassado para os trabalhadores prestadores de serviço o investimento inicial para prover as condições para execução da tarefa ou trabalho, de acordo com Signes (2017).
A tecnologia se configura como o suporte de toda a atividade desse trabalho por aplicativos, tanto no planejamento e gestão do negócio, que utiliza vários algoritmos, quanto para os prestadores de serviço. É a partir das máquinas e equipamentos, acoplados à internet que se torna possível o cadastro para prestar serviço, a avaliação por parte da organização das fichas cadastradas, o levantamento de dados como antecedentes criminais, o envio do aplicativo para configuração, o monitoramento de toda a atividade, desde a solicitação do serviço, aceite, tempo e avaliação da prestação do serviço recebimento do pagamento e repasse ao trabalhador.
No processo de trabalho sob os moldes da Uberização, os elementos físicos do custo de produção necessário para desenvolver a atividade produtiva são transferidos/terceirizados para os próprios trabalhadores motoristas – sendo, portanto, parte do valor de reprodução da sua força de trabalho necessários à execução do trabalho de transporte de passageiros, de modo a tornar sua força de trabalho vendável. Esses equipamentos, portanto, em vez de capital constante do capitalista para a execução da atividade de transporte, tornam-se os instrumentos necessários para que o trabalhador possa continuar mantendo-se.
Todos os participantes declararam que dependem da tecnologia para o desenvolvimento de seu trabalho. Em relação aos veículos utilizados para transporte, dentre os motoristas 66% trabalhavam em veículos próprios e 44% alugavam. Esse fator impactava no resultado da atividade, pois quando o veículo é próprio, o custo com manutenção gira em torno de 40% do faturamento, e quando é alugado há um seguro que cobre esse custo, porém diminui o rendimento líquido. Todos os entregadores de alimentos por aplicativo trabalhavam em motos próprias ou da família, e consideram para cálculos 20% do faturamento para despesas com manutenção deles.
No que se refere à estrutura física do trabalho e os recursos utilizados pelos trabalhadores para executar a atividade, os principais equipamentos apontados são o celular e GPS, sendo que nenhum é fornecido pela plataforma do aplicativo, e que eles têm que se responsabilizar pela aquisição e manutenção. Esses aspectos são ilustrados nos trechos de discurso abaixo. “Só uso capacete mesmo, a botina, calça né, a moto, aí no dia que tá no sol […] uso GPS […] A maquininha de cobrança eles tirou agora de nois.” (E2); “Eu gostei da tecnologia. Só que tem hora que ela tem umas falhas também […] tem horas que ela tá boa pra gente, tem hora que tá ruim pra gente.” (E4)
No grupo das faxineiras, ao serem perguntadas sobre o suporte que recebem, todas disseram que no valor da diária já está incluído o vale transporte, e que os EPIs, e alimentação ficam a cargo delas, e os materiais de limpeza do cliente, ilustrando a precarização nas condições de trabalho, como demonstrado na fala: “Não, sai tudo do bolso da gente.” (F10).
A Uberização conta com um gerenciamento dos trabalhadores “parceiros” por meio de tecnologias. Eles são subordinados e controlados por meio das programações algorítmicas, que extraem, manipulam, monitoram e processam dados, inserindo novas formas de gerenciamento, controle e vigilância do trabalho. Utilizando a proposta do crowdsourcing, as empresas designam sua atividade principal como mediadoras entre o trabalhador e os clientes em potencial. O trabalhador deve estar disponível, mas não tem qualquer possibilidade de negociação ou influência na determinação da distribuição de seu próprio trabalho nem sobre o valor dele, isso o transforma em um ‘trabalhador just-in-time’, à serviço da plataforma, totalmente destituído de sua autonomia e seus direitos. É quase como se tornasse mais uma peça na engrenagem da máquina, refletindo assim um retrocesso nas conquistas de direitos trabalhistas (Abilio,2019; Howe,2008 e Castel,1998).
