De Kubler-Ross a FreddieMercury: face a face com a morte

De Kubler-Ross a Freddie Mercury: face a face com a morte – Kátia Barbosa Macêdo

From Kubler-Ross to Freddie Mercury: face to face to death

Resumo 

O presente texto teórico, construído a partir de uma análise documental, visa abordar os estágios de elaboração do luto descritos por Kubler-Ross no que se refere às reações de pacientes terminais e com AIDS, partindo da análise de alguns fragmentos da obra de Freddie Mercury. Na primeira parte, apresenta uma breve discussão acerca dos mecanismos descritos por Freud para lidar com a angústia e as fases de elaboração do luto, descritos por Kubler-Ross diante de um diagnóstico de doença terminal. Na segunda parte, apresenta brevemente dados biográficos de Freddie Mercury e utiliza seis recortes de suas obras musicais criadas após o diagnóstico de AIDS como forma de ilustrar suas representações ligadas à elaboração do luto e o enfrentamento da morte, analisando os estágios de negação, raiva, negociação, depressão e aceitação, presentes em trechos de suas obras musicais. Palavras-chave Psicanálise; elaboração de luto; morte; doença terminal; criação musical.

Abstract 

This theoretical text built from a document analysis, aims to address the development of stages of mourning described by Kubler-Ross with regard to the reactions of terminal patients and AIDS, based on the analysis of some fragments of Freddie Mercury’s work. The first part presents a brief discussion of the mechanisms described by Freud to deal with the anguish and the phases of elaboration of mourning described by Kubler-Ross facing a diagnosis of terminal illness. The second part briefly presents biographical data Freddie Mercury and uses six cutouts of his musical works created after being diagnosed with AIDS as a way to illustrate his representations related to the development of mourning and face the death, analyzing the stages of denial, anger, bargaining, depression and acceptance, present in parts of his musical works. Keywords Psychoanalysis; elaboration of mourning; death; terminal illness; music creation.

Introdução 

O ser humano é o único que tem consciência de sua própria morte, sua finitude, o que o coloca em uma condição permanente de impotência e desamparo. Freud (1919[1986]) abordou a condição humana de desamparo diante de sua finitude no texto O Estranho onde ele comentou que há uma surpreendente estranheza com tudo que é mais íntimo e familiar em nós, quando ocorre a irrupção do que deveria permanecer oculto (a lembrança de que iremos todos morrer) e que coloca a pessoa diante do lugar do desvelar o horrível; o homem frente a frente com sua transitoriedade e finitude. 

Do mesmo modo que a condição humana é permeada de impotência e desamparo diante da morte, a angústia também está presente durante toda a vida do ser humano. A palavra Hilflosigkeit (utilizada por Freud para se referir ao desamparo) pode ser traduzida como incapacidade de se sair bem de uma situação difícil; de se virar; abandono; impotência e estado de desamparo, aquele que está sem ajuda, desarmado. Esse termo expressa um estado próximo do desespero e do trauma. O trauma está diretamente ligado ao estado de impotência e de desamparo do sujeito. O sujeito exposto ao excesso de excitação vive uma situação traumática que tem como seus componentes as vivências de angústia, impotência e desamparo, conforme Macêdo (2012). 

É importante comentar o aspecto paradoxal do desamparo, pois ao mesmo tempo em que ele paralisa, amedronta e “faz sofrer” o indivíduo, é também o que possibilita o movimento deste indivíduo em busca de outro, o que leva ao início do processo de vinculação com esse outro. É a partir desse movimento que se inicia o processo de humanização, ou seja, a partir da constatação da condição de desamparo e castração que busca outra pessoa, que possibilite sua constituição enquanto ser humano. 

A vivência traumática prototípica é o nascimento, que funda a condição humana de angústia e desamparo. O termo trauma deriva do grego e designa uma ferida, uma perfuração, uma ameaça radical, um perigo que põe em risco a sobrevivência. Ante o trauma, o aparelho psíquico fica impedido de reconhecer e transpor o acontecimento traumático, sendo que o acontecimento traumático não fecha, nem cicatriza, fica propenso a se abrir diante de qualquer nova agressão externa que circunde ou atinja o foco pela associação. Para o trauma, segundo Uchitel (2001), não há passado, só há presente. 

À medida que o Ego se desenvolve, ele busca desenvolver o princípio da realidade1 e manter o funcionamento no processo secundário. Algumas das principais aquisições do Ego são: a criatividade, a capacidade de empatia; a capacidade para tolerar frustrações e gerenciar as demandas pulsionais, capacidade para aceitar sua própria finitude e limitações, o sentido de humor e a sabedoria. Porém, nem todas as pessoas seguem o curso de desenvolvimento, muitas vezes a pessoa, não tendo um Ego suficientemente estruturado e desenvolvido, lança mão de defesas primitivas para conseguir lidar com a angústia. Dentre elas ressalta-se a divisão ou cisão; negação e fantasia de onipotência, conforme Freud (1911[1986]). 

