Profa. Dra. Kátia Barbosa Macêdo
Publicado na Revista Psicanalítica (Recife)., v.VIII, p.253, 2007.
Resumo: O texto objetiva discutir a administração simbólica nas organizações, tecendo um paralelo entre suas práticas e as práticas religiosas. Para isso, contextualiza as relações sociais vigentes na sociedade atual, e como elas constituem o pano de fundo necessário para que técnicas de administração simbólica encontrem terreno fértil para sua utilização pelas organizações modernas. Utiliza a psicossociologia e a psicodinâmica como base teórica, enfatizando a abordagem de Max Pagès e colaboradores, que, além de conceituar, descrevem as técnicas empregadas pelas organizações para desenvolver uma gestão simbólica a serviço da ideologia para manter o status quo, e produzir trabalhadores disciplinados, obedientes e alienados. Partindo de Dejours, discute as estratégias defensivas dos trabalhadores para lidar com o sofrimento.
Palavras-chave: psicossociologia; psicodinâmica; organizações; simbolismo; religião
Todo indivíduo nasce em uma sociedade que instaurou, em parte voluntariamente, em parte inconscientemente, uma cultura. (LEVY et al., 2001)
Introdução
O presente texto considera como pressupostos fundamentais de sua abordagem que o indivíduo não existe fora do campo social; tanto a psicossociologia quanto a psicanálise têm o mesmo objeto de estudo, que é a criação e a evolução do vínculo social; a realidade psíquica tem estreita ligação com a realidade histórica; sempre há um jogo de duas pulsões antagonistas e intrincadas, a pulsão da vida e a pulsão da morte; em todo grupo há uma figura do grande homem, pois não existe grupo sem referência a um pólo transcendente; a civilização é baseada na renúncia do ser humano à satisfação imediata de seus instintos e na edificação dos vínculos sociais; a ilusão tem um papel essencial. A comunidade dos humanos vive sob o registro da ilusão de ser criada, protegida e amada por um ente fora do comum, ou seja: Deus.
A sociedade, as organizações e os indivíduos
Sabe-se, desde Durkheim e Freud, que uma sociedade não pode existir sem religião. Ela fornece a cada membro a garantia de não viver arbitrariamente e concede-lhe um sistema de significações que o tranqüiliza e o faz agir. O sagrado laicizado dá ao indivíduo o sentimento de transcendência, um ideal a realizar, uma causa a defender. Promete-lhe alcançar um estado não conflitante da psique, uma plenitude que o protege de qualquer trabalho de luto, de perda e de sofrimento. Então, o indivíduo pode se considerar como um herói dos tempos modernos, inscrevendo-se no mito coletivo da organização. Para Freitas (2000), uma das características mais marcantes das sociedades modernas é a ênfase na racionalidade extrema, uma vez que o pós-moderno inaugura-se na morte de Deus, na perda dos fundamentos, da transcendência, ou seja, no esfacelamento da religião, da ética, da moral e do sagrado.
A sociedade capitalista ocidental pode ser caracterizada como uma sociedade dominada pelo racional e pelos lobbies, o modelo do que ganha mais sem nenhuma relação efetiva entre o trabalho e a remuneração, não existindo mais nada nessa sociedade que justifique os valores da integridade, da seriedade… não se ganha pelo que se vale, mas se vale pelo que se ganha. A característica predominante da sociedade atual não é o individualismo, mas o conformismo generalizado.
Em uma sociedade em que é exaltada a importância da imagem, da aparência, do consumo, da superficialidade, as organizações modernas encontram um terreno fértil para se posicionar como o grande referente que propõe uma forma de vida de sucesso e uma missão nobre a realizar.
Essa mesma racionalidade definidora dos tempos modernos é repleta de um imaginário e de um simbolismo que não encontram referências em nenhuma outra sociedade, e o imaginário das organizações modernas busca responder à problemática atual de fragilidade no processo de identificação dos indivíduos.
Há um movimento de revalorização das organizações, que se deve à “confirmação” do capitalismo como a “única” via capaz de promover o desenvolvimento econômico e à crescente legitimação da ideologia neoliberal, em que o econômico assume o papel predominante e subordina todas as demais esferas da vida social. Paralelamente a isso, a crise de identidade vivida pelos indivíduos nessa sociedade ocidental permite a ampliação do papel das organizações modernas.