Na verdade, tudo que nos é vendido como atrativo, liberdade de horário. Bom, isso aí é propaganda. Vamos à realidade. A realidade é, primeiro, uma jornada que foge um pouca da regra porque no Brasil o normal é a gente trabalhar 8 horas, então a gente já está trabalhando 50% a mais. Segundo, é a questão da liberdade, você não trabalha apenas no dia e na hora que você quiser. Porque historicamente já existe um cálculo de faturamento por hora, tempo médio, o ruim e o bom. Então não tem como você fugir, se eu trabalho com uma meta X, eu vou ter que fazer aquela quantidade, se não fizer eu não vou conseguir. E manter a nota de avaliação alta porque é muito importante na questão da frequência, da quantidade de corridas que vai ser direcionada para mim via algoritmo. Esse é o grande desafio, cumprir as metas e conseguir boas avaliações. Vem tudo da máquina. (E3)
A partir desse tipo de vínculo, até as relações entre colegas, com chefes fica afetada. Alguns participantes relataram que simplesmente não existe, em função da características do trabalho, como no relato de um participante: “Não, nem conheço meus colegas, é um trabalho autônomo então não tenho nem acesso a eles.”(M3)
Como alguns ficam aguardando as chamadas em locais compartilhados, como praças, por exemplo, conseguem construir um grupo de colegas, que pode se tornar uma forma de obter suporte do grupo, como no relato a seguir: “Com chefes não tem contato. Apenas temos grupos de colegas. Diariamente damos apoio uns aos outros, trocas de experiências, alertas de acidentes, rotas etc.”(E8)
Ao mesmo tempo a comunicação pessoal entre a organização e os prestadores se torna cada vez mais dificultada, também sendo substituída por esses sistemas automatizados de call centers, o que contribui para uma relação mais distanciada e impessoal. Isso pode ser ilustrado com uma frase de uma participante: “É muito difícil falar com eles, inclusive como funcionária, antes era só mensagem e só pude fazer ligação quando ganhei Uber Ouro. Eu fiz, na verdade, mais reclamações como consumidora do que como trabalhadora, eles não estão nem aí para o funcionário.”(M1)
O modelo de gestão por algoritmo determina as relações socioprofissionais, porém no cotidiano mantém-se distante do trabalhador. Nesse viés, durante seus discursos os participantes abordaram aplicativo como um fiscalizador constante de suas atividades, o qual está sempre presente regulando suas atividades, mas não estabelece relação humanizada entre sujeitos. Percebe-se que mesmo se tratando da execução da mesma atividade, há uma diferença entre a remuneração entre parceiros iniciantes e experientes. Essa condição é determinada pelo sistema de gestão e controle por algoritmo usado pelos aplicativos, o qual pune aqueles que permanecem pouco tempo logados e realizam poucas entregas de alimentos, independente se é em razão de saúde física, mental ou acidentes diários. Essa fiscalização realizada pelo algoritmo dos aplicativos resulta em longas jornadas de trabalho dos indivíduos, haja vista que o tempo logado e a quantidade de alimentos entregues é diretamente proporcional à remuneração recebida, configurando um ato de exploração daqueles que imaginam estar trabalhando por conta própria. Como pode ser visto nos relatos abaixo.
“Por exemplo,eu agendei, mas só que às vezes eu passei mal, uma dor de barriga, não vou nem falar uma coisa mais grave não, uma coisa mais natural, uma dor de barriga […] se eu desligo o aplicativo e deixo ele desligado, isso me prejudica. O próprio aplicativo ele começa miá as corridas pra mim.” (E3)
“Se você ficar sem trabalhar a sua conta piora, você não consegue corrida, e se sofrer uma acidente e ficar trinta dias parado, você vai voltar e sua conta não vai ser a mesma coisa.” (M5)
Outro aspecto central da Uberização: as empresas não podem demitir, pois não contratam. Mas podem desligar o trabalhador da plataforma. As avaliações realizadas pelos usuários também são dadas que alimentam o controle e o gerenciamento do processo de trabalho. Possibilitam um ranqueamento dos trabalhadores, elemento que será utilizado como critério automatizado na distribuição do trabalho e em determinações da remuneração.
