O transtorno Borderline

Profa. Dra. Kátia Barbosa Macêdo

O contexto da pós-modernidade  advém do desenvolvimento da ordem moderna e sua difusão global, ao mesmo tempo em que criou oportunidades bem maiores para os seres humanos gozarem de uma existência segura, trouxe mais violência exacerbada e em escala mundial. Em decorrência desse contexto, as psicopatologias emergem quando faltam ao sujeito os meios culturalmente codificados e legitimados para lidar com os conflitos derivados das imposições internas e externas.

A psicopatologia é produto de um entrave no processo de socialização, a cultura pode ser um fator patogênico quando produz uma dissimetria entre as exigências sociais e os meios adequados para cumpri-las. Esse contexto auxilia na configuração das novas psicopatologias na atualidade, às novas formas de subjetivação e, portanto, à caracterização da identidade pós-moderna.   Pode-se afirmar que o paciente borderline porta em sua dinâmica psíquica o paradigma da pós-modernidade.  Para melhor compreensão do presente estudo, faz-se necessário enfocar o Transtorno de Personalidade Borderline.

O Transtorno de Personalidade Borderline:  diálogos entre a  psicanálise e a psiquiatria

Quando abordamos o funcionamento psíquico incluímos uma estrutura e uma dinâmica, por isso, passível de transformação. Nosso psiquismo é constituído a partir da relação que o bebê desenvolve com sua mãe, se cria a partir do corpo.  O ser humano busca o tempo todo o encontro. Nascemos com potencialidades que devem ser encontradas, descobertas e acolhidas pela mãe para que possam ser desenvolvidas. Se não há o encontro, o bebê fica com uma lacuna naquela possibilidade, por não ter sido despertada. Cresce com uma falha que repercutirá em suas futuras relações e vínculos.

Desde a fundação da psicanálise por Freud  até os dias atuais, e considerando resultados de pesquisas e estudos desenvolvidos a partir da psicanálise, psiquiatria, neurociências, genética e psicofarmacologia,  houve uma ampliação do conhecimento não só para a etiologia das  doenças mentais, mas também para seu diagnóstico, tratamento e intervenções. Parte dessa ampliação contempla agora descrições e indicadores diagnósticos mais acurados, já havendo como referências o DSM 5- Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais (2014) , e  CID 11 – Classificação  Internacional de Doenças (2019) . Em ambos  pode-se encontrar uma melhor descrição desse transtorno de personalidade Borderline.

É importante ressaltar que quando se  aborda o transtorno borderline, há uma diversidade em relação aos quadros sintomáticos, gravidade, comorbidade. O conceito borderline adquiriu na literatura psicanalítica um status psicodinâmico de pacientes na fronteira entre a neurose e a psicose, na fronteira da analisabilidade com a não analisabilidade.  Historicamente,  o termo  “limítrofe” surgiu no final do séc. XIX indicando uma fronteira com a esquizofrenia, visando diagnosticar tanto na psiquiatria quanto na psicanálise.  Em 1925 Reich já descrevia os borderline como próximos da esquizofrenia, havendo um caráter impulsivo, mecanismo de dissociação.

 No DSM- 5 (2014,s.p.) o quadro denominado Transtorno da Personalidade Borderline/emocionalmente instável foi descrito como sendo  caracterizado por “um padrão global de instabilidade dos relacionamentos interpessoais; atos auto lesivos repetitivos; humor muito instável, impulsivo e explosivo, graves problemas de identidade, sentimentos intensos de vazio.”

 O conceito atual de personalidade decorre da interação de três componentes causais, a saber: variáveis neurobiológicas inatas ou genéticas; temperamento e experiências psicossociais precoces, pois esses componentes contribuem para a constituição da personalidade da pessoa, compreendida aqui como o modo característico de ser, vivenciar e reagir no mundo. Quando essa forma de interagir se torna desadaptada e causa sofrimento ou disfunção social, pessoal ou profissional significativos se considera que passaram a constituir um transtorno de personalidade, conforme o autor citado.