Para Morgan (1996), as organizações são fenômenos psíquicos, no sentido de que são processos conscientes e inconscientes que as criam e as mantêm como tais com a noção de que as pessoas podem, na verdade, tornar-se confinadas ou prisioneiras de imagens, idéias, pensamentos e ações que esses processos acabem por gerar. As organizações são realidades socialmente construídas, e essas construções freqüentemente terminam por apresentar uma existência e um poder próprios, que permitem a elas exercer certo grau de controle sobre os seus criadores.
Conforme Enriquez (1997), a organização apresenta-se atualmente como um sistema cultural, simbólico e imaginário. A organização tende a se exprimir como uma organização- instituição divina, todo-poderosa, única referência que nega o tempo e a morte… Aparecendo ao mesmo tempo como superpoderosa e de uma extrema fragilidade, ela visa ocupar a totalidade do espaço psíquico das pessoas.
Segundo Levy (2001), as organizações modernas captam as mudanças sociais e elaboram respostas que possam ser direcionadas para os seus objetivos. Há uma crise ou um mal- estar no processo de identificação dos indivíduos e, se a integração social começa a se apresentar como problemática, elas desenvolvem uma redistribuição dos papéis sociais.
Elas assumem o papel de fornecedores de identidades tanto social quanto individual, contaminando o espaço do privado e buscando estabelecer com o indivíduo uma relação de referência total. Essa tentativa ocorre por meio da produção de um imaginário específico, no qual a organização aparece como grande, potente, nobre, perfeita, procurando captar os anseios narcisistas de seus membros e prometendo-lhes ser a fonte de reconhecimento, de amor, de identidade, podendo preenchê-los e curá-los de suas imperfeições e fragilidades.
Assim, a carreira, ou o status profissional, torna-se o elemento organizador da vida pessoal, aquilo que lhe dá sentido, autoimagem, reconhecimento e o único referente que lhe pode permitir a expressão do sucesso e da realização pessoal. A identidade profissional torna-se a identidade pessoal.
As trocas identitárias na socialização e a administração simbólica
O ser humano é social e, desde que nasce, está inserido em um contexto social que tem uma cultura, valores e normas de conduta. O processo pelo qual todas as pessoas apreendem ou adquirem os valores do grupo ou sociedade em que estão inseridas é denominado de socialização.
Para Berger e Luckman (1985), a cultura é aprendida por meio do processo de socialização, no qual ocorre uma mútua influência entre indivíduo e sociedade. Para eles, a socialização ocorre em dois níveis, a socialização primária e a secundária.
A socialização primária constrói o primeiro mundo do indivíduo, implica seqüências de aprendizados socialmente definidos e “termina quando o conceito do outro generalizado foi estabelecido na consciência do indivíduo. Assim, a pessoa é um membro efetivo da sociedade e possui subjetivamente uma personalidade e um mundo” (Berger e Luckman, 1985, p. 184).
A socialização secundária é a interiorização de submundos institucionais ou baseados em instituições. É a aquisição do conhecimento de funções específicas, direta ou indiretamente com raízes na divisão do trabalho. Ela pressupõe um processo anterior de socialização primária e deve tratar com uma personalidade já formada e um mundo já interiorizado. A socialização secundária não pode construir a realidade subjetiva partindo do nada, o que representa um problema, porque a realidade já interiorizada tem tendência a persistir. Nesse enfoque, o fato de estar em sociedade acarreta um contínuo processo de modificação da realidade subjetiva. O processo de socialização transmite à pessoa, tanto objetiva quanto subjetivamente, os valores, as crenças, os mitos presentes na cultura de um determinado grupo. E essa cultura internalizada influenciará essa pessoa em suas relações sociais, podendo ser modificada a partir de suas experiências em diversos grupos, ao longo do tempo.
Transportando esse conceito para a organização, pode-se afirmar que a socialização organizacional é um processo de adaptação no qual se ensina o que é importante para a pessoa se adaptar em uma determinada organização. Adaptação esta que é induzida pela transmissão de uma série de conteúdos que dizem respeito, basicamente, aos objetivos fundamentais da organização, aos meios escolhidos para alcançá-los, às responsabilidades dos membros e aos padrões de comportamento necessários para um desempenho eficaz, assim como a todo um conjunto de regras ou princípios relativos à conservação da identidade e integridade da organização. Assim, o resultado previsto do processo de socialização organizacional é a adaptação dos indivíduos trabalhadores às suas normas, rituais e valores, à sua cultura, enfim.
