As mudanças mobilizadas na organização do trabalho do oficial de justiça durante a pandemia da COVID-19

Profa. Dra. Kátia Barbosa Macêdo; Lorena Rodrigues Lourenço; Ronaldo Gomes-Souza

Publicado na  Revista de Psicopedagogia, Psicologia escolar e Educação v. 16 n. 2, jul-dez (2023): Temas Livres em Psicologia e Educação.

Resumo

No contexto da pandemia, mesmo frente às diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre o isolamento social, houve registro de trabalho presencial dos oficiais de justiça, agravando as possibilidades de contágio. Seja remoto ou presencial, o Judiciário não disponibilizou suporte ou treinamento prévio, tanto para questões técnicas de novas plataformas/tecnologias, quanto para questões interpessoais e de saúde mental para realizarem seus respectivos trabalhos. O objetivo desta pesquisa foi analisar as mudanças que ocorreram no trabalho dos oficiais de justiça em virtude da pandemia da COVID-19 e a mobilização subjetiva desses trabalhadores frente a essas alterações organizacionais. Os resultados desvelam narrativas que enfatizam tanto certas vantagens quanto dificuldades de adaptação às modificações na organização do trabalho dos oficiais de justiça diante da pandemia da COVID-19; bem como a descrição das vivências de prazer-sofrimento. Como fontes de prazer e possíveis benefícios citados pelos oficiais pesquisados foram: a redução dos riscos inerentes ao trabalho de rua; celeridade processual e da eficiência do trabalho judiciário. Como desvantagens e fontes de sofrimento: intensificação e aceleração do trabalho; aquisição de instrumentos para desenvolver as atividades de forma remota e presencial com recursos financeiros próprios; falta de treinamento e suporte para utilizar recursos tecnológicos; falta de suporte psicossocial para os demais desafios da profissão. Conclui-se que as mudanças mobilizaram vivências de prazer e sofrimento e o contexto pandêmico tornou ainda mais evidente desafios históricos da categoria, como a falta de: diálogo, poder de decisão e suporte técnico e psicossocial.

Palavras-chave: psicodinâmica do trabalho; mobilização subjetiva oficial de justiça; pandemia.

Abstract

In the pandemic context, even in the face of the guidelines of the World Health Organization (WHO), on social isolation, there was a record of face-to-face work of bailiff, aggravating the possibilities of contagion. Whether remote or face-to-face, the Judiciary did not provide support or prior training, both for technical issues of new platforms/technologies, as well as for interpersonal and mental health issues to carry out their respective work. The objective of this research was to analyze the changes that occurred in the work of bailiffs due to the COVID-19 pandemic and the subjective mobilization of these workers in the face of these organizational changes. The results reveal narratives that emphasize both certain advantages and difficulties in adapting to changes in the organization of the work of bailiffs in the face of the COVID-19 pandemic; as well as the description of the experiences of pleasure-suffering. As sources of pleasure and possible benefits cited by the officers surveyed were: the reduction of risks inherent to street work; procedural speed and efficiency of judicial work. As disadvantages and sources of suffering: intensification and acceleration of work; acquisition of instruments to develop the activities remotely and in person with own financial resources, lack of training and support to use technological resources; lack of psychosocial support for the other challenges of the profession. It is concluded that the changes mobilized experiences of pleasure and suffering, and the pandemic context made even more evident historical challenges of the category, such as the lack of: dialogue, decision-making power and technical and psychosocial support.

A pandemia da COVID-19 trouxe um problema de saúde pública global que imprimiu mudanças sanitárias, psicossociais, políticas e econômicas (Barcala & Faraone, 2020; Costa, 2020). A rápida propagação da doença e a imposição do distanciamento social como forma de prevenção promoveram rápidas transformações nas dinâmicas de trabalho, tanto no setor privado quanto no setor público, inclusive nos órgãos do Poder Judiciário.

Com o intuito de garantir o acesso à justiça e, ao mesmo tempo, evitar o contágio pela COVID-19, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estabeleceu diretrizes para a realização do trabalho judiciário durante esse período emergencial. Houve a suspenção do trabalho presencial de magistrados, servidores, estagiários e colaboradores das unidades judiciárias, assegurando-se a manutenção dos serviços essenciais por meio remoto.

Pesquisa realizada pelo CNJ (2020) apontou que apenas 5% dos trabalhadores judiciários estavam em regime de trabalho remoto antes da pandemia do coronavírus. Após, 79% dos servidores tiveram o regime de trabalho alterado do presencial para remoto, 10% continuaram exercendo suas atividades de forma presencial em sistema de rodízio e somente 6% dos trabalhadores tiveram suas atividades suspensas em razão da incompatibilidade com o regime de trabalho remoto.

Dentre os trabalhadores que continuaram exercendo suas atividades de maneira presencial, mesmo durante o período da pandemia da COVID-19, estão os oficiais de justiça (Bona, 2020). Estes são auxiliares da justiça que têm como função típica a execução das ordens emanadas das autoridades judiciárias, a partir da atividade da entrega de mandados. Os mandados são documentos oficiais do judiciário, elaborados pelos juízes, nos quais devem ser entregues, pelos oficiais de justiça, para os cidadãos terem ciência dos seus diferentes conteúdos e propósitos, embasados nas leis brasileiras, e que devem ser cumpridos pelos cidadãos, com um caráter de determinação. O que está no mandado deve ser cumprido pelos cidadãos, a mando dos juízes.

O Código de Processo Civil (2015) estabelece que o mandado será cumprido por oficial de justiça quando determinado pela lei ou pelo juiz, inclusive quando frustrada a tentativa de execução da ordem por meio eletrônico. O papel do oficial de justiça é comparecer, pessoalmente, ao endereço constante no mandado, para proceder à execução da ordem de maneira presencial.

Tendo que os oficiais de justiça, por realizarem trabalho presencial e externo (nas ruas, fora das dependências dos Fóruns e Tribunais), estão vulneráveis a adoecimentos, acidentes e sujeitos a riscos psicossociais: trânsito, condições/fatores climáticas (calor, frio, chuva…), violência urbana, sentimento de insegurança, sofrimentos psíquicos diversos (Machado et al., 2019).