Um fator abordado por todos os participantes se refere aos riscos ocupacionais decorrentes da atividade realizada. Todos relataram que as condições em que realizam o trabalho são influenciadas por mudanças climáticas, trânsito perigoso, riscos de acidentes, assaltos e indicaram que nesse quesito há uma falta de suporte da organização no sentido de proteger e cuidar de seus parceiros.
Pode-se perceber que uma parcela dos participantes possui uma visão crítica sobre alguns aspectos da estrutura da plataforma e do seu relacionamento com os parceiros associados. Nesse sentido, constatou-se que 40% dos entrevistados possuem conhecimento que terão que arcar com gastos financeiros causados por doenças e acidentes, além de saberem as desvantagens de não realizarem a contribuição previdenciária. Outros 20% dos participantes comentaram sobre as condições inseguras do ofício e os riscos ocupacionais presentes, o que indicou uma análise crítica em relação à conjuntura ofertada pelas plataformas. Os riscos psicossociais são sinalizados abaixo em alguns exemplos das falas dos trabalhadores.
“A gente sai de casa e não sabe se vai voltar.” (M4)
“Não é bom porque acidente de moto qualquer coisinha você já vai pro chão, machuca, você não tem nada.” (E5)
“ Eles só dão assistência quando tá com pedido dentro da mochila. Se não tiver… tem que arcar com a consequência.” (E8)
“ O trânsito né (maior desafio), porque a qualquer hora você pode sofrer um acidente e morrer.” (M8)
Os participantes dos três grupos relataram acidentes e o surgimento de sintomas após o início das atividades. No grupo dos motoristas foram relatados acidentes de trânsito por 50% deles, e o surgimento de problemas de coluna, dores nas pernas, perda de peso, tonturas, dores no corpo e cansaço. No grupo de entregadores 75% relatou acidentes de trânsito, contaminação por covid-19. Todos foram unânimes em dizer que nenhuma organização forneceu nenhum tipo de suporte aos mesmos, nem em decorrência dos acidentes de trânsito nem a partir de seu adoecimento, evidenciando novamente a relação de uso do trabalhador para alcançar suas metas, e o descarte deles quando não é possível que realizem o trabalho, com sua consequente substituição.
Ao serem perguntados sobre os sentidos que o trabalho com as organizações por aplicativos era conferido por eles, em ambos os grupos emergiram relatos de vivências de prazer e de sofrimento. Como indicadores das vivências de prazer, o simples fato de estarem inseridos de alguma forma no mercado de trabalho, mesmo como autônomos já era por si só um fator sentido como positivo. Em tempos de desemprego, recessão da economia e pandemia, ainda conseguir trabalhar foi vivenciado como indicador de prazer. A liberdade e autonomia, ligada ao discurso de flexibilidade também foi citado como um fator positivo, conforme ilustra esse trecho do discurso.
Entre as vantagens relatadas estão a flexibilidade de horário, a possibilidade de alto retorno financeiro e a inexistência de cobranças da chefia. Todavia, esses aspectos presentes no imaginário dos trabalhadores divergem da sua realidade cotidiana, pois a remuneração obtida é apenas suficiente para suprir suas despesas básicas, sendo ainda necessário trabalhar em horários estratégicos e excessivos para esse resultado. Além disso, apesar de não haver uma figura chefe fiscalizando suas atividades, o algoritmo atua no controle e punição dos entregadores “parceiros”. Nesse sentido, percebeu-se a presença de alienação em relação à ideologia propagada pelas plataformas de aplicativo, o que faz com que os indivíduos reproduzam o discurso que prevê autonomia e liberdade, mesmo quando o trabalho real mostra uma realidade contrária. A presença da alienação é perceptível na fala seguinte.“Trabalhando pros outros eu tava lascado ainda, eu tava trabalhando dia de sábado … eu ainda tô trabalhando né, mas…”. (E2)
