Ao longo da vida o tempo se torna o bem mais precioso. Tempo é movimento, é um fio que carrega a história e dá sentido à vida dos sujeitos, conduzindo-os inexoravelmente, para o final. A fantasia de controlar e contornar o tempo é uma armadilha ilusória que torna o sujeito um ser vagante no espaço. (Bolguese, 2017).
O filme “A Substância” da diretora Coralie Fargeat, lançado em 2024, aborda um tema que sempre causou angústia e nos coloca a todos em situação de desamparo diante do passar do tempo e da morte. Desde tempos imemoriais a busca pela eterna fonte da juventude mobilizou gerações. A busca pela eterna juventude, para além de atender a uma demanda social de ser sempre jovem, tem ainda um outro fator mais profundo. Permanecer jovem é manter-se afastado da ideia de finitude, é proteger-se do terror do desconhecido da morte, enfim, da própria extinção. Contudo, o tempo não para.
O filme ilustra de que forma a dinâmica da protagonista é o reflexo do contexto da contemporaneidade, que possui características específicas: desenraizamento, que leva a constituição de Egos flutuantes e à deriva do desamparo; noção de tempo desvinculada do passado e futuro, sendo um presente contínuo onde a ordem é flutuar. O tempo já não estrutura mais o espaço. A estratégia da vida pós-moderna é evitar que a identidade se fixe, a incerteza passa a ser permanente e irredutível; o ambiente se configura em uma atmosfera de medo e favorável para o desenvolvimento de fenômenos do campo da angústia; as relações interpessoais são permeadas pelo consumismo, onde os laços não prometem a concessão nem a aquisição de direitos e obrigações.
Como consequência, desenvolve-se um novo modo de funcionamento psíquico onde há conflitos relacionados à identidade; vínculos sociais enfraquecidos; individualidades descartáveis; substituição da alteridade pela massificação, sendo o cidadão ético substituído pelo consumidor ; a pessoa é reduzida à dimensão da imagem; há um predomínio das formações de ego ideal, com uma subjetividade autocentrada. Ser e parecer se identificam absolutamente no discurso narcísico do espetáculo, o que o sujeito perde em interioridade ganha em exterioridade. O sujeito se transforma numa máscara, para exterioridade, para exibição fascinante e para captura do outro.
Esse contexto auxilia na configuração das novas psicopatologias na atualidade, às novas formas de subjetivação caracterizadas pelo auto centramento absoluto do sujeito que se expressa no individualismo onde o que importa para individualidade é a exaltação gloriosa do próprio eu. Uma subjetividade que privilegia processos psíquicos narcísicos, a idealização da onipotência do ego. As formas de adoecimento psíquico dessa época têm em comuns traços de desamparo e falta de referências. As que têm maior incidência atualmente são: pânico; depressão; distúrbios relacionados à alimentação como bulimia e anorexia; as psicossomatizações, as toxicomanias e adições
A indústria cultural e as estratégias publicitárias atuam no sentido de levar as pessoas a aumentarem o nível de exigência em relação à aparência física, diminuir a capacidade de tolerar frustrações e lidar com limites, ou seja, há toda uma estimulação para que as pessoas fiquem mais isoladas e voltadas para si mesmas. Nessa sociedade há uma exigência de que as pessoas se mostrem sempre independentes e autônomas. A ideia do descartável para produtos e serviços parece se estender também às relações interpessoais. O sensacionalismo, a invasão de privacidade das pessoas e a banalização dos sentimentos fazem, na sociedade pós-moderna, a apologia do efêmero, do vazio e da falta de referências.
A estetização contemporânea aliena o sujeito aos ideais e modelos pré-estabelecidos, promovendo mal-estar. Exclui a singularidade e apaga a riqueza das diferenças individuais. Ao lidar com o corpo como mais um objeto de consumo o transforma em coisa, manipulável e moldável, e consequentemente, descartável.
‘Forever Young’ a qualquer preço
O início do filme já sinaliza o aspecto da volatilidade do estrelato, mostrando a figura de uma estrela no Hall da fama em Hollywood, e com o passar do tempo, sua rachadura e ‘esquecimento’. Indica a instabilidade e a ameaça de quem um dia foi estrela cair no anonimato. As mudanças que o tempo provoca talvez seja o fio condutor da trama.