No contexto da pandemia, mesmo frente às diretrizes da OMS (Leite, 2020) sobre o isolamento social, houve registro de trabalho presencial dos oficiais, agravando as possibilidades de contágio. Porém, as atividades mais internas, em casa, de forma remota (home office), foram as mais frequentes. Entretanto, a organização não disponibilizou suporte ou treinamento prévio, tanto para questões técnicas de novas plataformas/tecnologias, quanto para questões interpessoais e de saúde mental para realizarem seus respectivos trabalhos de forma remota.

Questiona-se, portanto, como seria possível manter a prestação dos serviços judiciários essenciais pelo oficial de justiça diante das medidas de isolamento social impostas pela pandemia da COVID-19, e sem suporte adequado, desdobradas em 2 perguntas, a saber: a) Quais foram as transformações ocorridas no trabalho do oficial de justiça para que ele pudesse ser efetivado durante o período da pandemia? b) Que tipo de vivência (prazer e sofrimento) essas mudanças mobilizaram nos oficiais de justiça?

Inferimos que as respostas a essas perguntas possuem relevância jurídica e social. Em relação ao Direito, elas dizem respeito à modificação de procedimentos de atos processuais importantes para a prestação jurisdicional. Socialmente, elas traduzem a mobilização que o trabalho com riscos gera para o trabalhador e para a comunidade.

O objetivo deste estudo foi analisar as mudanças que ocorreram no trabalho dos oficiais de justiça em virtude da pandemia da COVID-19 e a mobilização subjetiva desses trabalhadores frente a essas alterações organizacionais. Primeiramente realizou-se uma avaliação das transformações ocorridas na organização do trabalho dos oficiais de justiça em virtude da imposição das medidas de isolamento social. Após, foram analisadas as vivências de prazer-sofrimento desses trabalhadores diante das mudanças organizacionais.

Método

Este estudo fundamenta-se na Psicodinâmica do Trabalho (PdT), abordagem teórico-metodológica criada por Christophe Dejours. Ela tem como finalidade a “análise psicodinâmica dos processos intersubjetivos mobilizados pelas situações de trabalho” (Dejours, 2011, p. 59).

Em PdT, a análise envolve duas dimensões: a organização do trabalho e a mobilização subjetiva. Essas dimensões relacionam-se intimamente, na medida em que organização do trabalho é considerada a fonte geradora de todas as tensões e constrangimentos capazes de mobilizar a subjetividade do sujeito e até desestruturar a sua vida psíquica (Fleury e Macêdo, 2015).

A organização do trabalho compreende aspectos relacionados com as condições de trabalho. Ou seja, a estrutura física, o ambiente de trabalho, as normas e procedimentos, a duração da jornada de trabalho, os prazos, os riscos ocupacionais entre outros (Borges, Costa, Alves- Filho e Falcão, 2015; Fleury e Macêdo, 2015; Anjos, 2013; Dejours e Abdoucheli, 1994). Também compreende as interações hierárquicas (entre subordinados e chefias), as interações coletivas intra e intergrupos (entre os colegas de trabalho) e interações externas (com os clientes e usuários) (Anjos, 2013; Dejours, 2012).

Entende-se por mobilização subjetiva os modos de engajamentos, de pensar, de sentir e de agir dos trabalhadores, seja de forma individual, ou coletiva. A mobilização subjetiva do trabalhador é composta de: vivências de prazer e sofrimento; estratégias defensivas e espaço de discussão coletiva (Bueno & Macêdo, 2012, p.313).

A depender da forma como o trabalho está organizado, ele pode mobilizar no trabalhador tanto vivências de prazer quanto de sofrimento (Dejours, 2012). As vivências de prazer – sensações agradáveis de contentamento ou de alegria, normalmente relacionada à satisfação de um desejo, vontade ou necessidade – surgem quando a organização do trabalho proporciona ao trabalhador uma atividade psíquica capaz de evitar o sofrimento e ressignificar sua relação com o trabalho.

Por outro lado, as vivências de sofrimento – emoções negativas decorrentes de uma experiência aversiva e que está geralmente associada com dor e infelicidade – ocorrem quando a organização do trabalho não permite sua transformação em algo socialmente aceito ou em prazer. Assim, o sofrimento “emerge quando todas as possibilidades de adaptação ou de ajustamento à organização do trabalho pelo sujeito, para colocá-la em concordância com seu desejo, foram utilizadas, e a relação subjetiva com a organização do trabalho está bloqueada” (Dejours e Abdoucheli, 1994, p. 127).

Diante do sofrimento, os trabalhadores tentam utilizar estratégias para driblá-lo. As estratégias de enfrentamento contra o sofrimento advindo do trabalho, também chamadas de estratégias de regulação da organização do trabalho, são os recursos utilizados pelos trabalhadores para, como o próprio nome sugere, regular a organização do trabalho, enfrentar o real do trabalho, realizar a contento suas tarefas e subverter o sofrimento em prazer. Consistem em modos construídos pelos trabalhadores para enfrentar o sofrimento, modificando os aspectos da organização do trabalho que o agravam (Moraes & Moura, 2015).

Participantes

Participaram dessa pesquisa 12 oficiais de justiça de um órgão estadual do Poder Judiciário da Região Centro-Oeste do Brasil, escolhidos dentre os 624 ativos. Todos apresentavam formação de nível superior, sendo 8 mulheres e 4 homens. A média de idade dos participantes foi de 48,4 anos, e a média de tempo de serviço no cargo de oficial de justiça foi de 18,5 anos. Dentre os participantes, 9 trabalhavam na capital e 3 no interior do Estado.

A escolha dos participantes ocorreu de forma aleatória, mas baseada nos seguintes critérios de inclusão: a) ser oficial de justiça; b) estar na ativa; c) ter mais de 5 anos no exercício do cargo; d) aceitar participar voluntariamente e gratuitamente do estudo; e) assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Instrumentos

Foi utilizado um roteiro de entrevista semiestruturada que compreendeu questões sobre o trabalho dos oficiais de justiça durante a pandemia da COVID-19. Também foram utilizados espaços de discussão coletiva com os participantes para a validação/refutação dos resultados.