As vivências descritas em relação ao trabalho, a maioria relatou que gosta e sente gratidão por ter trabalho. Como indicadores das vivências de sofrimento, a consciência de que esse tipo de relação de trabalho pressupõe falta de estabilidade, de acesso e perdas de direitos trabalhistas contribuiu para um sentido negativo. O medo pela exposição ao trânsito, a riscos de acidentes e assalto também configuram aspectos dessas vivências, além de relatos ligados à falta de educação dos clientes, em que são maltratados, principalmente no grupo dos entregadores, como nos relatos abaixo:Porém, predominaram as vivências de sofrimento decorrentes da sobrecarga que gera cansaço, além da percepção do quanto são exploradas. Alguns trechos ilustram esse aspecto:
“Às vezes eu penso em desistir, porque tem um lado da empresa que é bem ignorante, arrogante, sabe. Tipo assim, se a localização não tiver exata e eu mandar mensagem de localização, tal, eles, você não sabe ler, não sabe o endereço e tal.” (F3)
“Eu assim, eu não tenho questão em relação a empresa, mas eu fico meio que decepcionada entendeu? Porque assim, eu acho meio injusto né, eu penso assim, na verdade é essa, porque assim, eles tiram muito e a pessoa não tem direito nenhum, direito trabalhista esquece, e você entrar numa casa e cair da escada e se quebrou todinha, o problema é seu entendeu? Então eu acho meio injusto.”(F7)
Já a respeito da falta de reconhecimento da empresa diante dos parceiros, é evidente que a teoria se concretiza, quanto ao sentido atribuído ao trabalho como consequência da forma que a empresa age diante dos colaboradores, como fica evidente na frase do participante “Olha, infelizmente os aplicativos hoje estão visando mais as questões de ganho para eles e não uma questão de humanidade. Eles não estão preocupados em a ciclano tem que pagar combustível, pagar manutenção, eles não estão preocupados com isso”(M5).
Durante as narrativas dos sujeitos participantes as vivências de sofrimento estiveram presentes em numerosas ocasiões. Nessa perspectiva, as longas jornadas de trabalho resultantes da necessidade de estar logado extensas horas seguidas para alcançar uma remuneração suficiente e satisfatória, acarretam uma grave sobrecarga. A falta de descanso diário e semanal adequado, ignorado pelos trabalhadores, potencializa a condição de sobrecarga. Por conseguinte, os relatos de cansaço, estresse e sobrecarga física e psíquica estiveram presentes em vários dos relatos fornecidos, como no exemplo abaixo.“Cheguei a surtar já. Foi um negócio muito estranho né, que eu vi uma pessoa que não era eu.” (E8) … “Qualquer hora você pode sofrer um acidente e morrer.” (M8)
Em concomitância a essas experiências, a falta de reconhecimento institucional, com remuneração que desconsidera a distância percorrida para realizar a entrega, e a dos clientes se apresentam como fatores que também resultam em momentos de sofrimento e angústia. Assim, a falta de reconhecimento gera vivências de sofrimento no trabalhador, como é perceptível nos trechos das respostas abaixo.
“Tem os povo trata a gente igual cachorro, a gente vai no restaurante trata nois igual cachorro […] tem gente que trata a gente como gente, tem gente que trata como cachorro.” (M4)
“Pessoas são muito ridículas com entregador, não dá espaço, fecha, caça um meio de bater na gente, isso acontece muito no trânsito.” (E8)
Todavia, apesar de realizarem e se exporem a um trabalho intenso e predominar uma análise crítica sobre o papel e a influência das plataformas de aplicativo nesse aspecto, observa-se a continuidade do discurso de autonomia propagado pela plataforma, assim como a falta de perspectiva para trocar de ofício.
Para lidar com essas vivências de sofrimento advindas da organização, os indivíduos se mobilizam e criam estratégias de enfrentamento. Esses recursos podem ser de caráter individual ou coletivo. Quando é individual acontece a negação da realidade que está posta ou a construção de argumentos internos para poder racionalizá-la. As estratégias de enfrentamento individuais mais recorrentes foram a aceleração, negação e a racionalização, e a exposição a riscos desnecessários, ilustradas nos discursos abaixo.