Para a psicanálise, as manifestações e as transformações corporais e a maneira como a pessoa se relaciona e age em relação a seu corpo são expressões evidentes de suas condições psíquicas, seus sintomas e suas patologia. A perda de uma imagem valorizada socialmente remete às mesmas ameaças primitivas de desintegração , à angústia primária de morte. Manter-se sob os padrões ditados pela cultura da beleza, da juventude e da saúde, necessariamente assim articulados é a garantia de um pertencimento e aceitação social.
Na primeira parte do filme a angústia de morte é desencadeada pelo fato de Elisabeth Sparkle (Demi Moore) de ser demitida pelo fato de ter completado 50 anos. Ela tinha sido uma atriz premiada que foi sendo excluída dos trabalhos e da fama à medida que envelhecia, vivenciou esse fato com uma angústia de morte, um terror sem nome, o que desestabilizou seu funcionamento psíquico.
O corpo é o ‘palco’ onde se instala e se vive o mal-estar atualmente. O corpo nunca estará enquadrado e funcionando integralmente dentro das exigências da cultura contemporânea. Ele é a caixa de ressonância privilegiada do mal-estar. Considerando-se as múltiplas alternativas oferecidas para que se cuida cada vez mais do corpo, somos todos devedores e/ou transgressores a desobedecer aos desígnios de nossa vida administrada, na qual o corpo é o principal objeto de controle.
Fazendo alusão a outras obras como Fausto, de Goethe, ou O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, a protagonista recorre a fórmulas mágicas, com promessas sedutoras que a remetem à fantasia de negar a realidade e obter a beleza perfeita e o sucesso a qualquer preço. Já indicando aí um distanciamento da realidade, negação da castração e desamparo humanos diante da inexorabilidade da vida e a proximidade da morte.
Assim, Elisabeth passa por um misterioso processo de clonagem caseira (usando uma droga obtida clandestinamente) que faz com que sua sósia, uma mulher jovem e alegre chamada Sue (interpretada por Margaret Qualley), surja de sua coluna vertebral como um filhote que sai da casca de um ovo. Assim, ela consegue criar uma versão mais jovem e mais bonita de si. A princípio tem a impressão de ter resolvido a situação e ainda se vingado do produtor à medida que ele contratou sua versão renovada sem saber que se tratava dela mesma. Mas havia uma recomendação de que se lembrasse que eram a mesma pessoa e respeitassem os limites, mas como a imagem ideal era tão sedutora, apaixonante e arrogante, por ser primitiva, não demorou muito até que tudo desmoronasse. “Do ódio a si mesma e da sensação de que nunca se é boa o suficiente, bonita o suficiente, magra o suficiente, jovem o suficiente. Em cada idade, há algo que pode fazer você sentir que não está bem”, acrescentou.
Em várias cenas do filme o reflexo da imagem de Elisabeth no espelho aciona uma reação de ataque violento, ódio a si mesma. Espelho que reflete uma imagem sufocante, que parece empurrar todos nós para a constatação de que, por mais que se faça, tudo ainda é pouco.
Uma das cenas marcantes do filme é quando Elisabeth se arruma para um encontro, que poderia significar a saída do casulo narcísico, ao ver sua imagem refletida no espelho, começa a retocar a maquiagem, e depois a se atacar de forma violenta, até se machucar e desistir do encontro.
Quanto maior a angústia e o sofrimento psíquico, maior também o apelo ao corpo enquanto envelope a ser manipulado. Acossados com medo da morte, perseguidos pelo desprezo que viemos desenvolvimento em relação à nossa própria imagem, ameaçados pela velhice que aponta para o tabu da finitude. E o mais paradoxal de toda essa situação é que às vezes a negação do envelhecimento e morte e a busca pela beleza e juventude podem levar exatamente à morte prematura. Essas questões, aliadas ao discurso vigente imposto pelo consumo, no qual o ter supera a falta do ser levam pessoas à morte em salas de cirurgias em busca da beleza idealizada.
Na segunda parte do filme fica claro que a versão remoçada de Elisabeth, Sue, quer destitui-la e assumir o controle da situação, mesmo que às custas da morte da outra, também em negação de que se uma morre, ela também. E começa uma sequência de cenas que causam nojo e asco no espectador, uma vez que demonstra como o corpo é manipulado como se fosse uma coisa.
