Kátia Barbosa Macêdo
As versões
“Como disse o leão para o homem: existem muitas estátuas de homens matando leões, mas se os leões fossem os escultores as estátuas seriam bem diferentes” (Esopo).
É importante lembramos que uma história possui várias versões, por isso, devemos buscar conhecer as mesmas para termos uma visão mais real e completa do fato, pois muitas vezes a versão apresentada por uma pessoa pode carregar tons e interpretações muito particulares.
George Orwell já indicava em A Revolução dos Bichos (1945) uma artimanha que os ditadores utilizavam para alterar a ordem dos fatos, fazendo pequenas alterações nas normas e leis que passaram a referenciar a conduta na fazenda após a revolução. Esse argumento foi retomado e mais bem trabalhado em outra obra fantástica, “1984” publicado em 1949, onde fazia uma crítica ao totalitarismo da União Soviética, descrevendo novamente um mecanismo onde todos os livros e documentos históricos eram recolhidos e reeditados, com o objetivo de construir e sustentar uma nova versão que atendesse aos objetivos do poder vigente. Não é por acaso que sua obra alcançou reconhecimento mundial, e que inicio esse texto fazendo referência a ela, para comentar sobre o novo filme lançado sobre a incrível artista Amy Winehouse.
No dia 23 de julho de 2011, eu estava em Londres e foi noticiada a morte de Amy Winehouse. Além da tristeza pelo fato anunciado nos tabloides e na televisão, pois era uma artista talentosa, havia no ar um tom de uma morte anunciada, fazendo referência aqui a Garcia Marques (1981). A exploração pela mídia e os paparazzi de seus excessos, bem como a exposição de sua conduta contribuíram para a construção de uma imagem pública muito denegrida. Me lembro que eram comuns piadas, chistes se referindo a ela como “louca”.
Como psicanalista e fã da Amy, desde então, busquei mais informações sobre essa artista, provenientes de dois livros, o primeiro escrito por Tyler James (2021) , intitulado ‘Minha Amy’, e o segundo de autoria de Marly Monteiro Klien (2022), intitulado ‘Amy Winehouse: a dor de existir’, além do documentário biográfico ‘Amy ‘, de Asif Kapadia (2016)documentário esse que a meu ver, condiz mais com a realidade vivenciada por Amy do que esse filme recém lançado, produzido por seu pai, apresentando, claro uma versão deturpada em relação a alguns fatos da relação pai-filha.
Amy Winehouse era uma artista que que surgiu em um contexto pós-moderno, considerado por alguns autores como um dos fatores que contribuem para a constituição de funcionamento psíquico com características das denominadas ‘patologias do vazio’, que se caracterizam por apresentar traços como : falhas no processo de desenvolvimento psíquico que resultam em uma identidade mal constituída; a pessoa vivencia angústias de aniquilamento, fragmentação, intrusão, separação. Há uma necessidade e dependência do outro objeto para existir, relação indiferenciada e adesiva que leva a atuações com traços de violência do amor e do ódio arcaicos. A pessoa não consegue tolerar o conflito. Predominam as adições, e as vivências depressivas, de vazio, os distúrbios da identidade, atuações, violência, compulsões (Macêdo, 2012). Dentre essas patologias está o Transtorno de Personalidade Borderline.
Sabemos que todas as pessoas vivenciam certa variação de humor, instabilidade e irritabilidade, mas o que torna esses aspectos como indicadores de transtornos é sua intensidade e frequência. Quando há uma intensificação dessas características e são somadas ao abuso de drogas, atitudes de autoagressão, tentativas de suicídio e estados de dissociação indicam o transtorno.
Amy apresentava vários indicadores que caracterizam pessoa com transtorno de personalidade Borderline: medo do abandono; relacionamentos pessoais intensos e conflituosos; perturbação da identidade, instabilidade em relação à autoimagem, orientação sexual e de identidade de gênero; impulsividade autodestrutiva, instabilidade emocional intensa, irritabilidade ou ansiedade intensas; atos de autolesão, abuso de drogas e comportamento suicida ou de automutilação e sentimentos crônicos de vazio, sentimentos depressivos.
Klien (2022) fez uma análise psicanalítica de biografia e das canções de Amy Winehouse, e descreve vários aspectos de seu funcionamento psíquico que indicam certa fragilidade para lidar com questões afetivas. De uma família judia, tinha uma mãe muito ocupada e distante, que a rejeitou e que não conseguiu estabelecer um vínculo suficientemente bom com ela, e um pai depressivo e que mesmo após a sua morte priorizou o aspecto financeiro em detrimento da saúde da filha. Desde a infância há relatos de episódios depressivos, ela se cortava desde os nove anos de idade, desenvolveu bulimia na adolescência, e depois recorreu às drogas. As aulas de arte significaram a possibilidade de elaborar sua angústia. Porém os relacionamentos afetivos foram marcados por violência, instabilidade e abuso de drogas, o que resultou em sua morte trágica aos 27 anos. Esses dados também são corroborados por Tyler James (2021) que a descreve como fragilizada emocionalmente, explosiva e com relacionamentos abusivos que a levavam a dissociações.