Freud afirmou que a angústia é um sentimento difícil de suportar continuamente. Por isso, a partir dela todo o aparelho psíquico da pessoa se mobiliza no sentido de negá-la, reprimi-la, transformá-la ou elaborá-la, e assim continuar sobrevivendo. Freud (1930[1986]) afirmou que o indivíduo utiliza algumas estratégias para enfrentar e lidar com a angústia e o desamparo, ressaltando principalmente: isolamento voluntário; submissão às normas; uso de substâncias tóxicas; desenvolvimento de defesas e sintomas; delírio ou cultivo da ilusão no fanatismo religioso (tornar-se louco), amar e ser amado e a sublimação via trabalho. Dentre as estratégias apresentadas acima, uma chama especialmente a atenção: a sublimação via trabalho e arte. A constituição da civilização e da religião foi especificamente abordada por Freud para explicar a estratégia para lidar com a angústia em uma dimensão de renúncia pulsional. 

Dejours (1987) complementa que, frente a uma situação de agressão ao Ego, o indivíduo defende-se, primeiramente, pela produção de fantasias, que lhe permitem construir uma ligação entre a realidade difícil de suportar, o desejo e a possibilidade de sublimação. 

Figura 1 – Representação gráfica das principais estratégias utilizadas pelo indivíduo para lidar com o sofrimento, segundo Freud (1930[1986]).

De todos os mecanismos utilizados pelos artistas para a criação de uma obra, o que Freud destacou como o mais importante é a sublimação, pelo fato de ser ele o que permite, ainda que indiretamente, uma satisfação da pulsão e consequente diminuição da angústia. 

Macêdo (2013) comenta que o conceito de sublimação aparece frequentemente na literatura psicanalítica. O termo advém do latim sublimatio, significando tornar puro e sublime. Processo postulado por Freud para explicar atividades humanas sem qualquer relação aparente com a sexualidade, mas que encontrariam o seu elemento propulsor na força da pulsão sexual. Freud descreveu como exemplos da atividade de sublimação a atividade artística, a investigação intelectual e o trabalho como constituinte do processo civilizatório. 

Freud chegou a considerar a sublimação como o mecanismo mais elevado para se obter satisfação, ainda que de forma indireta. Ressaltou ainda sua importância para a constituição e manutenção da civilização. Assim, a sublimação apresenta-se como um destino pulsional privilegiado porque a energia psíquica, ao derivar-se, permite uma gratificação ou prazer, ainda que indireto em uma ação ou objetos que sejam valorizados culturalmente pela sociedade. A gênese da capacidade de sublimar depende simultaneamente das disposições constitucionais do indivíduo e dos acontecimentos da sua infância. 

É importante comentar que Freud (1908 [1986]) destacou sempre os riscos que comporta a sublimação das pulsões quando se efetua a custa das pulsões, pois o sujeito fica privado de satisfações imediatas. Embora a sublimação se apresente como um mecanismo que fortalece o vínculo social e promove a construção da cultura e da sociedade, ela também pode desequilibrar psiquicamente a pessoa, quando passa a impor modelos ideais e cada vez mais exigentes da energia psíquica das pessoas.

A obra de arte é o produto final que se desprende do artista e a partir da qual será dado a conhecer, como um ser único e autônomo, a posteriori. Na obra de arte, estão presentes tanto os valores provenientes do contexto cultural do artista como aqueles valores provenientes de seu mundo subjetivo, individual. 

Freud realizou uma leitura psicanalítica de obras literárias em vários de seus textos, partindo do pressuposto de que seria possível realizar uma análise psicanalítica de um autor por meio de sua biografia e de sua obra. No texto “O Estranho” (1919[1986]), todo construído em um diálogo com a obra de Hoffmann, aborda uma surpreendente estranheza com tudo que é mais íntimo e familiar em nós, irrupção do que deveria permanecer oculto, mas que vem à luz e coloca a pessoa diante do lugar do equívoco; a desvelar o horrível; o homem frente a frente com sua transitoriedade e finitude. Freud explica que o estranho, tal como é descrito na literatura pode ser ampliado, pois o que é estranho na vida real pode ser possível na fantasia. Ainda comenta que 

O escritor imaginativo tem, entre muitas outras, a liberdade de poder escolher o seu mundo de representação, de modo que este possa ou coincidir com as realidade que nos são familiares, ou afastar-se delas o quanto quiser. […] O escritor criativo pode também escolher um cenário que, embora menos imaginário do que o dos contos de fada, ainda assim difere do mundo real por admitir seres espirituais superiores, tais como espíritos demoníacos ou fantasmas dos mortos. Na medida em que permanecem dentro do seu cenário de realidade poética, essas figuras perdem qualquer estranheza que possam possuir (FREUD, 1908[1986], p. 310-11). 

Apesar de ele próprio haver sido criticado, sua contribuição se tornou interessante para o empreendimento de uma análise estética quanto por apresentar uma metodologia que tem sido utilizada por vários psicanalistas até os dias de hoje. Assim, pode-se afirmar que essa análise realizada por ele autoriza outros autores a empreender essa leitura, utilizando a mesma metodologia, conforme Macêdo (2012, 2015). O objetivo do presente texto foi abordar os estágios de elaboração do luto descritos por Kubler-Ross no que se refere às reações de pacientes terminais e com AIDS2, partindo da análise de alguns fragmentos da obra de Freddie Mercury. Partiu-se de alguns pressupostos: 

1. Freddie Mercury era um artista e suas letras de músicas representam o resultado de seu processo criativo; 

2. Ele conseguiu sublimar sua angústia relacionada ao diagnóstico de uma doença terminal (AIDS), e conseguiu dar voz à angústia relacionada à finitude e aproximação da morte, abordando aspectos universais do ser humano e suas angústias frente à morte; 

3. Conforme Freud (1910 [1986]) assinalou a elaboração de nossa condição humana de finitude é fundamental para mantermos nossa saúde mental e prevenirmos a melancolia. 