Procedimentos

A pesquisa teve aprovação da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa – CONEP1, CAAE 39180220.5.0000.0037.

A coleta de informações ocorreu por meio de análise documental e entrevistas individuais. Os documentos analisados foram basicamente as normas administrativas publicadas para regulamentar o trabalho do oficial de justiça durante o período da pandemia da COVID-19.

As entrevistas individuais foram realizadas com 12 oficiais de justiça e tiveram duração de aproximadamente duas horas cada. Elas foram gravadas em áudio e vídeo, transcritas e submetidas a análise clínica do trabalho por três juízes, visando garantir a triangulação de dados, validade e fidedignidade.

Os resultados obtidos a partir das entrevistas foram apresentados e validados pelo grupo de participantes em duas sessões de espaço de discussão coletiva. Essas sessões tiveram a duração de aproximadamente duas horas cada. Elas também foram gravadas em áudio e vídeo, transcritas e submetidas a análise clínica do trabalho.

Para manter a confiabilidade e sigilo, os participantes foram identificados pela letra “P”, de “Participante”, seguido do número indicativo da ordem em que as entrevistas foram sendo realizadas (1, 2…12). Assim, eles foram nomeados da seguinte forma: P1, P2… e P12.

Resultados

Modificações na organização do trabalho dos oficiais de justiça diante da pandemia da COVID-19

 Para manter a prestação dos serviços judiciários essenciais prestados pelos oficiais de justiça durante o período da pandemia da COVID-19, foram necessárias adaptações e transformações na maneira de trabalhar. De acordo com os oficiais de justiça, a pandemia gerou mudanças significativas em seu trabalho, principalmente em relação a forma de execução, a carga de trabalho e os prazos.

Eles dizem que antes da pandemia o trabalho era predominantemente externo e exclusivamente presencial. Ao receber o mandado, o oficial de justiça deveria dirigir-se até o endereço constante no documento e executar a determinação do magistrado presencialmente, momento em que deveria coletar a “nota de ciência”, ou seja, a assinatura da pessoa contra quem a ordem foi emanada. A certificação do cumprimento do ato ocorria por meio de declaração circunstanciada feita pelo próprio oficial de justiça, com indicação do dia e hora da diligência, sob a prerrogativa da fé pública.

Trabalhar nas ruas era uma situação que expunha os oficiais de justiça a risco de sofrerem violência física, psicológica e patrimonial. Gerava medo e insegurança, pois eles trabalhavam sozinhos, sem equipamentos de segurança, em locais perigosos e insalubres.

Os oficiais de justiça também contam que, antes da pandemia, o uso da tecnologia e dos sistemas de informática no seu trabalho ainda era tímido. O uso restringia-se a certificação dos atos, recebimento e devolução de documentos na Central de Mandados – departamento administrativo responsável pela distribuição das tarefas entre os oficiais de justiça.

Contam que a Central de Mandados era estruturada de maneira física (não virtual), funcionando de maneira burocrática e desvinculada do processo judicial eletrônico. Explicam que apesar dos mandados serem elaborados em arquivo digital pelos Cartórios/Varas, eles eram impressos para serem entregues aos oficiais de justiça, já que estes não dispunham de acesso direto ao documento digitalizado. Após o cumprimento do mandado, o oficial de justiça certificava a diligência no sistema informatizado, mas tinha que imprimi-lo para juntá-lo ao mandado físico e devolvê-lo à Central de Mandados. Após encaminhar o mandado com a certidão para a respectiva Vara, os documentos físicos eram digitalizados e juntados ao processo judicial eletrônico.

Segundo os oficiais de justiça, todo esse trâmite gerava morosidade, ineficiência, perda de documento, custo com recursos humanos e material etc. Um dos participantes fala sobre o seu anseio, mesmo antes da pandemia, de se criar uma Central de Mandados

Virtual, totalmente integrada com o processo judicial eletrônico para gerar maior celeridade, eficiência e produtividade no trabalho do oficial de justiça.

Desde 2008 o Tribunal de Justiça já tem processo digitalizado. Porque que naquele processo digitalizado tem que emitir algo físico, esse algo físico ir por malote pra um lugar, aí esse algo físico ir pra mão de um oficial de justiça de forma física e aí pegar a assinatura e depois ter que digitalizar de novo? Uai, se o processo é digital tudo já teria que ser digital, né? […] A Central de Mandados Digitalizada vai ser necessária, já é necessária há muito tempo. (P3)

Além disso, antes da pandemia da COVID-19, os oficiais de justiça contam que havia sobrecarga de trabalho e prazos curtos para o cumprimento dos mandados (3, 10 ou 15 dias). Os trabalhadores que excedessem os prazos eram punidos financeiramente, mediante a suspensão do recebimento de mandados cíveis com custas processuais. Com o advento da pandemia e a imposição de medidas de isolamento social, os oficiais de justiça afirmam que o seu trabalho passou  a  ser predominantemente interno e virtual. Eles foram autorizados através de normas administrativas a realizar atos de comunicação processual (citações, intimações e notificações) por meio de aplicativo de mensagem (whatsapp, telegrama ou outro meio similar), e-mail, ligação de áudio ou de vídeo por telefone ou aplicativo, ou outros meios céleres (redes sociais como instagran e facebook) (Provimento n. 26/2020 da Corregedoria Geral de Justiça; Provimento Conjunto n. 9/2021; Resolução n. 354/2020 do Conselho Nacional de Justiça).

A prática de atos de comunicação virtual forçou o uso de ferramentas tecnológicas e sistemas de informática e de comunicação, o que alavancou o trabalho. Um dos participantes comenta sobre como o uso da tecnologia e dos sistemas de informática e de comunicação tornou o trabalho mais produtivo, célere e eficaz.

Hoje os mandados que a gente pega a gente pode fazer por WhatsApp […]. Pra não dizer que eu não fiz todas, eu deixei de fazer uma que eu não fiz por WhatsApp, porque era uma senhora que ela ficou tão confusa que eu achei difícil intimá-la por WhatsApp e eu mesmo fui pessoalmente. […] Mas o resto eu fiz todas por WhatsApp. Foi bem tranquilo! Eu converso com a pessoa, eu explico, mando em arquivo PDF. Então eu to fazendo essas intimações pelo WhatsApp e todas deram certo. (P4)

O recebimento dos mandados ainda ocorria de maneira presencial, na Central de mandados, mas permitiu-se a devolução dos mandados via e-mail. Isso facilitou o trabalho do oficial de justiça e diminuiu as chances de um contágio pela COVID-19 no ambiente do Fórum. O trabalho home office também diminuiu os riscos de sofrer violência nas ruas.

