Análise do filme: “Você não estava aqui”

Profa. Dra. Kátia Barbosa Macêdo

No filme ‘Você não estava aqui’ é levantado a vivência atual do trabalho, com a reforma trabalhista uma nova composição do cenário laboral se expõe. O empregado se vê na obrigatoriedade de “venda” da sua força motriz, que é o trabalho para o outro (Batista & Macêdo, 2022).Um foco na expansão do capital do outrem, assim como mostra o personagem Ricky Turner que vivencia a realidade da “Uberização”, que em suma consiste na falta de vínculo empregatício e não respaldo ao empregado e sim ao que é dono do capital (empregador). Nesse sentido há uma ampliação do poder do quem tem o capital na jornada de trabalho, remuneração e constituição de tarefas.

O filme retrata de forma concomitante a precarização da atividade laboral e as perdas das relações sociais e culturais, da forma como traz Druck (2007) que a precarização é percebida nas formas de fazer essa vinculação (contrato), desregulamentação, adoecimento, acidentes de trabalho. Além disso, de forma fatídica a “fragilidade dos sindicatos” , pois essas entidades de cunho público agem em defesa dos interesses econômicos, profissionais, sociais e políticos dos seus associados. E de forma muito significativa atuam na organização de greves e manifestações, que vão vilipendiar melhorias as classes envolvidas que muitas vezes não tem voz nem vez.

Como Mattoso (1993) traz que a precarização acontece pela “insegurança no emprego” como é o caso Ricky Turner e Abbie Turner (casal do filme) e essa falta de estabilidade, contratos temporários e trabalhos a domicílio aos independentes que é movida pela perda dos direitos do trabalhador. A trama desse casal se passa na rotina ordinária no encontro com a dificuldade de fomentar a vida social/familiar frente às demandas e cargas horárias de trabalho. Como Franco, Drunk e Seligmann-Silva (2010) apresenta acerca da generalização do processo de fragilizar e instabilizar as relações sociais e de vida do sujeito.

Não obstante essa cultura de produtividade deixa de lado a recompensa desse colaborador e como afirma Dejours (2007) se não reconhecimento se prejudica ainda mais a relação do sujeito com o ambiente. Além disso, que ele se adoece quando apesar do esforço não é possível cumprir a tarefa na totalidade. E é nesse contexto de incertezas, instabilidade que o sujeito adoecido se concretiza, como mostra o filme.

No filme há uma iniciativa do empreendedorismo, da liberdade e alteração do contexto, conforme nos apresenta Maz Weber, formalizando o sistema de valores (crenças) a estruturação do sujeito em sua maneira de lidar com o outro e com destaque para o relacionamento interpessoal no trabalho. Não obstante, outro termo utilizado no filme é o trabalho em junto, como se a propriedade se equivalesse à constituição familiar. Dejours apresenta que o trabalho é a emancipação, por meio de suas relações, trazendo o aspecto de cooperação

O Filme “Você não estava aqui” retrata a crise financeira do ano de 2008 na Inglaterra. Ricky e sua família encontra-se em precária situação financeira. O “chefe” da família adquire uma Van para trabalhar com entregas e a esposa se mantém na profissão de cuidadora de idosos.

O tão falado trabalho informal não traz a recompensa prometida e aos poucos, as consequências negativas deste trabalho repercutem entre os membros da família, na qual uns são “jogados contra os outros”. O filho encara o pai como um perdedor: “Desse jeito eu vou acabar como você”.

O trabalho é um elemento que estrutura a sociedade. Relaciona-se à cultura, à política, à economia,….está presente em todas as instâncias sociais. No filme, algumas críticas são feitas a este tipo de trabalho vinculado à uma plataforma. O trabalhador é um parceiro? Mas que parceria é essa, na qual somente um dos lados se beneficia? Tem-se um trabalho sem chefe, sem controle, ou estabelece-se um controle velado?

Assim como relatava Foucault, existe uma vigilância e uma punição caso a produtividade não seja alcançada: “Se você não receber, eu não sou pago”. A impressão é que se está em um panóptico digital, uma prisão na qual o medo de estar sendo vigiado induz o comportamento adequado. Mais do que estar sendo vigiado, pode ser punido. Outro aspecto retratado é a velocidade imposta pela plataforma. As entregas devem ser rápidas. Por tal motivo, os entregadores desprezam a diurese em garrafas plásticas.

