Profa. Dra. Kátia Barbosa Macêdo
O filme Cruella Cruel, dirigido por Craig Gillespie, lançado em 2021 pela Disney, se configura como mais uma obra de entretenimento que possui uma função de
suporte à elaboração psíquica. A exemplo de Malévola, dirigido por Joachim Ronning e lançado em 2019, que também apresenta outra vilã, introduz uma noção fundamental para a compreensão da dinâmica psíquica: a importância de relações saudáveis entre mãe e filhos para o bom desenvolvimento psíquico da criança.
Partindo de uma abordagem psicanalítica, o objetivo desse texto é pontuar alguns aspectos abordados no filme em relação ao filicídio; papel no trauma psíquico na emergência dos mecanismos defensivos primitivos, o mecanismo de cisão e a dualidade das pulsões de vida e morte, representadas pelas duas faces da personagem: de um lado Stella e de outro a Cruella De Vil.
Bettelheim (2007) já sinalizava que as estórias e os contos de fada são utilizados há milênios como instrumentos para transmitir significados manifestos e latentes, inclusive servindo como suporte para a elaboração
de angústias vivenciadas pelas crianças de todas as idades. É uma forma de arte única, que comunica à mente infantil nossa herança cultural. Desde então, vários autores têm utilizado a psicanálise como lente para abordar os contos e estórias visando compreender e elaborar aspectos da dinâmica psíquica, como
Corso e Corso (2007, 2011).
O trauma psíquico é uma resposta a uma situação inesperada que provocou afetos pavorosos de medo, angústia ou dor psíquica de forma tal que o funcionamento psíquico não conseguiu elaborar. Em uma situação traumática estão presentes três sentimentos: a angústia diante do perigo; o desamparo e a
impotência para lidar com a situação. O termo trauma foi utilizado por Freud em várias de suas obras, e com distintas representações, desde Comunicação Preliminar em 1893 até Esboço de Psicanálise em 1940.
O filme aborda dois traumas vivenciados pela personagem: a condenação à própria morte, e posteriormente presenciar a morte de Catherine, sua mãe. Em um primeiro momento, quando sua mãe biológica, A Baronesa, logo após seu nascimento, em situação de total desamparo, se separa dela e a condena à morte. Assim ela tem em comum com Édipo e Moisés a condenação à morte pelos pais, o filicídio, tema explorado por Freud em várias obras. Também possui em comum com eles o fato de ter contado com o auxílio de pessoas
que se negaram a cumprir a sentença mortífera e os entregaram aos cuidados de pessoas simples e amáveis, o que resultou em dois registros psíquicos: um registro traumático e primitivo, irrepresentável e carregado de Tanatos, e outro registro de amparo e amor, com predominância de Eros.
Esses dois registros são evidenciados na construção da personagem, pois Stella tem desde o nascimento, o registro primitivo da dualidade na pele, tendo metade de seus cabelos uma cor clara e metade escura. A representação de sua imagem ilustra tanto a defesa primitiva da cisão ou divisão, quanto seu conflito interno entre se conter, ser “boa” para ser aceita ou dar vazão à sua agressividade, que é julgada como violência. Stella tem um funcionamento borderline, com limites pouco definidos.
Como resultado de seu vínculo com Catherine, que desempenhou a função de uma mãe suficientemente boa, conforme Winnicott (1946), Stella desenvolveu uma capacidade de se vincular afetivamente, ainda que de forma limitada, e sua criatividade quanto criando laços. Guimarães Rosa (2006) afirma que
“a vida é um constante rasgar-se e remendar-se”, e parece ser essa tarefa utilizada por Stella no processo de elaboração, pois ao buscar conquistar um espaço de reconhecimento no ateliê da Baronesa, repete várias vezes no filme que é “muito boa com linhas e agulhas” e consegue conquistar a confiança
da Baronesa com seu talento.
Quando ela se depara com a verdade sobre suas origens, adota uma postura de arrogância, movida pela sede de vingança, resultado de sua identificação com o agressor. A partir desse momento o diretor começa a desconstrução da antiga imagem de vilã, até então explorada em outras montagens de filmes sobre essa personagem: ela não é totalmente má, e sim, uma pessoa dividida, traumatizada, com possibilidade de integração.
Ao assistir a esse filme, assim como ao filme de Malévola, fica evidente que a ideia equivocada de que há pessoas totalmente boas e outras totalmente ruins, reflexo de uma fase esquizoparanóide do funcionamento primitivo, conforme Klein (1946), não se aplica mais. Ou seja, até as piores vilãs, em função
de traumas sofridos, para sobreviver tiveram que desenvolver um falso self arrogante, idealizado como contraponto às suas vivências de desamparo e impotência. O caminho para a superação dessa cisão passa necessariamente
pela construção da representação do objeto total, e não mais parcial.
Outro movimento importante no filme para a evolução da personagem é que, apesar de haver uma expectativa do público de que se cristalize a “face má”, afinal, ela é uma vilã, há o predomínio de Eros. Ela se torna Cruella De Vil, porém, não mata e sim cuida dos cães, mantém e amplia suas amizades, e mais uma vez usa sua criatividade para construir um desfecho integrado.
Como Winnicott (1946) afirmou, todos nascemos com potencialidades a serem descobertas e desenvolvidas pelos vínculos, que contêm vivências de prazer e de sofrimento.
Referências
Bettelheim, B. (2007). A psicanálise dos contos de fadas. (Arlene Caetano, Trad.). Paz e Terra, 21ª edição revista.
Corso, D. L.; & Corso, M. (2006). Fadas no divã: psicanálise nas histórias infantis. Artmed.
__________ (2011). A psicanálise na Terra do nunca: ensaios sobre a fantasia. Penso.
Freud, S. (1986). Comunicação Preliminar. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. 2ª. Edição. Imago. (Obra original publicada em 1893)
__________ (1986). Esboço de psicanálise. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. 2ª. Edição. Imago. (Obra original publicada em 1940).
Klein, M. (1996). Notas sobre alguns mecanismos esquizoides. In M. Klein, Inveja e Gratidão e outros trabalhos. (Liana Chaves, Trad.). Imago. (Obra original publicada em 1946)
Rosa, J. G. (2006). Grande Sertão: Veredas. Nova Fronteira.
Winnicott, D. W. (2007). O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. (Irineu Ortiz, Trad.). Artmed. (Obra original publicada em 1946)
Associação Livre ; 10/11(11): 33-34, dezembro 2022.
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