A comprovação do cumprimento da ordem judicial por meio eletrônico continuou sendo feita mediante certidão circunstanciada elaborada pelo próprio oficial de justiça, mas agora devendo ele informar sobre o envio e o recebimento do mandado pela parte. No caso de mandado cumprido via e-mail, a certidão deveria ser acompanhada da imagem do e-mail enviado e respondido. Já no caso de mandado cumprido via aplicativo de mensagem, o oficial de justiça deveria anexar à certidão a imagem da conversa realizada, com a indicação de aferição do ícone de leitura (Provimento Conjunto n. 9/2021).

Com isso, os oficiais de justiça contam que houve um aumentou da frequência do trabalho interno ao edifício do Fórum e do trabalho home office. Também houve uma ampliação da utilização da tecnologia, dos sistemas informatizados e das ferramentas digitais no trabalho do oficial de justiça. Uma das participantes diz: “a pandemia veio pra mostrar que a tecnologia de fato veio pra ficar” (P9).

Assim, a diligência presencial tornou-se excepcional, ocorrendo apenas quando não era possível a sua realização por meio eletrônico ou quando o magistrado a determinava em decisão fundamenta (Provimento n. 6/2020 da Corregedoria Geral de justiça do TJGO). Nestes casos, para evitar risco de contágio, foi dispensada a colheita da “nota de ciência” no mandado, bastando ao oficial de justiça responsável pela diligência afirmar em certidão que o documento foi recebido pela parte. (Provimento n. 26/2020 da Corregedoria Geral de Justiça do TJGO).

Também era possível abster-se da prática do ato presencial quando o cumprimento do mandado colocasse o oficial de justiça em situação de risco, como por exemplo, nos casos de ter que executar a ordem em locais com aglomeração de pessoas ou/e em ambientes fechados. Nestes casos, os oficiais de justiça poderiam devolver o mandado sem cumprimento, mediante certidão circunstanciada, para nova expedição em situação de normalidade. Aqueles trabalhadores que pertenciam ao grupo de risco foram automaticamente dispensados do cumprimento presencial de mandados.

Os oficiais de justiça também contam que durante o período da pandemia da COVID-19 houve uma redução da carga de trabalho. Cada oficial de justiça recebia no máximo 50 mandados por semana, com exceção dos mandados urgentes. Os mandados destinados aos órgãos públicos municipais e estaduais, e os alvarás de soltura, que antes eram cumpridos por oficiais de justiça, passaram a ser enviados diretamente pela Vara ao órgão respectivo por meio eletrônico, malote digital ou e- mail, o que também ajudou a reduzir a carga de trabalho.

Além da redução da quantidade de mandados, os oficiais de justiça também contam que houve um alargamento dos prazos para cumprimento dos mandados. Aqueles distribuídos antes do início do regime diferenciado de trabalho tiveram os prazos para cumprimento renovados e contados em dobro. Já os mandados distribuídos durante o período da pandemia permitiam o cumprimento em até 60 dias, sendo que alguns nem estabeleciam prazo para devolução. Também se vedou a punição por excesso de prazo. Um dos participantes comenta sobre essa alteração dos prazos para cumprimento dos mandados.

Mas aí agora com o tempo da pandemia mudou para 60, né? Tinha mudado pra 60 dias, dois meses pelo que eu sei. E aí então, paralisou-se, né? Em alguns momentos houve inclusive a paralisação desses prazos fazendo com que os mandados apenas urgentes tivessem que ser devolvidos. Mandado urgente é mandado urgente. O quanto antes você cumprir teria que devolver. Se conseguir no mesmo dia, melhor. (P3)

Diante do exposto, nota-se que houve uma mudança considerável no trabalho do oficial de justiça em virtude da pandemia da COVID-19. O Quadro 1 traz um resumo dessas alterações.

Quadro 1. Alterações na organização do trabalho dos oficiais de justiça em decorrência da pandemia da COVID-19

Aspectos da organização do trabalho

Antes da pandemia

Durante a pandemia

Ambiente             de trabalho

Predominantemente externo ao edifício do Fórum

Misto: externo ao edifício do Fórum e interno (sala dos oficiais de justiça ou sistema home office)

Comunicação processual

Realizados exclusivamente     de maneira presencial

Realizados preferencialmente       de maneira eletrônica/virtual

Carga de trabalho

Sobrecarga

Carga reduzida

Prazos

Curtos

Longos ou inexistentes

Uso da tecnologia

moderada

Intensa

Nota de ciência

Obrigatória

Facultativa

Diligência presencial

Obrigatória para todos os oficiais de justiça

Apenas oficiais de justiça que não pertencem ao grupo de risco

Punição

Sempre que havia atraso na devolução dos mandados

Não se aplica

Fonte: Autores, 2023.

Essas mudanças mobilizaram subjetivamente os trabalhadores, gerando vivências tanto de prazer quanto de sofrimento. Diante do sofrimento, os oficiais de justiça procuraram implementar estratégias para enfrentá-lo.

b)   Vivências de prazer-sofrimento

De acordo com os oficiais de justiça, em tempos difíceis, como o período da pandemia da COVID-19, em que houve aumento considerável do desemprego, o simples fato de terem um trabalho e renda, representou para eles fonte de satisfação. Eles sentiam-se felizes por terem um cargo com estabilidade, que só existe no setor público.

Os oficiais de justiça também contam que durante o período da pandemia da COVID-19, eles conseguiram ser mais produtivos. Primeiro porque as medidas de isolamento social mantiveram as pessoas em seus respectivos domicílios, o que possibilitou ao oficial de justiça encontrá-las com mais facilidade. Segundo porque poder realizar atos de comunicação processual via telefone, aplicativos de mensagens, e- mail, além de evitar o risco de contágio pela COVID-19 e de sofrerem violência nas ruas, facilitou a execução de suas tarefas. E efetivar o cumprimento da ordem judicial na sua integralidade é algo que gera prazer nos oficiais de justiça.