A crença de que sempre podemos mais, produzimos mais e mais rápido está presente nessa Sociedade do Cansaço, onde os dominados se apropriam da ideia de que o trabalho é bom, dignifica o homem e eles mesmo se prejudicam. E se o fracasso vier, a culpa é do próprio trabalhador. Em função do desejo pelo desempenho e da superação das barreiras, passam a acreditar que são patrões de si mesmo.

O sistema estimula a competitividade e o individualismo e promove quem aceita compactuar. Há uma perversidade às claras. As pessoas são usadas e tratadas como coisas. Não há empatia nessa relação. No tocante aos riscos ocupacionais, no filme estão presentes, em especial, os classificados como sendo da categoria ergonômico. Jornadas de trabalho extenuantes, sobrecarga, falta ou nenhuma autonomia, ausência de pausas….etc…Todos estes aspectos da Ergonomia cognitiva e organizacional estão presentes. Tanto a Ergonomia da atividade quanto a Psicodinâmica do Trabalho podem auxiliar na mitigação de tais riscos.

A empresa familiar de acordo com Macêdo (2002) é responsável por quase toda economia do Brasil, mas devido a aspectos administrativos, ainda não consegue concorrer com multinacionais e/ou grandes empresas de capital aberto.

A questão da centralização da gestão, bem como o paternalismo, contribui para que a tomada de decisões seja pouco flexível, menos racional, se comparado a outros modelos de gestão e lenta, criando uma ilusão de proteção, já que as decisões dentro da empresa familiar tendem a privilegiar mais o dono do capital, em relação aos seus colaboradores, tais aspectos foram elencados a partir de Macêdo (2002)

Outro ponto importante do filme é que o sindicato só aparece como uma lembrança antiga, a ideia de sindicato surgiu de uma foto apresentada por uma idosa, paciente da mãe de família Abbie Turner, assim, a ideia de direito do trabalhador pareceu ultrapassada, mas isso não é verdade; nunca foi tão necessário lutar por direitos aos trabalhadores como agora. A desarticulação dos trabalhadores fomentada pela falsa ideia de liberdade ao retirar a paternidade de uma empresa é tão danosa, se não pior do que o modelo antigo salientado por Macêdo (2002) da empresa familiar, pois antes os prejuízos eram de responsabilidade da gestão autocrática e posteriormente distribuídos entre todos, agora os prejuízos são completamente partilhados pelos colaboradores; eles saem das mãos da gestão e das multinacionais diretamente para as mãos dos colaboradores, que sozinhos precisam arcar com prejuízos organizacionais e lutar por sua sobrevivência, tal realidade é tão perversa que termina por adoecer toda uma família e reflete na sociedade.

O artigo de Macêdo (2002) sugeriu a abertura de capital e o fortalecimento das empresas familiares via sindicato, mas atualmente o que se observa é a formação de um cenário de desarticulação entre os trabalhadores e o que era para ser corporativismo e proteção tem dado lugar ao isolamento, solidão, individualismo e o surgimento das patologias contemporâneas de trabalho que servem apenas para reverberar, pobreza, desigualdade e injustiça social.

Referências

As relações de trabalho em tempos de crise: o olhar da Psicodinâmica do trabalho: teoria, método e casos.1 ed. Curitiba: Editora CRV, 2022, v.1,

Dejours, C. Organização do trabalho e saúde mental: quais são as responsabilidades do Manager? In: Macêdo, K.B. O diálogo que transforma: a clínica psicodinâmica do trabalho. Goiânia: Editora da PUC-GO, 2015. Páginas 22 a 45.

O gerenciamento de riscos ocupacionais e a contribuição da ergonomia e da psicodinâmica do trabalho: uma revisão bibliográfica. Brazilian Journal of Development., v.7, p.117702 – 117714, 2021. Disponível em https://brazilianjournals.com/ojs/index.php/BRJD/article/view/41412

Psicologia das organizações e do trabalho: perspectivas teórico-práticas.1 ed. São Paulo: Vetor Editora, 2022, v.1, capítulo Gestão do teletrabalho e ensino remoto: ações de aprendizagem formal e informal como ferramentas de intervenção p. 88-105.

Macêdo, K. B. Cultura, poder e decisão na organização familiar brasileira. RAE (Impresso), Fundação Getúlio Vargas-São Paulo, v. 1, n.1, p. 1-16, 2002. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/raeel/v1n1/v1n1a14


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