Após a apresentação dos pressupostos adotados para a elaboração do presente estudo, faz-se necessário apresentar a contribuição de Elizabeth Kubler-Ross.

O legado de Kubler-Ross: a angústia dos pacientes terminais diante da doença terminal

Elisabeth Kübler-Ross foi uma psiquiatra que nasceu na Suíça e trabalhou nos Estados Unidos até sua morte. Escreveu vários livros abordando seu trabalho com pacientes terminais. O seu livro mais conhecido, publicado em 1969, foi intitulado “Sobre a morte e o morrer”, e fez um sucesso mundial, tendo sido traduzido para vários idiomas. Nele ela identificou e descreveu alguns estágios ou fases pelas quais os pacientes com diagnóstico de doenças terminais passavam em seu processo de elaboração do luto ou perspectiva de aproximação da morte. “Alcançou sucesso com esse livro e com os subsequentes, dentre eles pode-se citar: “Perguntas e respostas sobre a morte e o morrer” (1979); “AIDS: o desafio final” (1988); “A roda da vida: memórias do viver e do morrer” (1998);” O túnel e a luz: reflexões essenciais sobre a vida e a morte” (2003); “Os segredos da vida” (2004).

Também apresentou métodos e instruções de atendimento, apoio e suporte para médicos, enfermeiros e familiares acompanharem e ajudarem seus pacientes terminais. Ela foi pioneira no tratamento de pacientes em estado terminal, contribuiu enormemente para a tanatologia, e impulsionou a criação de sistemas de asilos específicos para doentes terminais e com AIDS nos Estados Unidos. Elisabeth faleceu aos 78 anos nos Estados Unidos. Ela recebeu vinte e três títulos de Doutora Honoris Causa pelo conjunto de sua obra e sua contribuição para a ciência. Em 2007 ela foi eleita para o National Women’s Hall of Fame dos Estados Unidos, deixando uma obra que é referência até hoje, sendo leitura obrigatória para aqueles que trabalham com pacientes terminais.

As reações psíquicas desenvolvidas pelos pacientes para lidar com a experiência de um diagnóstico de doença terminal e a proximidade com a morte (perda), foram primeiramente descritas por Elisabeth Kübler-Ross em seu livro “Sobre a morte e o morrer” (1987) passando por cinco estágios, representados na Figura 2, abaixo:

Kübler-Ross (1987) originalmente aplicou estes estágios para qualquer forma de perda pessoal catastrófica, desde a morte de um ente querido até o divórcio, qualquer mudança pessoal significativa pode levar a estes estágios. Também alega que estes estágios nem sempre ocorrem nesta ordem, nem todos são experimentados pelas pessoas, mas afirmou que uma pessoa sempre apresentará pelo menos dois.

1. As primeiras reações são a negação e o isolamento: são mecanismos de defesa temporários do Ego contra a dor psíquica diante da morte. A intensidade e duração desses mecanismos de defesa dependem de como a própria pessoa que sofre e as outras pessoas ao seu redor são capazes de lidar com essa dor. Em geral, a negação e o isolamento não persistem por muito tempo. 

2. Após a negação e o isolamento, seguem os sentimentos ligados à raiva e sentimento de injustiça. Geralmente surgem devido à impossibilidade do Ego manter a negação e o isolamento. Nessa fase a pessoa expressa raiva por aquilo que ocorre geralmente essas emoções são projetadas no ambiente externo, os relacionamentos se tornam problemáticos e todo o ambiente é hostilizado. Junto com a raiva, também surgem sentimentos de revolta, inveja e ressentimento. Ela comenta a importância das pessoas que cercam os pacientes nessa fase compreender que os ataques não devem ser considerados ou interpretados como algo pessoal, direcionado a elas, e sim como uma forma de catarse, descarga afetiva. 

3. Após a descarga proporcionada pela raiva, surge a fase denominada de negociação ou barganha: acontece após a pessoa ter deixado de lado a negação e o isolamento, “percebendo” que a raiva também não resolveu. Nessa fase busca-se fazer algum tipo de acordo de maneira que as coisas possam voltar a ser como antes. Começa uma tentativa desesperada de negociação com a emoção ou com quem achar ser o culpado de sua perda. Promessas, pactos e outros similares são muito comuns e muitas vezes ocorrem em segredo. Geralmente até pessoas que não eram religiosas passam a buscar uma fé, a fazer promessas como forma de garantir que, caso sejam poupadas, mudarão de vida totalmente. É comum as pessoas adotarem atitudes mais saudáveis nessa fase, como forma de recuperar o tempo perdido em relação à sua vida e sua saúde. Mas como geralmente são pacientes terminais, muitas dessas “soluções mágicas” não surtem o efeito desejado, e essa fase é seguida então da fase depressiva. 