Os oficiais de justiça também contam que foi prazeroso trabalhar sem medo de punições por excesso de prazos. Uma das participantes diz:

Não há suspensão dos mandados civis na pandemia. Que coisa maravilhosa! […] realmente é justo, porque eu tenho um problema de saúde maior, eu não posso colocar um oficial em risco com um mandado que ele tem que ir lá cumprir pra não ficar suspenso. (P9)

Por outro lado, os oficiais de justiça contam que os ajustes organizacionais que foram promovidos durante a pandemia da COVID- 19 também lhes trouxeram sofrimento. As principais causas foram: a baixa carga de trabalho, a insegurança quanto ao uso da tecnologia, ter que criar uma estrutura de trabalho que atendesse ao trabalho home office por meio eletrônico, e o medo da contaminação pela doença.

Os oficiais de justiça afirmam que durante o período da pandemia houve uma diminuição da carga de trabalho ou até mesmo ausência dela. Essa diminuição ou ausência de trabalho deixou-os angustiados, com sensação de serem inúteis e improdutivos. Um dos participantes fala sobre o sofrimento vivenciado durante o período da pandemia da COVID-19, quando não recebeu mandados.

Engraçado que nesse tempo aí da quarentena eu tenho visto que a falta de serviço me causa também um certo sofrimento. Me ver como pouco produtivo me dá uma certa aflição, sabe? (P3).

Outra situação que gerou sofrimento nos oficiais de justiça foi a abrupta exigência do uso da tecnologia da informação e de comunicações em seu trabalho, sem qualquer suporte estrutural e capacitação prévia. Os oficiais de justiça falam sobre a preocupação quanto a verdadeira identidade da pessoa com quem conversam via telefone ou aplicativo de mensagem, e se estão comunicando a informação de maneira clara e compreensível. Nesse sentido é a fala de uma das participantes:

E é o que eu te falei, eu tenho uma certa preocupação. Por quê? Porque o nosso trabalho é muito tête-à-tête. O que que é citação? É o outro saber. Será que é o outro mesmo que recebeu? Será que foi aquele ali que recebeu? É aquele negócio, é a responsabilidade do seu trabalho. Por que que tem que ser por oficial de justiça? É porque ele vai ver que foi aquela pessoa, se não mandava só pelo correio mesmo, senão mandava terceirizado. Você tem que ver se aquela pessoa é ela mesma. E o que que ela tem? Ela tem… ela tem retardo mental? Ela é uma criança? Ela é um idoso que não entende as coisas? […] Aí eu fico preocupada, porque eu falo: “-Será que foi ele mesmo? Será que vai entender? Será que ele vai passar?” Você fica assim, sabe? (P1)

Também falam do sofrimento de ter que usar a tecnologia sem saber, e de ter que organizar toda uma estrutura física tecnológica para poder trabalhar as suas próprias expensas. Nesse sentido é a fala de P2, P4 e P7:

Eu tenho muita dificuldade com computadores (risos)[…] você sabe que esta é uma das grandes dificuldades que eu tenho enfrentado lá na CENOPES, porque eu dou conta de fazer aquilo que me ensinam, mas se muda, e tá mudando demais com a troca de sistemas, eu fico louquinha! […] O oficial de rua é bem mais feliz do que o oficial que fica dentro de casa, com certeza! […] o que a gente vê é que a gente é levado a achar ótimo não sair de casa. Só que o não sair de casa nos traz uma porção de outras atribuições que são os sistemas integrados, que são sistemas mais complicados. […] a categoria não tá totalmente pronta pra virar CENOPES da noite pro dia. Ela tem que ela tem que estar sendo preparada, sabe? Se isso não acontecer eles vão pirar, principalmente os mais antigos, porque muitos tem muito mais dificuldade que eu, por exemplo, né? (P2) Eu comprei um notebook novo. É importante você ter um equipamento novo. Eu chamei o professor aqui, paguei aulas pra ele me ensinar uma série de coisas que eu não sabia fazer que eu aprendi. (P4)

Esses dias eu estava lá na central e tentando fazer umas coisas… tendo umas demandas de informática, né? Eu falei “pelo amor de Deus! eu preciso do professor! Eu tenho que aprender a fazer algumas coisas por que se não eu to enrolada, né?” Aí a OJ27 falou “Você quer que eu te ensine? Eu te ensino”. Eu falei “mentira que você me ensina. Serio?”. Ela falou “serio”. Aí eu peguei e fui anotando, né? Eu falei “Mas você está disposta a fazer isso mesmo?” Ela veio uma tarde aqui pra minha casa, olha pra você ver, né, que legal. E eu aprendi a fazer um monte de coisas novas e até a assinatura digital agora eu já sei fazer. (risos) Então é difícil essas questões tecnológicas pra gente. Eu eu tento correr atrás porque eu falo assim ” gente, nós temos que aprender. Isto vai ser implementada. É uma questão de tempo e eu não quero chegar no momento que o negócio foi implementado e estar sofrendo como eu vi as meninas sofrerem para enviar um e-mail, pra poder, né, baixar um trem em PDF […] Eu sei que eu não posso esperar isso do Tribunal e como eu sou ansiosa, eu sei que eu vou precisar disso, então, eu tô correndo atrás. (P7)

Por fim, os oficiais de justiça contam que também sofriam por medo de serem contaminados pela COVID-19 durante o trabalho presencial, que continuou sendo realizado nos casos de mandados urgentes e de ordens judiciais que não puderem ser executadas por meio eletrônico. Um dos participantes fala sobre esse medo do contágio.

E nós que temos trabalho externo a gente fica com muito medo, né, dessa pandemia. A gente tá até correndo risco de vida, porque o trabalho nosso é externo, […]a gente não tem como ficar de casa fazendo as intimações. É logico que o celular ajuda, que a internet ajuda, mas, às vezes, a gente tem que ir pra rua mesmo […] pra cumprir os mandados, né? […] Sim. Tô com muito medo mesmo. To com muito medo dessa pandemia. Não sei se é porque eu já estou com a idade um pouco avançada, mas eu tenho medo sim. Nossa senhora! Muito medo. (P11)

Outro participante comenta sobre a despreocupação dos jurisdicionados com a própria saúde e a do oficial de justiça.

