Kátia Barbosa Macêdo
Inicio meus comentários a respeito do filme “Pobres Criaturas”, dirigido por Yorgos Lanthimos (2023), que teve como base o romance homônimo de Alasdair Gray (1992) fazendo alusão a essas três obras freudianas.
No final de “O futuro de uma ilusão” (1927), Freud conclui dizendo que a ciência seria uma caminho mais saudável do que a sociedade cultivar a ilusão da religião.
Em “O Mal-estar na Civilização” (1930), Freud retomou a tese da renúncia pulsional, já apresentada em “Totem e Tabu” (1913), para indicar que a pessoa renuncia a alguns impulsos visando obter em contrapartida a inclusão e a pretensa “proteção” oferecida pelo fato de participar de uma sociedade. Nessa obra, Freud já não acreditava mais na ciência como uma via ou saída, inclusive tendo apresentado uma previsão de falência do sistema civilizatório ( o que lhe rendeu a fama de pessimista).
Em “Para Além do Princípio do Prazer” (1920), Freud trouxe uma nova concepção da teoria pulsional, indicando um intrincamento das pulsões de vida e morte. Desde então, a dualidade pulsional passou a ser considerada constituinte do humano. O filme utiliza esse argumento o tempo todo, não há bom ou mau, certo ou errado.
Iniciarei enfocando o criador Dr. Godwin Baxter (God Win, aquele que vence Deus) da criatura Bella Baxter . O filme inicia com duas referências a monstros: Drácula e Frankestein. A primeira cena recria uma cena de um filme clássico, Drácula, onde uma mulher se suicida, e faz várias referências a outro clássico , Frankenstein, baseado na obra de Mary Shelley, escrito na transição para o início da era moderna.
Quando Nietzche afirmou “Deus está morto”, ele sinalizava a fundação de uma nova era, onde a ciência e o racionalismo substituiriam a religião, onde as referências de grupo seriam substituídas pelo individualismo, onde o tempo deixaria sua circularidade para se tornar cronológico, quantificável, retilíneo.
Frankenstein é um monstro. A própria ideia de monstro já contempla uma dualidade: causa repulsa e estranhamento, e ao mesmo tempo, personifica a ideia de redenção científica, que em seus progressos viria a dominar a provação da finitude da vida. Representa metaforicamente o embate entre o ser humano e suas próprias limitações, desamparo diante da morte. Frankestein também é considerado por alguns autores como a metáfora da modernidade. Por outro lado, causa repulsa, estranhamento, exclusão.
Umberto Eco em sua obra “A história da feiura” já sinalizava que o monstro, o grotesco é representado de formas diversas, dependendo da época, do lugar e do medos e angústias de determinado contexto. A reação diante do monstruoso é a repulsa, o medo, a exclusão. A noção de monstro traz a noção do estranho, do que está fora do lugar, do que não é natural aos olhos da ração.
Em sua obra “O Estranho” (1919), Freud afirmou que o que nos causa estranhamento é o mais conhecido em nós. Aquilo que não é percebido, posteriormente introjetado ou incorporado como fonte de prazer e conhecimento, encontro com o fim a projeção. A parte do próprio eu percebida como estranha, ameaçadora, desorganizadora é projetada no mundo externo, que passa a ser povoado pelos monstros desagradáveis. Representa a marca de excludência , complexo de inferioridade, transgressão ao modelo vigente e alternativa à sobrevivência. O monstro também representa uma resistência à forma perfeita, busca do ser pela própria autonomia através de quebra de expectativas, transgressão às normas sociais e reconfiguração identitária. Por esses motivos o monstro causa medo, angústia.
O Dr. Godwin Baxterparece um monstro, representa o resultado dos experimentos que seu pai realizou em seu corpo desde criança. Em algumas passagens do filme, ele relata que esses experimentos o transformaram em “coisa”, objeto manipulado de forma sádica por seu pai, tudo em nome da ciência. Ele carrega em seu corpo e em sua mente as marcas dos traumas (físicos e psíquicos). No corpo, cicatrizes, cortes, incisões, um corpo castrado, retalhado e que causa repulsa, exclusão e medo. Um monstro. No funcionamento psíquico, uma repetição em busca de simbolização. Se Deus está morto, eu posso ser Deus e dar a vida. A formação reativa como base para uma fantasia de onipotência.
Bella foi ressuscitada a partir de um suicídio, estando grávida. Surge o primeiro paradoxo: para salvar Bella, Dr. Godwinescolheu sacrificar o bebê, o corpo dele, porém ele implantou um cérebro de bebê em um corpo de mulher adulta e observou as fases de desenvolvimento. Cabe uma ressalva para comentar que para a psicanálise há uma memória corporal, ou seja, o corpo de Bella mantém de alguma forma memórias vivenciadas enquanto era ela Bella , antes do suicídio.
Como Freud sinalizou em “Inibição, sintoma e Angústia” (1926) , o que não foi elaborado se repete até ser ressignificado. Assim, ele repetia os experimentos do pai, porém com uma diferença, que vai se descortinando durante o filme: a construção de um vínculo afetivo com Bella. Aqui uma grande distinção entre as duas ‘criaturas’. Em Frankenstein, o criador é incapaz de amar sua cria, não há um vínculo amoroso entre ele e seu criador, o que o leva a um parricídio. No filme Pobres Criaturas, o Dr. Godwin Baxter desenvolveu um vínculo com Bella (que muitas vezes parecia uma fera, fazendo alusão à Bela e a Fera).
A sequência de cenas é uma aula à parte, abordando todo o desenvolvimento psicossexual, passando pela fase oral, anal, fálica, período de latência e genital. O segundo paradoxo é que houve uma mudança na atitude do Dr. Godwin Baxter enquanto criador, em relação à de seu pai. Ele foi submetido às experiências do pai sem possibilidade de evasão, configurando a tríade traumática: uma angústia além de sua capacidade de lidar; vivência de impotência e desamparo.
Porém, ele permitiu que Bella desenvolvesse sem a intervenção da censura, resultando em uma pessoa que não introjetou as normas de conduta social, ou seja, ela desenvolveu livremente, o que resultou em um ser amoral. Bella não realizou a renúncia pulsional, o que talvez esse seja um dos fatores que mais chocam algumas pessoas que assistem ao filme, pois causa uma angústia. Quando o Dr. Godwin Baxter auxilia a fuga de Bella há a inclusão da liberdade que ele nunca teve enquanto criatura. Por amor à Bella, ela a deixou ir e experimentar a vida.
Na segunda parte do filme, assistimos Bella viver aventuras com o advogado Duncan, um perverso que se desestrutura quando sente que não conseguiu controlar Bella, que não houve uma complementaridade na atitude de Bella em sua dinâmica sadomasoquista. Ao sentir que perdeu Bella, busca se vingar como forma de projetar sua ferida narcísica.
Bella só foi capaz de se emocionar ao ver a pobreza e o sofrimento dos bebês na miséria e doar todo o dinheiro, porque havia um registro de vínculo afetivo com Dr. Godwin . Mesmo quando ela se prostituiu, foi capaz de se vincular com a dona do bordel e com sua namorada.
Ao saber que Dr. Godwin estava morrendo, foi visitá-lo, por amor. Uma das partes mais bonitas e emocionantes do filme é quando o Dr. Godwin afirma que só com Bella sentiu o que é o amor, indicando que ele não ficou apenas na repetição estéril de seu pai, ele alcançou o que todos buscamos, mas poucos conseguem: amar e ser amado.
Assim, concluo minha análise, dizendo que desde Freud a Lennon, All we need is Love.
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