4. Nessa fase ocorre um sofrimento profundo. Tristeza, desolamento, culpa, desesperança e medo são emoções bastante comuns. É um momento em que acontece uma grande introspecção e necessidade de isolamento, aparece quando a pessoa começa a tomar consciência de sua debilidade física, já não consegue negar as condições em que se encontra atualmente, quando as perspectivas da perda são claramente sentidas. Evidentemente, trata-se de uma atitude evolutiva; negar não adiantou; agredir e se revoltar também não; fazer barganhas também não resolveu. Surge então um sentimento de grande perda, de impotência diante do luto, da morte. 

5. O estágio seguinte é o da aceitação. Nele a pessoa já não experimenta o desespero e não nega sua realidade. As emoções não estão mais tão à flor da pele e a pessoa se prontifica a enfrentar a situação com consciência das suas possibilidades e limitações. Claramente o que interessa é que o paciente alcance esse estágio de aceitação em paz e com dignidade, mas a aceitação não deve ser confundida com um estágio feliz, ela é quase destituída de sentimentos.

Após a apresentação das fases de Kubler-Ross, antes que passemos à análise da obra de Freddie Mercury, faz-se necessário apresentar alguns dados biográficos de Farrokh Bulsara, a pessoa humana por detrás do astro denominado de Freddie Mercury.

É importante comentar que foram recortados apenas alguns aspectos de sua biografia a partir dos trabalhos de Freestone (2009) e Jackson (2015), visando a atender especificamente aos objetivos do presente artigo3. Assim, não foi objetivo do presente texto esgotar a biografia de um artista mundialmente aclamado, tanto em decorrência de sua obra quanto de sua personalidade única

De Farrokh Bulsara a Freddie Mercury: um breve recorte biográfico

Freddie Mercury é o nome artístico de Farrokh Bulsara, que nasceu na cidade de Pedra em Zanzibar, na África oriental, naquela época uma colônia britânica, em 5 de setembro de 1946, Era filho de Bonni e Jer Bulsara. Sua família era da religião parsis zoroastriano de Guzerate, na Índia. A família Bulsara se mudou da Índia para Zanzibar para que Bonni pudesse manter seu emprego no Banco Colonial Inglês, e lá o casal também teve sua segunda filha, Kashmira. Em 1954, quando Farrokh tinha oito anos, foi enviado para estudar na St. Peter Boarding School, uma escola para meninos na cidade indiana de Bombaim, tendo feito todo trajeto sozinho a bordo de um navio. 

Foi nessa escola que ele começou a ter aulas de piano. Aos doze anos, montou uma banda chamada The Hectics, com quem ele se apresentava em eventos escolares. Foi nessa época que ele passou a ser chamado de “Freddie” pelos amigos. Apesar de ser apreciado pelos mais velhos devido a seu carisma e talento musical, o garoto sofria bullying por parte de seus colegas, provavelmente em decorrência de sua personalidade afeminada, o que o levou a se tornar uma pessoa introspectiva e muito tímida quando perto de estranhos. Essa característica o acompanhou por toda a sua vida pessoal.

 Mercury era bissexual não assumido, embora seja costumeiramente descrito como totalmente gay. Em dezembro de 1974, quando perguntado diretamente sobre sua sexualidade por um repórter do jornal NME, Mercury respondeu que “houve uma época em que ele era jovem e desprotegido”4 e que teve sua “cota de humilhações escolares”, deixando implícito que ser gay o levou a ser discriminado por seus colegas de escola. Raramente Freddie falava sobre sua vida particular para a imprensa, e sua família e amigos seguiam a mesma linha. 

Sabe-se que quando uma pessoa é vitima de bullying ou assédio, ela utiliza de várias defesas para lidar com a situação emocional traumática. O trauma psíquico se refere a uma situação complexa, envolvendo o mundo interno e externo, que ativa a fantasia que decorre da dificuldade do indivíduo para lidar com a situação. Assim, o trauma psíquico é uma resposta a uma situação inesperada que provocou afetos pavorosos de medo, susto, angústia, vergonha ou dor psíquica. As consequências do trauma podem ser descritas como: desmoronamento do processo empático; estado de absoluta solidão interna e desconsolo externo; emudecimento e desesperança dos objetos internos bons; aniquilamento das possibilidades de ação do self; e o medo da morte; ódio; vergonha e desespero, conforme Macêdo (2014). 

Talvez essas vivências traumáticas de Bullying contribuíram para que Farrouk sentisse a necessidade de construir uma outra identidade isenta de lembranças dessa fase de sua vida, e que ainda pudesse proteger sua família e não divulgar sua origem aos fãs. 

Quando Freddie tinha dezessete anos, a família Bulsara, assustada com a Revolução Civil de Zanzibar de 1964, mudou-se para a Londres. Lá ele estudou arte na Escola Politécnica Isleworth, posteriormente se diplomando como designer gráfico através da Ealing Art College. Freddie era conhecido como um aluno exemplar e muito quieto. Tinha uma personalidade bastante introspectiva. Concluiu os exames finais do curso com conceito A. Possui uma série de trabalhos em arte visual, hoje disponíveis em alguns sites na internet. 