É tenso, né, porque você chega em ambientes que as pessoas não te recebem de máscara. A pessoa está na casa dela, né? […] a gente chega na casa da pessoa e a pessoa tá sem máscara! Ela não vai te receber de máscara, né? […] a gente tá correndo sérios riscos, porque a gente tá mais na rua, mais em contato com as pessoas e a maioria sem máscara, né? A gente toma os cuidados necessários. […] Então a gente tá à mercê da doença, né? Infelizmente, né? (P7)

Para evitar contágio pelo COVID-19 durante o cumprimento de mandados presenciais, os oficiais de justiça procuravam utilizar equipamentos de proteção, como máscara e álcool em gel. Porém, informam que esses materiais de proteção foram adquiridos com recursos próprios, pois a instituição só forneceu EPIs para os trabalhadores meses depois do início da pandemia. Um dos participantes fala sobre os métodos preventivos que utilizava antes de sair para trabalhar:

Eu uso duas máscaras, eu uso álcool. No meu carro eu tenho álcool. Aqui em casa é álcool pra tudo quanto é lado. Então eu vou com duas máscaras e tomo um banho de álcool. (P4)

Apesar de usarem os equipamentos de segurança e de tentarem manter o distanciamento social, os oficiais de justiça não estavam isentos da contaminação, pois os jurisdicionados não se protegiam da mesma forma. Um dos participantes diz:

As pessoas não estão preparadas pra você lidar com elas fora, elas tiram a máscara, elas se aproximam muito, há pessoas que tocam você ainda com a mão, né? (P3).

Além disso, os oficiais de justiça comentam que o uso de máscara dificultava a comunicação com as pessoas. Nesse sentido é a fala de um dos participantes:

Eu sei que o fato de estar com a máscara as pessoas elas nem te escutavam (risos). ‘- O que que você está falando?’ Ainda mais num ambiente aberto, não sei, não dá pra falar com o Face Shield. (P3)

Já para evitar perigo de contaminação pelo COVID-19 no ambiente do Fórum, alguns oficiais de justiça optaram por trabalhar em sistema de home office. Adquiriram, com recursos financeiros próprios, toda a estrutura física de trabalho, como computadores, scanners, celular etc para não precisar ir ao Fórum. Um dos participantes diz: “Comprei uma impressora tanque e falei: Vou usar a estrutura do Fórum o mínimo possível”. (P3). Outro participante comenta:

Eu tô fazendo meus mandados agora na pandemia todos em casa. Todos. Eu imprimo aqui e já levo pronto. Eu jogo na caixa, pego os meus e saio, pra não ficar ali naquele ambiente que é um ambiente gelado e se tiver um vírus circulando você pode pegar, né? Eu corro risco. Então, assim… Aí eu fiz… me estruturei dessa forma e tenho feito tudo em casa, já levo tudo prontinho, né? (P4)

Uma outra estratégia utilizada pelos oficiais de justiça para evitar o contágio pela COVID-19, foi abster-se da prática de alguns atos de ofício arriscados. Uma das participantes fala que durante o período de pandemia, por exemplo, não realizou penhoras para evitar contaminação.

Citação e penhora, você acha que eu vou fazer penhora? Não vou! Fiz a citação dele assim oh, no vão do negócio, ele pegou de lá e eu de cá e tal. Não vou penhorar! Não vou entrar na casa dele em plena pandemia! Cê tá louco? Se ele me passa alguma coisa, ou se eu tô com alguma coisa e passo alguma coisa pra ele ou pra família […]. Você não pode ficar doente, você não pode passar doença pros outros. Certifica! […] Você não é o super-homem e eu não sou a mulher maravilha. Sou gente! Tem gente morrendo! (P1)

Nota-se que essas estratégias utilizadas pelos oficiais de justiça eram tentativas individuais de evitar o contágio pela COVID-19. Elas não foram pensadas pelo coletivo de trabalhadores e nem tiveram a participação ou colaboração da instituição.

Discussão

As medidas de isolamento social realizadas por vários países, inclusive pelo Brasil, para retardar a disseminação da doença, afetaram quase 2,7 bilhões de trabalhadores, representando cerca de 81% da força de trabalho mundial (Organização Internacional do Trabalho [OIT], 2020). Os mais afetados foram aqueles que viviam na informalidade (Costa, 2020).

Diferentemente destas pessoas, que sofreram durante o período de isolamento social por não poderem trabalhar, deixando de auferir renda, os oficiais de justiça permaneceram trabalhando e recebendo sua remuneração, o que é percebido por eles como algo satisfatório. Outros estudos científicos realizados com a categoria de oficiais de justiça também identificaram que a estabilidade do cargo é um fator que gera prazer nos trabalhadores (Brangioni, 2020; Merlo et al., 2012).

De acordo com os oficiais de justiça, os prazos dilatados e o trabalhar sem o medo da punição também foram fatores geradores de prazer no trabalho. O assédio moral no trabalho, caracterizado por ameaças injustificadas, intimidações e punições por parte dos superiores hierárquicos gera sofrimento e, consequentemente, adoecimento mental nos trabalhadores (Lima, Heckmann & Gomes-Souza, 2022; Monteiro et. al., 2018). Os locais onde mais se propaga o assédio são em organizações rígidas, burocratizadas, com sobrecarga de trabalho ou pouco enriquecimento das tarefas, onde há ausência de comunicação, cooperação e confiança (Caniato & Lima, 2008; Dejours, 2001).

A possibilidade de realização de atos de comunicação por meio eletrônico significou um grande avanço no trabalho do oficial de justiça. Além de evitar o contágio pela COVID-19, possibilitou a redução dos riscos inerentes ao trabalho de rua, que coloca o oficial de justiça em situação de vulnerabilidade e perigo de sofrer violência física, patrimonial e psicológica (Machado et al., 2019; Brangioni, 2020; Simões et al., 2021). Também possibilitou o aumento da produtividade, da celeridade processual e da eficiência do trabalho judiciário (Bona, 2020; Bordoni & Tonet, 2020; Netto, Campagnoli & Garcia, 2021).