Sua etiologia é multifatorial envolvendo diferentes processos genéticos, bioquímicos, interpessoais e ambientais.  Para Kernberg, o principal conflito psíquico do indivíduo borderline é sua dificuldade no manejo da agressão, de origem inata, exacerbada pela predominância de experiências adversas no ambiente precoce.  Como não houve a possibilidade de modular, elaborar ou sublimar os impulsos agressivos abundantes durante a infância,  cria-se uma incapacidade primária para  as vivências e percepções em relação aos objetos internos e externos.  A criança passa então a utilizar mecanismos primitivos de splitting ou cisão. Para ele,  a criança fracassa em desenvolver a introjeção de objetos internos  com funções tranquilizadoras, (conforme Schestatscky,2015).

Dalgalarrondo (2019) também aponta como possíveis  fatores causais para o desenvolvimento do TPB a ocorrência, na infância, de vivências ligadas a traumas emocionais importantes; negligência, abuso físico e/ou sexual; problemas graves em termos de má ou não responsividade emocional de figuras adultas, além de componente genético. Essas experiências de adversidades graves na infância marcam o indivíduo de tal forma que no período adulto a qualidade e confiança nas relações interpessoais são gravemente afetadas. 

Atualmente tem se utilizado o termo espectro  para abordar vários transtornos mentais com vistas a sinalizar uma variabilidade ou gradação de  sintomas. Dalgalarrondo (2019) comenta que pelo DSM V (2014), são necessários pelo menos cinco das características para o diagnóstico da TPB:  esforços excessivos e desesperados para evitar abandono, real ou imaginário; intensa sensibilidade às menores pistas de possível abandono; relacionamento pessoais intensos, mas muito instáveis, com períodos de idealização ou paixão para outros de desvalorização, ódio e rancor profundos; perturbação da identidade, instabilidade em relação à autoimagem, preferencias, orientação sexual e de identidade de gênero; impulsividade  autodestrutivas, atos de autolesão; comportamentos suicida ou de automutilação; instabilidade emocional intensa, irritabilidade ou ansiedade intensas; sentimentos crônicos de vazio, sentimentos depressivos; raiva intensa e inapropriada, muita dificuldade de controlá-la. Ainda comenta que de forma transitória, podem ocorrer ideias de perseguição, de estar sendo traído, perseguido, ameaçado, ou sintomas de episódios dissociativos intensos decorrentes de  estresse. O TPB implica em grande impacto na vida pessoal e social do paciente, e de seus familiares.   Prevalecem como características a grande instabilidade nas relações pessoais, na autoimagem, na vida afetiva e emocional, na identidade pessoal e social, e um grande padrão de impulsividade em várias esferas da vida.  Para facilitar a compreensão, foi elaborada a figura 1. 

Se a psiquiatria apresenta de forma mais objetiva os indicadores e características do Transtorno Borderline, a psicanálise amplia sua descrição visando fornecer melhor  compreensão da dinâmica psíquica do paciente. O borderline está na borda, no limite entre a neurose e a psicose, entre o princípio do prazer e da realidade, entre o Eu e o Objeto.

Para além dos critérios diagnósticos  do DSM , Kernberg (1986)  descreveu uma estrutura mental estável subjacente que daria origem aos sintomas e comportamentos borderline, que denominou de organização borderline da personalidade.  Essa estrutura se caracteriza por três aspectos:

1 – Uma síndrome de difusão da identidade, constituída pela fragmentação das representação do eu e dos outros. A pessoa vivencia falta de coerência e consistência nos próprios valores, motivações e interações pessoas ou na capacidade de  perceber as motivações e estados mentais dos outros. Disso decorre o modo de  relações interpessoais caóticas, falta de empatia e graves dificuldades em sua interação;

2- No funcionamento psíquico do borderline, são utilizados alguns mecanismos defensivos primitivos como a negação, cisão, identificação projetiva, onipotência e idealização. Essas defesas são organizadas para lidar com a angústia ligada à destrutividade da criança, que existe desde o nascimento. É comum se referiram aos objetos externos de forma cindida, como idealmente perfeitos ou totalmente maus e perseguidores. A idealização e a desvalorização primitivas acentuam a cisão.  Outro mecanismo frequente é a identificação projetiva, como forma de comunicação.  A fantasia de onipotência também é comum.