Após sua graduação, Freddie foi trabalhar como vendedor de roupas no famoso Mercado Kensington. Em 1970, ele conheceu Mary Austin, com quem viveu por cinco anos. Mary inspirou Freddie na música “Love of My Life”, de acordo com declaração do cantor e de seus companheiros de Banda, sendo Mary acima de tudo o verdadeiro amor dele. Em abril de 1970, Freddie se juntou ao guitarrista Brian May e ao baterista Roger Taylor no trio Smile, cujo nome foi alterado para “Queen”. 

Sempre se mostrou muito criativo, e mesmo quando ainda não tinha nem uma banda nem era famoso, já adotava todo um modus vivendi de um futuro astro. Seu processo criativo é descrito por um de seus biógrafos quando comenta que 

Há muito mais ao criar uma música do que colocar letras e notas no papel. Os sentimentos envolvidos e o motivo por trás deles significam muito, e Freddie tinha um poço sem fundo de sentimentos […] Uma vez que Freddie tomava sua decisão quanto à melodia, ele começava a trabalhar no que considerava a parte árdua da canção, colocando a letra em uma estrutura que fizesse sentido. Ele era muito perfeccionista, passaria horas se certificando de que não havia forma melhor de criar a canção, de que nenhuma melodia seria melhor para expressar o sentimento que ele desejava transmitir. Sua música era, em primeiro lugar e acima de tudo, para ele próprio. Isso lhe dava a oportunidade de expressar seus sentimentos e ser ele mesmo (FREESTONE, 2009, p. 80 – 83). 

Toda essa criatividade foi canalizada para suas composições futuras. Após cinco anos vivendo junto com Mary Austin, o envolvimento amoroso deles acabou quando Freddie confessou sua natureza homossexual para ela. Os dois mantiveram forte amizade até o fim de sua vida. Nessa época, seus amigos descobriram sua bissexualidade, pois ele passou a levar rapazes e algumas garotas para dormir em seu quarto. Nessa época, Freddie adotou a alcunha “Mercury” como sobrenome artístico, apesar de também ter sido conhecido pelos pseudônimos de Larry Lurex e pelo apelido Mr. Bad Guy. Conforme Jackson (2015), Freddie Mercury procurou se reinventar, e para isso, pesquisou na mitologia romana e escolheu Mercury, o mensageiro dos deuses. Assim se completava a transformação de Farroukh, da família Bulsara, para o novo Freddie Mercury, astro da banda de rock Queen. 

Muitos dos aspectos da identidade e personalidade de Farrokh, como por exemplo, o fato de ser um aluno exemplar, sua introspecção, seu isolamento em decorrência de seu sofrimento advindo da exclusão e bullying na infância e puberdade, sua homossexualidade ficaram em sua memória relacionada à sua identidade de Farroukh, não pertencendo a alcunha Freddie Mercury. Apresento a hipótese de que essa mudança de identidade atendeu a três tipos de demanda: 

1- Desvincular sua imagem pública de astro de rock com sua história pregressa e os valores religiosos de sua família; 

2-Utilizar mecanismos de defesa de negação e compensação, visando superar suas vivências traumáticas ligadas ao bullying sofrido em função de sua homossexualidade na juventude; 

3- Atender a uma demanda da sociedade moderna que privilegia o movimento narcísico e o espetáculo, o que o tornou um homem de seu tempo.

Um dos fatores a ser considerado em nossa análise é o que se refere ao contexto cultural onde se deu a constituição de uma nova identidade de Farrokh Bulsara, pois Freddie Mercury também considerou aspectos da sociedade onde vivia para atender a algumas demandas sociais e outras de ordem intrapsíquica. 

A sociedade moderna tem na liberdade, na autonomia individual e na valorização narcísica do indivíduo seus grandes ideais, orientados para o gozo e para o consumo. A ética da sociedade contemporânea configura um ideal de cultura em que os valores soberanos são o auto-centramento, o excesso de exterioridade, a exigência do sucesso, do enriquecimento a qualquer preço e de imediato. Há uma redução do homem à dimensão da imagem. A fama vem a ser o substituto da cidadania na cultura do narcisismo e da imagem. Assim, diante das exigências dos ideais da cultura contemporânea o sujeito responde no regime da idealização do ego (narcisismo), correndo o perigo de se perder na impotência e desamparo, conforme Macêdo (2010, 2013, 2014). 

Ser e parecer se identificam absolutamente no discurso narcísico do espetáculo, o que o sujeito perde em interioridade ganha em exterioridade. O sujeito se transforma numa máscara, para exterioridade, para exibição fascinante e para captura do outro. 

Quando se apresentava ao vivo, ele tinha algumas marcas registradas, cantava usando um microfone preso à metade de um pedestal, como se fosse seu cetro (“Queen” significa “Rainha”), podendo também representar um símbolo fálico, que comporia seu visual extravagante e sedutor de astro. 