A eficiência do trabalho durante o período da pandemia da COVID-19 também foi um fator gerador de prazer no trabalho dos oficiais de justiça. Estes resultados estão de acordo com outros estudos científicos, que identificaram prazer quando os oficiais de justiça conseguem cumprir os mandados judiciais em sua integralidade, contribuindo para a mediação e resolução dos conflitos, o andamento do processo e a efetiva entrega da prestação jurisdicional (Amorim, 2018; Brangioni, 2020; Vale, 2017; Dalanhol et. al., 2017).

Por esse motivo, mesmo após a flexibilização das medidas de isolamento social impostas pela pandemia da COVID-19, a comunicação de atos processuais por meio eletrônico manteve-se no trabalho do oficial de justiça. Para Maio (2019), o uso da tecnologia da informação e comunicação na prática dos atos processuais (computadores, internet, e-mails, plataformas on-line, celulares, aplicativos de mensagens etc), teve como principal objetivo intensificar o processo de trabalho, tornando-o mais produtivo, visando atingir a qualidade jurisdicional, a celeridade processual e a ampliação do acesso à justiça. Entretanto, o trabalho intensificado pode favorecer condições de desgaste no trabalho e, por vezes, maior adoecimento dos trabalhadores.

A inserção das novas tecnologias da informação e comunicação na organização do trabalho, apresenta vantagens aos trabalhadores, como por exemplo, maior velocidade do trabalho, menor risco de sofrer violência contra integridade física e psicológica, flexibilidade de horário, comodidade de exercer suas atividades em casa. Por outro lado, traz desvantagens, como intensificação e aceleração do trabalho (Seligmann-Silva, 2011; Maio, 2019).

O advento das novas tecnologias embutidas nos equipamentos utilizados na produção moderna diminuiu as cargas do trabalho físico em muitos tipos de produção. […] Assim, o progresso tecnológico permitiu aumentar fanaticamente a produtividade e, em tese, deveria também diminuir acidentes e adoecimentos determinados pelo trabalho. Por outro lado, as chamadas tecnologias de ponta foram também muitas vezes consideradas as responsáveis pelo acúmulo de prejuízos que atingem a classe trabalhadora – tanto no que diz respeito ao estreitamento do mercado de trabalho quanto em termos de intensidade do trabalho e, ainda, de danos de diferentes tipos ao organismo (SELIGMANN-SILVA, 2011, p. 165).

Para Dejours (2012), a sobrecarga de trabalho é indicadora de sofrimento no trabalho. O sofrimento e o consequente adoecimento mental dos trabalhadores prejudicam não apenas a produtividade, por meio da diminuição da capacidade para o trabalho, mas também todos os aspectos relacionados à qualidade de vida do funcionário (Santos et. al., 2018). Porém, a ociosidade também é psiquicamente desequilibrante, pois quando não há trabalho, o sujeito fica impedido de ser produtivo e de se sentir útil. Além disso, as relações sociais ficam bloqueadas, o que veda qualquer possibilidade de reconhecimento do trabalho. Tudo isso interfere na constituição de própria identidade do trabalhador e na capacidade de se realizar no campo social por meio do trabalho (Dejours, 1994, 2012).

No caso dos oficiais de justiça, a diminuição da carga de trabalho que ocorreu durante o período da pandemia da COVID-19 foi um fator gerador de sofrimento. Estudos científicos têm indicado que os oficiais de justiça gostam de ter uma carga mínima de trabalho, pois assim sentem-se produtivos e úteis. Não ter trabalho gera angústia, sensação de inutilidade e improdutividade (Dejours, 1994; 2012; Amorim, 2018; Brangioni, 2020; Vale, 2017).

Outro fator de sofrimento para os oficiais de justiça foi ter que montar toda uma estrutura física para o trabalho home office as suas próprias custas, sem apoio financeiro institucional, além da insegurança para realizar os atos de comunicação utilizando ferramenta tecnológicas (telefone celular, aplicativos de mensagens, e-mail etc).

Entretanto, é importante observar que os oficiais de justiça, mesmo diante das medidas de isolamento social, precisaram garantir a prestação mínima de seus serviços presenciais. Desde o início da pandemia os oficiais de justiça continuaram executando as ordens judiciais de forma presencial, permanecendo na linha de frente contra o COVID-19 e garantindo a prestação jurisdicional aos casos essenciais, inclusive naqueles relacionados à pandemia do novo coronavírus (Bona, 2020).

Assim, eles continuaram a atuar presencialmente, ficando sujeitos ao risco de contaminação pela COVID-19 nas ruas. Além disso, eles ainda precisavam ir ao Fórum para buscar os mandados, correndo o risco de serem contaminados neste local.

Durante a pandemia da Covid-19, cabia a cada Tribunal detalhar sobre as regras do trabalho, a partir das diretrizes gerais do CNJ (Bona, 2020). Assim como outros profissionais, os oficiais de justiça foram categorizados enquanto trabalhadores de “atividades essenciais”. E isso implica que, além de desempenharem um papel fundamental, prestando seus serviços para a sociedade, estavam arriscando suas próprias vidas e de seus familiares para executarem suas funções (Nasciutti, 2020).

Nota-se, nas narrativas das vivências dos oficiais que, quando desempenhavam suas atividades, quebrando o isolamento social, em diferentes momentos, trabalharam sem suporte organizacional para os gastos com equipamentos de proteção individual (EPI) adequados para o contexto da pandemia e relataram falta de apoio técnico e psicossocial. Feliciano (et al, 2021) argumenta sobre a importância dos trabalhadores, durante a pandemia, terem condições ambientais, sanitárias, organizacionais e de proteção pessoal durante as atividades que precisam do contato presencial com pessoas. Considerando o grau de exposição e a natureza dos trabalhos dos oficiais, tais condições e medidas materiais de proteção asseguram a integridade, segurança e saúde deles.