Amy também tinha uma autoimagem denegrida. Como contraponto de um sentimento de menos valia, Amy utilizava o mecanismo de formação reativa, visando transformar a vivência de inferioridade em delírio de onipotência, mesmo que na fantasia. Tyler (2021, pag. 122) comenta que era perturbador a forma como ela demonstrava arrogância e certo delírio de onipotência. “Amy costumava dizer com frequência que a lei não se aplicava a ela. Era verdade, pois ela conseguia se safar de cada situação pelo simples fato de ser tão famosa.
Talvez uma das características mais indicadoras do Transtorno de Personalidade Borderline seja a impulsividade autodestrutiva, que pode apresentar nuances de autolesão, abuso de drogas ou comportamento suicida. Quando o paciente borderline é contrariado, geralmente se torna agressivo, não conseguindo controlar seus impulsos. Essa agressividade tanto pode ser direcionada para um objeto externo quando para a própria pessoa. É comum haver relatos de brigas, explosões de raiva, geralmente relacionadas ao medo de perder o objeto. Essa impulsividade também pode ser expressa pelo abuso de álcool e drogas é frequente, pois é a forma de alienar-se, aliviando assim a angústia, o vazio e o tédio.
Klien (2022) comenta que a relação de Amy que seu sofrimento nas relações e suas transformações corporais com abusos de drogas, magreza excessiva indica certo desprezo pelo próprio corpo, deixando transparecer que a ideia que faz de si como corpo não se sustentaria, tendo um corpo fragmentado, despedaçado, desorganizado por não haver a ideia de si como corpo. Amy se cortava desde os nove anos de idade. Ela também tinha várias tatuagens pelo corpo, que significavam muito para ela. Em uma entrevista, comentou que “As tatuagens são uma maneira de sofrer pelas coisas que têm um real significado para ti Na realidade, até gosto da dor, alivia-me” (Klien, 2022, p; 99) .
O pai de Amy: de algoz a pai dedicado?
Talvez duas situações comentadas por Tyler mais ilustrativas de como sua dependência de drogas foi gerenciada por seu pai foram: quando ela estava prestes a partir para uma turnê, quis se internar, mas ao perguntar ao pai o que ele achava, ele disse que ela não precisava se internar, a música Rehab fala sobre isso. Apesar disso, o filme apresenta o pai como preocupado com o uso de drogas.
Na sequência, em outra situação, mesmo estando desacordada após uma overdose, seu pai e o empresário a enrolaram em um cobertor, carregaram-na até o avião que a levaria para fazer mais shows e cumprir os contratos, ela acordou no avião sem saber onde estava. Mesmo não querendo cumprir a turnê, fez vários shows antes de cancelar o restante.
Uma outra situação ainda pior ocorreu quando, após Amy ter tido alta, foi para o Caribe se recuperar, juntamente com um amigo. O que seu pai fez? Foi visitá-la com uma equipe de filmagem, pronta para registrar a intimidade dela durante o tratamento, numa espécie de “reality show”. Tudo isso contribui para que sua imagem ficasse exposta, denegrida. Seu pai ainda realizou um documentário “My Daughter Amy” recebeu duras críticas por novamente expor sua vida sem o seu consentimento. Ao longo da carreira da cantora, Mitch foi acusado de ser negligente com a saúde da filha, apesar de ele negar em todas as entrevistas que concede sobre o assunto. O fato de ter produzido esse filme, apresentando uma versão muito distante do ocorrido, num esforço de construir uma narrativa que visou apagar os fatos indica mais uma vez sua atitude de exploração da filha, infelizmente.
É uma pena que o legado de Amy seja ofuscado por um filme como esse. Sugiro que quem realmente tiver o desejo de conhecer mais sobre Amy Winehouse busque outras fontes de dados, pois esse filme deturpa a história.
Referências
ORWEL, George. A revolução dos Bichos, versão em Pdf publicada por UEP, 2015, disponível em https://www.baixelivros.com.br/literatura-estrangeira/a-revolucao-dos-bichos#google_vignette
ORWEL, George. 1984, versão em Pdf publicada pela Companhia das letras, disponível em https://archive.org/details/orwell-1984_202101
GARCIA-MARQUES, Gabriel. Crônica de uma morte anunciada. Editora Record, 1981.
KLIEN, Marly Monteiro. Amy Winehouse: a dor de existir. Rio de Janeiro: Fólio digital, 2022.
MACÊDO, K. B.2010MACÊDO, K. B. O desamparo do indivíduo na modernidade. Ecos – Estudos Contemporâneos da Subjetividade, Rio de Janeiro, v. 2, p. 94-107, 2012.
TYLER, James. Minha Amy: a vida que partilhamos. Trad. Roberto Muggiati. 1 ed. Rio de Janeiro: Agir, 2021.
Documentário ‘AMY’, do diretor Asif Kapadia 2015 , disponível em https://www.youtube.com/watch?v=_2yCIwmNuLE
Back to Black, da diretora Sam Taylor-Johnson, 2024, disponível apenas nos cinemas.