A partir de sua nova identidade, ele se apresentou ao público com características de um astro: extrovertido, extravagante, sem limites, amante voraz, bissexual, fazendo jus ao slogan “sexo, drogas e rock and roll”, passou a viver a louca vida dos astros. Nas músicas que compôs nesse período ficavam claras as características de onipotência, narcisismo, já indicando certa falta de limites (fronteiriço borderline). Nesse período também passou a usar cocaína e a frequentar boates gays em Nova Iorque e em Munique. 

Segundo seus amigos, Mercury tinha centenas de parceiros, muitos deles puderam notar que ele não conseguia estar só, principalmente à noite. Durante suas raras revelações, ele admitiu que muitas vezes estava sozinho, acordava no meio da noite suando frio. O enorme apetite sexual de Freddie foi bem explorado por ele e pela mídia. É dito frequentemente que o enorme número de parceiros sexuais era uma tentativa de se livrar da solidão. Embora esta explicação pareça plausível, ela foi utilizada para ocultar anseio por relações sexuais. Em entrevistas, ele nunca reconheceu explicitamente seu gosto homossexual. Ele disse:

Amor para mim é uma roleta russa. […] Tenho relações com homens e mulheres. Se alguém estiver interessado, deixe eles se conhecerem. Podem pensar o que quiser sobre minha imagem bissexual, eu quero estar cercado de mistério (FREDDIE MERCURY, APUD WIKIPEDIA, s.d.)

Em 1985 ele deixou Munique e se instalou novamente em sua casa em Londres e ficou lá até sua morte, onde passou seus últimos anos. Lá ele se isolou até sua morte, seis anos depois. De acordo com o parceiro de Freddie, Jim Hutton, o cantor foi diagnosticado soropositivo em abril de 1987, mas decidiu negar todos os boatos sempre que questionado. No entanto, a saúde física de Freddie se deteriorou rapidamente e o Queen havia se aposentado dos palcos devido à condição de saúde dele.

A dor transmutada em canções: o legado e Mercury

Contra o sofrimento que pode advir dos relacionamentos humanos, a defesa mais imediata é o isolamento voluntário, o manter-se a distancia das outras pessoas (FREUD, 1930[1986], p. 96).

Na segunda parte do texto, serão apresentados trechos de seis músicas compostas por Freddie Mercury, que foram escolhidas pelo fato de traduzirem sua vivência emocional relacionada aos seus sentimentos ligados à elaboração da angústia diante do diagnóstico de AIDS e a proximidade com sua finitude e a morte.

1. Negação e Isolamento

Kubler-Ross (2004) em seu livro ‘ Os segredos da vida’ comenta que quando um paciente se depara com um diagnóstico de doença terminal, ele também tem a possibilidade de aprender algumas lições da situação. Quase todos nós enfrentamos os mesmos estágios: a lição do medo, a lição da culpa, a lição da raiva, a lição do perdão, a lição da entrega, a lição do tempo, a lição da paciência, a lição do amor, a lição dos relacionamentos, a lição do divertimento, a lição da perda, a lição do poder, a lição da autenticidade e a lição da felicidade. 

Se a vida é uma permanente escola, a perda é uma das principais partes do currículo. A perda é um buraco no coração, mas que também desperta o amor e pode despertar o amor de outras pessoas por nós. Cada pessoa experimenta as perdas em seu próprio ritmo e da sua maneira. A negação do primeiro estágio é uma bênção protetora (KUBLER-ROSS, 2004, p.47). 

Conforme seus biógrafos Freestone (2009) e Jackson (2015), a reação inicial de Mercury foi a de praticamente não querer sair de casa. Aqueles que de fato estiveram com ele perceberam que ele aparentava estar muito alheio. Freddie devia estar apavorado, mas não era um estado que pretendesse permanecer por muito tempo. Sua solução para essa ansiedade consistiu em distrair a mente com trabalho. Praticamente manteve em segredo seu diagnóstico até dos mais íntimos.

Deve ter sido necessário um ato de determinação incrível para apresentar um semblante despreocupado para o resto do mundo, para aquelas pessoas próximas a ele em termos pessoais e profissionais. Mas foi isso exatamente o que ele fez. Apesar de em segredo estar se submetendo a uma bateria de exames, Mercury compreensivelmente não se sentia pronto para lidar com uma realidade tão dura. Ele recorreu a uma capacidade que tinha cultivado quando criança para dominar o medo e afastar a dor emocional. De início, negou que houvesse algo errado. Para fazer isso, tentou nunca mais se referir diretamente à AIDS. Simplesmente seguia em frente com sua vida, mergulhando num turbilhão de atividade (JACKSON, 2015, p. 233-34).

A primeira delas é I want it all (eu quero tudo), lançada em 1989 no álbum The Miracle, primeiro álbum a ser lançado após o diagnóstico de AIDS de Freddie Mercury. Nessa música fica clara sua negação, sua vontade de aproveitar cada segundo de sua vida. Ele queria tudo, ainda se via como um jovem guerreiro gritando, com fúria, sem ver saída. Nesse fragmento, fica clara a vivência de Negação, seu desejo de trabalhar e fazer o máximo que puder para aproveitar o tempo que resta. Nessa fase ele também se isolou mais ainda, até dos amigos íntimos.