“A gente não passa raiva, é rapidinho que pega o pedido e entrega.” (E6)
Eu já trabalhava como callcenter, então pra mim comparando isso aqui é uma tranquilidade.” (M3)
“É perigoso? É! Mas eu me sinto bem dirigindo a moto, cortar os carros, fazer esses trem.” (E8)
Em decorrência da falta de suporte das plataformas, os entregadores buscam suprir essa lacuna solicitando informações e a ajuda do grupo de entregadores e amigos, visando aprender o ofício e resolver problemas que ocorrem. Além deles, buscam suporte também em seus familiares, os quais fornecem apoio moral e emocional durante o cotidiano.
Para a Psicodinâmica do trabalho, quando as estratégias de enfrentamento ao sofrimento advindo do trabalho falham, ou quando o trabalhador não encontra uma organização do trabalho que permita a transformação desse sofrimento, há um processo de fragilização da saúde do mesmo. O surgimento de sintomas, patologias em forma de doenças ocupacionais, aumento da rotatividade, absenteísmo, acidentes de trabalho são indicadores da necessidade de ajustes e intervenções visando à promoção de ações voltadas à saúde mental do trabalhador.
Em decorrência desse contexto, o impacto na saúde do trabalhador decorre dos riscos ocupacionais na atividade realizada. Todos relataram que as condições em que realizam o trabalho são influenciadas por mudanças climáticas, trânsito perigoso, riscos de acidentes, assaltos e indicaram que nesse quesito há uma falta de suporte da organização no sentido de proteger e cuidar de seus parceiros. Os participantes dos grupos relataram acidentes e o surgimento de sintomas após o início das atividades. No grupo dos motoristas e faxineiras foram relatados acidentes de trânsito por 50% deles, e o surgimento de problemas de coluna, dores nas pernas, perda de peso, tonturas, dores no corpo e cansaço. No grupo de entregadores 75% relatou acidentes de trânsito, contaminação por covid-19. Todos foram unânimes em dizer que nenhuma organização forneceu nenhum tipo de suporte aos mesmos, nem em decorrência dos acidentes de trânsito nem a partir de seu adoecimento, evidenciando novamente a relação de uso do trabalhador para alcançar suas metas, e o descarte deles quando não é possível que realizem o trabalho, com sua consequente substituição.
Dentre os relatos dos participantes dos três grupos pesquisados, há fortes indicativos da necessidade de que se desenvolvam essas ações para promoção da saúde do trabalhador.
Considerações finais
Pode-se afirmar que o objetivo do presente estudo foi alcançado, considerando que os dados permitiram analisar a precarização das relações de trabalho refletida na organização do trabalho dos trabalhadores de plataformas digitais, desde o ponto de vista de suas condições e relações de trabalho, e o impacto em sua subjetividade. Conforme os dados analisados acima indicam, o avanço da Uberização no Brasil apresenta características compartilhadas com a de outros países em desenvolvimento, sinalizados nos relatórios da OIT, e tem como suporte uma postura não intervencionista do Estado, compreendida com a aprovação de leis e medidas provisórias que contribuem para a destituição de direitos trabalhistas e acesso à previdência aos trabalhadores, por um lado, e para o aumento da exploração e do lucro dos empresários.
O ambiente virtual amparado pela internet ensejou, como movimento prévio ao da Uberização, o trabalho do tipo crowdwork, ou seja, o trabalho da multidão que se torna integrado ao sistema produtivo, podendo atuar direta ou indiretamente no processo de valorização do valor. Também conhecido como crowdsourcing, tal modalidade se refere ao tipo de trabalho em que a função normalmente desempenhada por um único trabalhador (ou pequeno grupo de trabalhadores) se torna indefinidamente descentralizada, de modo que possa ser realizada uma convocatória para que o serviço seja executado por uma ampla quantidade de pessoas, as quais se responsabilizam por uma reduzida parte da tarefa. A Uberização se sustenta a partir de três elementos de base: os “solicitantes”, que representam as companhias ou as pessoas que demandam o serviço; as plataformas virtuais, as quais permitem que haja um local digital para reunir a oferta e a demanda – e por isso recebem um percentual do valor, que é pago aos trabalhadores, de acordo com Howe (2008).