Durante o histórico de registro dos últimos anos do trabalho executado pelos oficiais, eles relatam o quanto o judiciário se aproximou de estratégias mais comuns em organizações privadas, em uma perspectiva mais mercadológica/produtivista embasada no cumprimento de metas (Bona, 2020; Dias et. al., 2019). Os oficiais acrescentam que precisam desembolsar muitos recursos para cumprirem seus trabalhos e que em muitas atividades são obrigados a utilizar recursos tecnológicos sem preparo técnico prévio, sem a qualidade e quantidade necessária, e que não encontram suporte psicossocial para os demais desafios da profissão (Bona, 2020). Na pandemia, esses aspectos ficaram ainda mais evidenciados. O fato é que, sem habilidades específicas e ferramentas adequadas fica difícil trabalhar (Bordoni e Tonet, 2020).

Moraes (2013) alerta que esse cenário no qual a subjetividade do trabalhador é confrontada pela organização do trabalho pode prejudicar a saúde e estimular o individualismo e competição, dificultando cooperações e transformações mais criativas no trabalho. Dias et al (2019) corrobora, afirmando que os trabalhadores, nessas situações, ficam mais suscetíveis ao adoecimento mental e episódios de insegurança e frustração.

Portanto, as vivências de sofrimento narradas pelos oficiais estudados, principalmente aqueles que tiveram trabalho presencial, foram agravados pela pandemia da Covid-19. Visto que o trabalho não foi interrompido, seja de forma remota, seja presencial, o trabalho dos oficiais foi modificado sem a participação intencional e democrática e sim determinada pela justiça. A não participação deles nas decisões que modificariam seus próprios trabalhos deixa uma lacuna de injustiça e sentimento de impotência, prejudicando a autonomia e os diretos dos oficiais enquanto trabalhadores e enquanto cidadãos. E essa situação é recorrente da categoria e o fenômeno da pandemia potencializou a falta de diálogo e poder de decisão sobre o trabalho dos próprios oficiais de justiça, nas quais as mudanças são sempre impostas a eles, sem, sequer, os consultarem.

Leite (2020) ilumina que a pandemia desnudou ainda mais as desigualdades do sistema político-econômico neoliberal globalizante capitalista que precariza as relações, direitos e condições de trabalho; limitando, diminuindo, empobrecendo os direitos básicos de bem-estar e o risco de perder a própria vida. Franco, Druck e Seligmann (2010) acrescentam que a precarização do trabalho é um novo velho fenômeno.

Quanto as estratégias utilizadas pelos oficiais de justiça para lidar com o sofrimento advindo do medo da contaminação, verificou-se que elas são individuais e não coletivas. Estratégias individuais são frágeis quando comparadas com as estratégias coletivas (Dejours, 2012). Isso provavelmente é uma consequência da forma como o trabalho judiciário é organizado: incentivando o individualismo e a segregação dos trabalhadores.

Considerações finais

Considera-se que este estudo atendeu aos objetivos propostos ao analisar o impacto da pandemia na organização do trabalho dos oficiais de justiça de um órgão estadual do Poder Judiciário da Região Centro- Oeste do Brasil. A abordagem teórico-metodológica da Psicodinâmica do Trabalho foi adequada ao propiciar uma compreensão da organização do trabalho e da mobilização subjetiva dos trabalhadores.

Considerando os resultados obtidos, o presente estudo evidenciou que as mudanças ocorridas na organização do trabalho dos oficiais de justiça durante o período da pandemia da COVID-19 foram tão significativas que muitas delas foram incorporadas ao trabalho judiciário mesmo após a flexibilização das medidas tomadas em decorrência da pandemia.

Verificou-se que a inserção tecnológica no trabalho do oficial de justiça e a prática de atos de comunicação por meio de aplicativos de mensagens, telefone e e-mail trouxe como vantagens: o aumento da produtividade, eficiência e celeridade processual; a diminuição dos riscos de contágio de doenças e de sofrer violência nas ruas. Ao observar as vantagens geradas por esse novo formato de trabalho, abriu-se espaço para que outros atos processuais também pudessem ser realizados de maneira eletrônica pelo próprio oficial de justiça.

Em decorrência das modificações da organização do trabalho implementas em função da pandemia da COVID-19, foi criado nesta instituição a Central de Operacionalização dos Sistemas Conveniados – CENOPS. Trata-se de um departamento operacionalizado pelos oficiais de justiça e que é responsável pela realização de constrição de bens, via sistemas informatizados, como o Sistema de comunicação eletrônica entre o Poder Judiciário e instituições financeiras para realização de penhora on-line – BACENJUD, Sistema on-line de restrição judicial de veículos – RENAJUD. Há, inclusive, a previsão para a criação nesta instituição de uma Central de Mandados Eletrônica e de uma Central de Cumprimento de Atos Eletrônicos – um núcleo permanente para a prática de comunicações processuais por meio eletrônico.

Por outro lado, a inserção abrupta da tecnologia da informação e de comunicação no trabalho do oficial de justiça, sem suporte estrutural, preparo prévio ou capacitação profissional, gerou sofrimento nos trabalhadores e facilitou a exploração do trabalho pela organização. Isso indica a necessidade institucional de capacitar seus trabalhadores e fornecer estrutura física compatível com o novo modelo de trabalho para garantir a celeridade, produtividade e eficiência e, ao mesmo tempo, evitar o sofrimento e, consequentemente o adoecimento mental dos oficiais de justiça.

Apesar deste estudo ter contribuído para o avanço da ciência, ele apresentou limitação. Esta foi ocasionada pela própria pandemia do COVID-19, que impôs o isolamento social, proibindo a aglomeração de pessoas em um mesmo ambiente, o que impossibilitou a realização de espaços de discussão coletiva sobre o trabalho. Porém, está limitação não prejudicou a pesquisa, já que as informações coletadas através das entrevistas individuais foram suficientes para compreender as mudanças implementadas na organização do trabalho e as vivências de prazer- sofrimento dela decorrentes.

Para estudos futuros, sugere-se pesquisa longitudinal para acompanhar as mudanças geradas no trabalho e comparar essas mudanças antes, durante e após a pandemia. Recomenda-se, ainda, estudos que aprofundem questões das clínicas do trabalho, principalmente as estratégias de enfrentamento mais utilizadas pelos oficiais, frente à organização do trabalho.

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