O fato dos médicos terem diagnosticado sua doença como terminal não eliminou o fato de que ele era um expoente em sua profissão. Ele apenas não tinha mais condições físicas de se apresentar, e foi forçado a aceitar esse fato de maneira desoladora. O que não quer dizer, porém, que fosse fácil do ponto de vista emocional lidar com isso.

Apesar de não poder se apresentar ao vivo, Freddie continuou a trabalhar com a banda até o fim; depois de descobrir sua doença, o cantor lançou um disco de ópera e também lançou mais dois álbuns com a banda, e continuou a gravar videoclipes com o grupo, sendo que o vídeo de These Are the Days of Our Lives, gravado em maio de 1991, foi o último trabalho de Freddie em frente às câmeras; para esconder as horríveis manchas que tinha na pele, ele teve de passar horas se maquiando, e o vídeo teve de ser lançado em preto e branco para camuflar sua aparência.

2. Raiva

Nessa fase a pessoa expressa raiva por aquilo que ocorre, geralmente essas emoções são projetadas no ambiente externo, os relacionamentos se tornam problemáticos e todo o ambiente é hostilizado. Junto com a raiva, também surgem sentimentos de revolta, inveja e ressentimento. Antes de sua doença, Mercury um dia afirmara que “Não espero chegar à velhice. Mais até: realmente não me importo”. Porém, quando se viu cada vez mais isolado, com sua saúde deteriorando muito rapidamente, apesar de todos os seus esforços, seu sofrimento foi enorme, sendo que chegou até a se perguntar como poderia continuar. 

O segundo trecho de música How can I go on? que faz parte do álbum Barcelona, álbum solo de Freddie Mercury que foi lançado em 1988. A música reflete seu sentimento de impotência e desamparo, a busca por alguém que o conforte, que o auxilie a lidar com a situação de sofrimento. A raiva surge em decorrência dos sentimentos de impotência, desamparo, depressão e isolamento.

3. Barganha

Recorrendo à sua enorme força de vontade, depois de uma década de abuso de cocaína, Mercury eliminou por completo as drogas, adotou uma dieta mais saudável e cultivou uma atitude mais branda acerca de muitas coisas, de repente a vida se tornara muito mais preciosa.

O convívio social em casa era mais ou menos o limite das forças de Mercury. Sua família continuava a ser muito importante para ele, e sempre que podia ele os ajudava.

Talvez essa mudança de atitude no sentido de cuidar mais pode refletir a etapa da barganha, com uma fantasia latente “se eu me cuidar bem, quem sabe eu consigo me livrar dessa situação?”. Realmente todo seu cuidado e tratamento auxiliaram para que sua vida se estendesse por mais alguns anos. Ele entrou na fase da negociação ou barganha mais por sua atitude do que por sua produção musical.

4. Depressão 

Nessa fase ocorre um sofrimento profundo. Tristeza, desolamento, culpa, desesperança e medo são emoções bastante comuns. Surge então um sentimento de grande perda. Nardi (2006) afirma que a depressão é um transtorno do humor grave e frequente, no qual o paciente apresenta sofrimento psíquico associado à falta de energia. A depressão é uma doença com sintomas físicos e psíquicos claros e intensos. A forma que a pessoa com depressão humor percebe o mundo externo ou a si mesmo é distorcida, o deprimido vê tudo como pior do que é na realidade. A pessoa se sente triste, cansada, com a concentração diminuída, a memória fica comprometida e com pensamentos pessimistas, bem como idéias de culpa e ruína. As expectativas podem ser sempre as piores, e em nenhuma circunstância sente-se otimista. O sono, o desejo sexual e o apetite podem estar alterados.

Os principais sintomas da depressão são: humor triste; perda de interesse e prazer; perda de energia e cansaço; alterações do apetite e do peso; alterações no sono; alterações nos movimentos: agitação ou retardo psicomotor; baixa autoestima e culpa; dificuldade de concentração; dificuldades sociais; uso e abuso de drogas; dificuldades no trabalho; distorção da realidade; ideias de morte são comuns na depressão e ainda uma diminuição da libido (MACÊDO et al, 2010).

Percebe-se que Freddie Mercury esteve nesse estado de depressão por um longo período, e os trechos de músicas a serem apresentados evidenciam a maioria desses sintomas, caracterizando essa fase descrita por Kubler-Ross. Para ilustrar sua produção musical dessa etapa, foram escolhidos trechos de duas músicas: a primeira é It’s a hard life, que foi lançada em 1984, no álbum The Works do Queen. Foi o ano que antecedeu sua mudança e abandono da vida em Munique e marcou o início de seu retorno a Londres e seu período de reclusão e isolamento; a segunda música é The show must go on, lançada no álbum Innuendo do Queen, em 1991, último álbum lançado com Freddie Mercury vivo, poucos meses antes de sua morte.

Nessas duas músicas as letras pontuam um sentimento de tristeza, de culpa e de dor. É uma vida muito difícil, principalmente quando o show, a vida (que ele amava fazer e viver) deveria continuar, porém sem sua participação. O único legado que poderia deixar eram as gravações de sua voz para o próximo álbum que o Queen gravaria em sua homenagem, o Made in Heaven, que foi lançado em 1995, quatro anos após a morte de Freddie Mercury. Ele trabalhou nessas gravações enquanto sua saúde o permitiu.