Ao analisar os dados obtidos no presente estudo, compreende-se que a organização do trabalho das plataformas de aplicativo utiliza padrões pouco exigentes para o indivíduo se tornar parceiro, mas após iniciar seu trabalho estabelece critérios e metas inalcançáveis. Utilizando um discurso atrativo que prevê autonomia, gestão do próprio tempo e alto retorno financeiro, as plataformas de aplicativo seduzem os indivíduos desempregados que estão fragilizados socialmente, seja devido à instabilidade do mercado de trabalho causada pela pandemia da COVID-19, a qual intensificou as dificuldades de inserção no mercado de trabalho formal (Castro, 2021), ou pela exclusão do mercado resultante da crise econômica que traz como característica desemprego, precarização e falta de qualificação profissional.
Por ser um fenômeno de proporção mundial, instituições como a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Organização Mundial de Saúde (OMS) apresentaram uma proposta de trabalho decente que visa garantir condições de trabalho dignas. A proposta do trabalho decente da ONU visa estimular políticas públicas para resgatar a dignidade do trabalho, ligado à promoção da sustentabilidade social, democracia e melhor distribuição de renda, que se refletirá em uma identidade profissional mais positiva, bem como na saúde do trabalhador.
Em 2015, os Estados Membros das Nações Unidas, adotaram a Agenda 2030 para a sustentabilidade e desenvolvimento, que estabeleceu 17 objetivos, denominados Sustainable Development Goals (SDGs), como “um ambicioso plano de transformações estruturais, econômicas e sociais em todo o mundo” (ILO, 2019). Existe a urgência de uma agenda centrada no ser humano com um foco renovado nas amplas capacidades das pessoas, bem como no potencial das instituições do mercado de trabalho, prioritariamente em atendimento a uma demanda de investimentos em áreas negligenciadas da economia nos países desenvolvidos e em desenvolvimento. As questões de igualdade, sustentabilidade e inclusão na apresentação e a análise de tendências do mercado de trabalho tornaram-se necessariamente o ponto central de atenção, “os novos dados globais coletados, apontam para alguns progressos, mas acima de tudo revelam a persistência de déficits significativos no trabalho decente, com as várias regiões enfrentando desafios de muitos tipos” (ILO, 2019).
A partir da proposta, a ideia é estimular nos países que mercados de trabalho inclusivos que funcionem bem sejam considerados nas políticas públicas, e vistos como essenciais para a missão de oferecer trabalho e apoiar a justiça social, entendendo que o trabalho remunerado é a principal fonte de rendimento para a maior parte da população do mundo, e porque assim se “pode reafirmar os princípios de igualdade, democracia, sustentabilidade e coesão social[grifo nosso]” (ILO, 2019).
Referências
Abilio, L. C. (2019). Uberização: Do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, 18(3).
Abilio, L. C. (2020) Plataformas digitais e Uberização: Globalização de um Sul administrado? Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 12-26, abr./jul. 2020.
Abílio, L. C. (2020a). Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estudos
Avançados, 34(98), 111–126.
Batista, T. J. (2021). A reforma trabalhista e as mudanças no trabalho de uma organização em gestão de saúde: Uma Análise Psicodinâmica (Dissertação de Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia, GO, Brasil.
Belém, T.; Macêdo,K.B. & Santos, M.S. (2022) O trabalho dos entregadores de alimentos por aplicativos: impactos da precarização na saúde do trabalhador. EITA- Encontro Internacional sobre o trabalho. João Pessoa: Editora do EITA.
Castel, R. (1998). As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998.
Castro, M.F. (2021) A pandemia e os entregadores por aplicativo: algumas considerações sobre a precarização do trabalho. Revista Espaço Acadêmico– Edição especial, Ano XX, fev. pp. 70-80
Dejours, C. (1992) A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São aulo. 5° ed. São Paulo: Cortez-Oboré.
De Stefano, V. (2016). The rise of the “just-in-time workforce”: On-demand work, crowdwork and labour protection in the “gig-economy Conditions of Work and Employment Series, n. 71, Geneva, Suiça: ILO, 2016
Franco, T. Druck, G. & Seligmann Silva, E. (2010). As novas relações de trabalho, o desgaste mental do trabalhador e os transtornos mentais no trabalho precarizado. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 35, n. 122, pp. 229- 248.