3- O teste de realidade se refere  à capacidade de distinguir o eu do não eu, o dentro e o fora. Não há delírios e alucinações.

A contribuição de outros autores na descrição de traços  que caracterizam indivíduos  com o Transtorno de  Personalidade Borderline, também é importante pelo seu caráter elucidativo, dentre eles  estão Armony (2010), Green (1988), Hegenberg (2009) e Polichet (2000).

            Os pacientes borderline com uma estrutura própria onde a forma de comunicação, relação e conhecimento são caracterizados pela falha no desenvolvimento simbólico. Os símbolos e as palavras são de primeira ordem e expressam sentimentos, fantasias, afetos e pensamentos. Tem uma forma própria de lidar com a realidade e a fantasia, muitas vezes tendo dificuldade em diferenciá-las. Não reprimem os afetos, o que em parte explica sua impulsividade.  Suas frustrações são descarregadas de forma cindida, o outro se torna totalmente mau (ódio) ou totalmente bom (amor). A clivagem é emocional. (Armony (2010).

Quando contrariado, o borderline pode se tornar agressivo, não conseguindo controlar seus impulsos. A agressividade é frequente, podendo haver histórico de brigas em família ou com estranhos, através de explosões que poderiam ser evitadas por outro, mas que ele não consegue evitar. Há um exagero entre o fato ocorrido e a importância dada a ele pelo paciente (Hegenberg, 2009). Para o autor, o borderline tem relações explosivas e impulsivas porque sente medo de perder o objeto de apoio, e com isso não consegue opor-se a eles, podendo afastar ou agredi-los indo até o seu limite. Entra em conflitos por motivos aparentemente banais e incompreensíveis para o outro. Quando irritado, tende a dirigir veículos perigosamente, podendo provocar acidentes.

O abuso de álcool e drogas é frequente, pois é a forma de alienar-se, aliviando assim a angústia, o vazio e o tédio. Estes são alguns exemplos de autoagressão. Para escapar da dependência patológica a um outro (interno) indiferenciado, intrusivo e dominador (seja por falta ou excesso de presença “real”, os objetos primários, nos casos limites, configuram-se sempre para o sujeito, no âmbito psíquico e interno, como excessivamente presentes) o drogadição recorre à colagem a um pseudo-objeto externo manipulável. Em outras palavras, frente à existência de um objeto (interno) “intoxicante”, o drogadicto procura desintoxicar-se, paradoxalmente, por meio da intoxicação pelas drogas (Poulichet, 2000, citada por Savietto, 2011).

Outra característica muito frequente dos pacientes é a incidência de depressão ou estados melancólicos, descritos por Armony e Klien. Klien (2022) ao abordar a melancolia, afirma que o sujeito melancólico se retira do mundo externo e se desvincula de todo e qualquer objeto. O sujeito se volta contra ele mesmo, julgando-se e criticando-se, ou seja, tomando a si mesmo como objeto. Na melancolia, a pessoa se pune se recrimina e se deprecia. Na melancolia está a perturbação da autoestima. É exclusivamente esse sadismo que soluciona o enigma da tendência ao suicídio, que torna a melancolia tão perigosa. O autor ainda comenta sobre o sentimento de vazio a partir do qual o paciente tenta se apropriar do outro, apesar do medo de ser engolido (intrusão). Haveria uma tendência à depressão que seria compensada com hipomania ou com ansiedade. Alguns autores ainda  afirmam que , de forma transitória, podem ocorrer ideias de perseguição, de estar sendo traído, perseguido, ameaçado, ou sintomas de episódios dissociativos intensos decorrentes de estresse.

Referências

ARMONY, N. Borderline: uma outra normalidade. Rio de Janeiro: Revinter, 2010.

DALGALARRONDO, P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. 3 ed. Porto Alegre: Artmed, 2019.

DSM – 5 . Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais [recurso eletrônico] : DSM-5 / [American Psychiatric Association ; tradução: Maria Inês Corrêa Nascimento … et al.] ; revisão técnica: Aristides Volpato Cordioli … [et al.]. – 5. ed. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre : Artmed, 2014.


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