Em junho de 1991, Freddie continuou a gravar vocais para novas músicas do Queen para que a banda as terminasse depois, pois ele sabia que não sobreviveria por muito tempo, mas um certo dia teve de abandonar os estúdios totalmente por não ter mais forças nem para se manter em pé. Essas canções foram posteriormente lançadas no álbum póstumo Made in Heaven, em 1995, das quais foram escolhidos trechos de duas delas para ilustrar a próxima fase, a aceitação.

5-Aceitação

Kubler-Ross comenta sobre esse estágio que:

Muitos de meus pacientes moribundos têm revivido experiências de sua vida pregressa. Penso que se trata de um período em que ao paciente desligou todo o fluxo externo de entrada, em que começa a desligar-se a ficar introspectivo, em que tenta relembrar incidentes e pessoas importantes para ele, e em que repassa mais uma vez sua vida passada, numa tentativa de resumir talvez o valor dela e buscar seu sentido Descobrimos que pequenos momentos e lembranças marcantes com pessoas queridas são de grande valia para o paciente nos seus derradeiros dias (KUBLER-ROSS, 2004, p. 47).

Mercury já estava consciente de sua mortalidade que começou a planejar os detalhes de sua cerimônia fúnebre. Ele começou a fazer doações comprando casas para os amigos, para abrigos de animais, e começou a preparar um testamento, que foi firmado no dia 17 de setembro de 1991. Jackson (2015) afirma que Embora a equipe de especialistas que atendia o astro fizesse o possível para amenizar seu sofrimento, a doença foi uma horrenda tortura para ele. O vírus da AIDS atinge células cerebrais e do sistema nervoso central, o que provoca distúrbios neurológicos, além da deficiência imunológica, que deixa o corpo efetivamente indefeso contra infecções (JACKSON, 2015, p.239).

Em seus últimos dias, Freddie perdeu a visão e não conseguia sair da cama, por isso decidiu parar de tomar sua medicação, e passou a esperar pela morte. No início de novembro ele preferiu parar com a maior parte da medicação, pois estava tendo crises de cegueira e calores noturnos. Atormentado por feridas na boca e na pele, ele acabou precisando recorrer a aparelhos para respirar. Perto do fim, ele nem mesmo conseguia falar, ele tinha chegado a um ponto que simplesmente queria que tudo aquilo terminasse. Três semanas após a suspensão da medicação, ele alimentava-se exclusivamente de líquidos, e já tinha perdido quase totalmente o uso dos músculos. Para ilustrar essa fase de aceitação, foram escolhidas duas músicas: a primeira foi Too much love will kill you, e a segunda foi Mother love, as duas compõem o álbum Made in Heaven, uma homenagem póstuma para Freddie Mercury que o Queen lançou em 1995. Mother love foi a última música que ele gravou. Os trechos indicam uma atitude de aceitação, despedida e uma certa regressão emocional buscando o retorno de todo o prazer que o bebê sente com o amor de sua mãe.

Em 22 de novembro, Freddie chamou o empresário do Queen, Jim Beach, e pediu que ele fizesse um comunicado à imprensa para divulgar sua doença, que foi lançado no dia seguinte. Cerca de vinte e quatro horas após o comunicado ser feito, durante a noite, Freddie faleceu vítima de broncopneumonia, acarretada pela AIDS. Seu funeral ocorreu em Londres três dias depois e seu corpo foi cremado. Seu trabalho com o Queen e também seus álbuns solo e com convidados ainda lhe gera reconhecimento até os dias de hoje: Mercury é citado como principal influência de muitos outros cantores e bandas. Em 2006, ele foi nomeado a maior celebridade asiática de todos os tempos, sendo também eleito o maior líder de banda da história. Mercury já vendeu mais de 150 milhões de discos em todo o mundo.

Considerações finais

O objetivo deste texto foi abordar os estágios de elaboração do luto descritos por Kubler- Ross no que se refere às reações de Freddie Mercury a partir de seu diagnóstico de AIDS, partindo da análise de alguns fragmentos de sua obra musical. A leitura realizada foi a partir da abordagem psicanalítica, partindo do pressuposto de que, como artista, ele conseguiu sublimar sua angústia e sofrimento em suas músicas, deixando um legado para além de sua existência física. Um breve esboço de sua biografia foi apresentado visando delinear aspectos de sua personalidade e alguns fatores que constituíram a sua identidade, desde quando era Farrokh Bulsara até se transformar em Freddie Mercury. Os trechos das músicas que foram apresentados e analisados indicam que ele vivenciou todas as etapas descritas por Kubler-Ross para enfrentar a situação, desde quando recebeu o diagnóstico de estar infectado com o vírus da AIDS em abril de 1987 até sua morte, ocorrida em 23 de novembro de 1991, ou seja, quatro anos após. Espera-se com esse texto que os leitores alcancem uma visão do ser humano por detrás do mito de rock, que ainda hoje habita a memória de milhares de fãs em todo o mundo.

Sobre o artigo Recebido: 10/02/2015 Aceito: 10/03/2015

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Publicado na revista ECOS – Estudos contemporâneos da Subjetividade , v.1, p.52 – 70, 2015.

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