Nessa segunda parte a alusão é ao mito de Narciso, se referindo ao movimento de investimento libidinal em si mesmo, e distanciamento dos vínculos com objetos externos. O narcisismo refere-se ao mito de Narciso, significando o amor pela imagem de si mesmo. Elisabeth e Sue são solitárias, não possuem vínculos, autocentradas e investem toda sua energia libidinal na aparência física.
Para a psicanálise, o narcisismo é importante para compreensão da dinâmica psíquica dos vínculos. Freud considera que ele é um atributo de toda criatura viva, como um complemento libidinal do egoísmo do instinto de autopreservação. Está na base do funcionamento primitivo. Quando o bebê experimenta angústia, medo e estranhamento, utiliza mecanismos de defesas primitivos como a negação, o isolamento e a fuga do vínculo como forma de lidar com a angústia. Diante da frustração, o bebê retira a libido ligada a outros objetos e a retorna para si mesmo, sendo que esse movimento se configura como o narcisismo primário. O narcisismo primário segue existindo durante toda a vida, em forma de ideal do ego. Freud utilizou a expressão ideal do ego para designar o modelo de referência do eu, sendo um modelo a que o sujeito procura se conformar. O narcisismo secundário refere-se ao mesmo movimento de retorno da libido ao eu para se defender da angústia, porém ocorre após a vinculação da criança com objetos externos a ela.
Se observarmos atentamente, todo esse movimento descrito por Freud está presente em Elisabeth e Sue. O problema é que o que passa a predominar a partir da segunda parte no filme é a pulsão de morte, caracterizando assim o narcisismo da protagonista como um narcisismo de morte. A inveja também se torna uma constante, e se transforma em motor para os ataques violentos, de ódio, com desejo de destruição e morte, ignorando completamente que o que é sentido como adversário, na verdade é sua outra parte. A cisão, negação, fantasia de onipotência são as defesas primitivas utilizadas pelas personagens.
A terceira parte do filme é a que mais choca, pois trabalha com a metáfora do monstro no qual Elisabeth/ Sue se transformam. O monstro causa repulsa e estranhamento, e representa o embate entre o ser humano e suas próprias limitações, desamparo diante da morte. Umberto Eco em sua obra “A história da feiura” já sinalizava que o monstro, o grotesco é representado de formas diversas, dependendo da época, do lugar e do medos e angústias de determinado contexto. A reação diante do monstruoso é a repulsa, o medo, a exclusão. A noção de monstro traz a noção do estranho, do que está fora do lugar, do que não é natural aos olhos da ração.
Em sua obra “O Estranho” (1919), Freud afirmou que o que nos causa estranhamento é o mais conhecido em nós. A parte do próprio eu percebida como estranha, ameaçadora, desorganizadora é projetada no mundo externo, que passa a ser povoado pelos monstros desagradáveis. Representa a marca de excludência , complexo de inferioridade, transgressão ao modelo vigente e alternativa à sobrevivência. O monstro também representa uma resistência à forma perfeita, busca do ser pela própria autonomia através de quebra de expectativas, transgressão às normas sociais e reconfiguração identitária. Por esses motivos o monstro causa medo, angústia.
Nesse sentido, pode-se afirmar que o narcisismo que predominou foi o narcisismo de morte. Para Freud, quando há uma predominância de pulsões de vida no narcisismo, pode-se denominá-lo de narcisismo de vida. Ele se expressa em forma de autopreservação; autoestima; cuidado consigo mesmo e em movimento de busca por vínculos de amor. Porém, quando a predominância é das pulsões de morte, o narcisismo pode assumir formas ou se expressar em isolamento, sadismo, depressão, ou até, em casos mais extremos e comprometidos, em suicídio. A pessoa começa a trabalhar contra si mesma, atuando de forma violenta, com autossabotagem e destrutividade.
E diante da incapacidade de lidar com o monstro que se tornou, o que resta é a tentativa última de mais uma vez driblar a realidade, aplicando várias doses que terminam por desestabilizar e inviabilizar a vida. É uma última metáfora da loucura, surto psicótico, onde a pessoa já perdeu a noção do próprio corpo que se desfaz, ferida aberta sangrando até a morte.
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