Me Deram espelhos, e vi um mundo doente

Me Deram espelhos, e vi um mundo doente – Kátia Barbosa Macêdo

Profa. Dra. Kátia Barbosa Macêdo

Em várias obras Freud (1913, 1929, 1030 e 1933) explicitou o trabalho da pulsão de morte na civilização, indicando que a renúncia pulsional cobrada como tributo teria como compensação a inclusão e a proteção social. Em tempos de guerra, essa solução de compromisso é relegada a um segundo plano, emergindo relações violentas, perversas e desumanas com maior frequência e intensidade. Estamos em guerra hoje, mas uma guerra diferente de outras anteriores. Dessa vez, a luta não é por ocupação de territórios geográficos e sim pela dominação de uma ideologia totalitária, excludente e assassina, que em nome de uma sobrevivência e supremacia econômica não hesita em condenar diariamente milhares de pessoas à própria sorte, o que muitas vezes significa à morte.   Direitos humanos são desconsiderados, acesso à serviços de inclusão, e proteção são negados. E apesar da pressão  e cobrança por ações interventivas, estamos assistindo  a uma indiferença e postergação das respostas. 

1, 2, 10, 1000, 279.286, (mortos) 11519609 (infectados)… Oras, mas quem se importa? Por todos os lados temos assistido a cenas de violência, humilhação, assédio e assassinatos se multiplicarem, cenas essas praticadas por pessoas que têm como característica comum um funcionamento perverso.  Na psicanálise, essas pessoas perversas são aquelas que por dificuldades em seu processo de desenvolvimento emocional e psíquico não alcançaram a representação e noção do outro, o princípio da alteridade. Portanto, desconhecem o que seja respeito, culpa. Não completaram o processo de humanização. Veem e tratam as pessoas como se fossem coisas, a partir deum lógica autocentrada programada para obter o que deseja, a qualquer custo, não importa como, de que forma ou através de quem. 

O aumento da violência doméstica (principalmente contra mulheres, crianças e adolescentes) somado ao aumento da violência social são fatores que corroboram ara a corrosão dos valores e da confiança nas instituições, pois quem deveria cuidar de nós e nos proteger se transforma em algoz. Isso leva a uma desconstrução da esperança, e sabemos que pessoas des esperançadas são mais frágeis, e, portanto, mais manipuláveis. 

Decorrente de todo um processo social, o contraponto dessa relação de dominação-submissão são as outras pessoas, com história de vida, família, sonhos, sentimentos (esperança dentre eles). Essas pessoas muitas vezes, em nome da sobrevivência, se veem obrigadas a se submeter a correr riscos que seriam desnecessários como usar transporte público sem as mínimas condições, trabalhar sem equipamentos de proteção (jurídicos e ergonômicos), tendo que exercitar a servidão voluntária por simples falta de opção (Boétie, 1999).  

A partir desse cenário, há grupos de pessoas que assistem atônitas, desesperadas, impotentes e traumatizadas ao teatro de horrores a que estamos expostos, involuntariamente.   Após completar um ano da Pandemia, assistindo diariamente seu avanço, o anúncio do quarto ministro da saúde no Brasil, vendo o crescimento vertiginoso do número de pessoas infectadas, morte e a ineficiência e incompetência do sistema social que condena milhares de pessoas diariamente, vejo o processo de banalização do mal (Arendt) se fortalecer, havendo uma cisão entre os fatos e nossa resposta emocional diante deles.  A banalização da injustiça social (Dejours, 1999) presente nos discursos convida a revisitar ou atualizar uma pergunta posta por nosso saudoso Cazuza: que país é esse? 

Em função da diversidade de condições internas e externas, as pessoas reagem de formas diferentes. Alguns começam a desligar o noticiário que apresenta notícias devastadoras, e mesmo ao se esquivarem assustados, são visitados pelo sofrimento ético.  Outros passam a simplesmente negar a existência do óbvio no real (um tipo de delírio, ou loucura, talvez?) Retomam a vida agindo como se nada estivesse acontecendo, partindo de um falso pressuposto que são melhores a maioria, e que por isso têm o direito de  fazer e frequentar festas, viajar, furar a fila da vacina, sem perceber que com essa atitude passam a colaborar (in-conscientemente?) para que a máquina mortífera expanda suas fronteiras.   Outra parcela dessas pessoas faz a opção de se envolver, e vencendo a inércia se mobilizam e começam a salvar vidas, auxiliar, criar vacinas. 

Talvez como resultado do exercício de minha profissão, ao voltar a mim mesma e perceber como isso me afeta, e de que forma me implico na situação, sinto um aperto no peito, um grito preso na garganta querendo silenciosamente sair. Em forma de sintoma? Melhor em forma de palavra, discurso capaz de transformar, contribuir para mudança. Percebo lágrimas brotando: tristeza? Esperança? Ambas. 

Os números também indicam resultados construtivos: cinco novas vacinas desenvolvidas e testadas em um prazo mínimo, algumas delas já sendo produzidas e distribuídas, mais de 10195598 de pacientes recuperados e  mais de 30 milhões de pessoas vacinadas no mundo. Esses dados indicam que algumas pessoas se importam, e fazem a diferença, o que me leva a lembrar de uma  frase do Jota Quest “ Estamos esperando dias melhores para sempre”.

Vacina para todos já, pois vidas (todas elas) importam!

Referências

Arendt, H. (1963) Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a Banalidade do mal. Rio de Janeiro: Cia das letras, 2017.

Boétie, E. De La (1457/1999) Discurso sobre a Servidão Voluntária. Trad. Karnal. São Paulo: Edipro.

Cazuza. Brasil, Disponível em https://www.letras.mus.br/cazuza/7246/

Dejours, C. (1999) A banalização da injustiça social. São Paulo, Editora da FGV São Paulo, 1999.

Freud, Sigmund. – Totem e Tabu (1913), In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, Vol. XII, Imago Editora, Rio de Janeiro, 197

______________ – Além do princípio do prazer (1920), idem, Vol XVIII.

______________ – Mal-estar na civilização (1930), idem, Vol XXI

______________ – Por que a guerra? (1933), idem, Vol XXII.  

Jota Quest. Dias melhores, disponível em https://www.letras.mus.br/jota-quest/46686/

Renato Russo, Música Índios, disponível em https://www.letras.mus.br/renato-russo/388284/

Texto publicado no site do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Goiânia, abordando mobilização subjetiva diante a Pandemia do Covid 19 no Brasil.


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