Fleury, A. R. D.& Macêdo, K. B. (2015). A clínica psicodinâmica do trabalho: teoria e método. O diálogo que transforma: a clínica psicodinâmica do trabalho. Goiânia: PUC Goiás.
Franco, D. &Ferraz, D.L.S. (2019). Uberização do trabalho e acumulação capitalista. Cadernos EBAPE.BR [online]. vol. 17, n. especial, pp. 844- 856.
Howe, J. (2006). The rise of crowdsourcing. Wire magazine.
Howe, J. (2008). Crowdsourcing: how the power of the crowd is driving the future of business. New York, NY: Random House.
IPEA. (2019) Estudo do Ipea traça perfil do trabalho doméstico no Brasil. 2019
International Labour Organization (ILO) (2019). World Employment and Social
Outlook: Trends 2019, Geneva: ILO. Recuperado em 12 janeiro, 2021,
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (2019). Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios Contínua Indicadores para população de 14 anos ou mais de
idade. PNAD Contínua.
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (2020). Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios Contínua.
Jardim, M. P. M. (2021). As vivências dos empreendedores de Startups em uma incubadora da Região Centro-Oeste do Brasil: Uma Leitura Psicodinâmica (Dissertação de Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia, GO, Brasil.
Lourenço, L. R. (2022). Os órfãos da justiça: a precariedade do trabalho dos oficiais de justiça e a luta contra o sofrimento (Dissertação de Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia, GO, Brasil.
Luvisa, A. K.,& Moraes, L. F. N. (2020. Involução das Relações de Trabalho:
A Era da Uberização Just in Time. Anais Semana Acadêmica de Direito da Univille
(SADU), Joinville, SC, Brasil, 5. Recuperado de
Machado, L. de S.; Macêdo, K. B. (2022). As relações de trabalho em tempos de crise: o olhar da Psicodinâmica do Trabalho – Teoria, Método e Casos. Curitiba-PR
Mesquita, S. M., Macêdo, K. B. (2016) Riscos psicossociais, Editora da Puc Goias,
Goiânia.
Organização Internacional do Trabalho (OIT) (2018). Panorama Laboral 2018. Lima:
OIT / Oficina Regional para América Latina y el Caribe. 132p.
Organização Internacional do Trabalho (OIT) (2019). Panorama Laboral 2019. Lima:
OIT / Oficina Regional para América Latina y el Caribe. 152p.
Santos, M.S.; Macêdo, K.B. & Belém, T. (2022). Uberização do trabalho: impactos na
saúde do trabalhador. X CBPOT – Congresso Brasileiro de Psicologia, Organizações e
Trabalho, São João Del Rey: Editora da SBPOT.
Signes, A. T. (2017). O mercado de trabalho no século XXI: on-demand economy, crowdsourcing e outras formas de descentralização produtiva que atomizam o mercado de trabalho. in: Leme, A. C. R. P.; Rodrigues, B. A. and Chaves Júnior, J. E. R. Tecnologias disruptivas e a exploração do trabalho humano. São Paulo: LTr.
Slee, T. (2017). Uberização: A nova onda do trabalho precarizado. São Paulo: Elefante.
Standing, G. (2014). O Precariado e a Luta de Classes. Revista Crítica de Ciências
Sociais, 103.
Uchôa-de-Oliveira, F. M. (2020). Saúde do trabalhador e o aprofundamento da
uberização do trabalho em tempos de pandemia. Revista Brasileira de Saúde
Ocupacional, 45.
World Health Organization (2018). Mental health atlas 2017. Geneva. Licence: CC BY-NC-SA 3.0 IGO.
World Health Organization (2020) A year without precedent: WHO’s COVID-19 response.
[1]Esses dados advêm de uma pesquisa da autora, aprovada pelo CONEP com número 3.919.229
[2] Para preservar o anonimato dos participantes, adotou-se a legenda E para entregador de alimentos, M para motorista de aplicativos e F para faxineiras, seguidos do número do participante no banco de dados para a análise.