A cultura da organização, ao propor, aos que dela participam, seus valores e seu processo de socialização, seu imaginário enganoso, que tem como objetivo englobar todos na fantasmagoria comum proposta pelos dirigentes da organização e seu sistema de símbolos, que fornece um sentido prévio a cada ação dos indivíduos, tem como finalidade prendê-los totalmente nas malhas que ela tece. Se o indivíduo se identifica com a organização, se só pensa através dela, se a idealiza a ponto de sacrificar sua vida privada às metas que ela persegue, sejam quais forem, ele entrará, então, sem o saber, em um sistema totalitário que se tornou para ele o Sagrado Transcendente legitimador de sua existência.
Alguns autores, como Schein (1991), Mintzberg (1995) e Pagès (1987), afirmam que a influência da organização no indivíduo atua em níveis mais profundos de sua personalidade, que é o nível inconsciente.
Para Friedberg (1995), o ponto de partida do raciocínio organizacional é a não-congruência de interesses. O interesse de uma análise centra- a simplesmente no mecanismo que constitui a mediação comum de objetivos, de valores, de móbiles, de princípios de justiça diferentes. As trocas e as interações, ou relações de poder através das quais se faz essa criação/manu- tenção de capacidades de ação, geram rapidamente um mínimo de regras do jogo e fixam um compromisso como um acordo implícito sobre as condições da troca.
Para camuflar os conflitos de interesses na relação capital–trabalho, as organizações desenvolvem técnicas disciplinares visando “adequar” os trabalhadores aos seus (da organização) objetivos e metas, de produção de lucro. Para Mintzberg (1995), as práticas disciplinares nas organizações são regras ligadas a instâncias, ao significado, a implicações e ao conhecimento, dos quais sua aplicabilidade requer interdependência entre o conhecimento dos costumes locais e a história precedente, sendo as organizações locais de política.
Foucault denomina de disciplina:
Ela é uma técnica, um dispositivo, um mecanismo, um instrumento de poder, são métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que asseguram a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade […]. É o diagrama de um poder que não atua do exterior, mas trabalha o corpo dos homens, manipula seus elementos, produz seu comportamento, enfim, fabrica o tipo de homem necessário ao funcionamento e manutenção da sociedade industrial, capita- lista. (Foucault, 1975, p. 139)
Essas regras não podem estar livres de certo significado ambíguo para quem as interpreta ou para quem as cria. Conseqüentemente, onde as regras e normas são invocadas, deve haver discrição. Nesse sentido, Clegg (1989) alerta que não é apenas poder de trabalho que constitui recursos de resistência, mas também a forma como o significado das regras é regulado. A interpretação das normas pode ser disciplinada e deve ser regulada.
Assim, Foucault comenta que “A disciplina é um princípio de controle da produção do discurso” (Foucault,1996, p. 36).
Desse modo, faz-se necessário procurar gerenciar as interpretações ou os sentidos para as regras. Essa gestão do simbólico configura- se em um novo e vasto campo de atuação, denominado de administração simbólica ou do sentido.
Para Ferro (1991), a dimensão simbólica é fundamental para a compreensão das organizações. A política é simbólica no sentido de ser instrumento da ordem interpretativa, sendo o poder também capacidade de impor significados. O poder pode ser considerado como tendo origem na geração e na manipulação de símbolos, que permeiam a política em formas sutis e difusas, dando coerência interpretativa à vida organizacional. Desse modo, a manipulação de símbolos constitui uma fonte de poder também, e é por meio dela que se desenvolve a política cognitiva ou a administração do sentido.
O gerenciamento da impressão pode ser definido como a utilização, pelos atores, de estratégias de comunicação destinadas a influenciar a percepção e as interpretações da audiência. O gerenciamento da impressão fundamenta- se na premissa de que a construção da imagem afeta a percepção das pessoas.
Para Wood Jr (2000), liderança pode ser entendida como um processo interativo de sedução e influência que permeia os jogos de poder nas organizações. Nas organizações de simbolismo intensivo, a liderança é essencialmente um exercício de controle dos significados por meio da manipulação simbólica. “A liderança é também um processo por meio do qual os indivíduos transferem sua possibilidade ou poder de interpretar a realidade para terceiros. Assim, líderes simbólicos definem a realidade para os liderados” (p. 24).
Segundo Morgan e Smircich (1997), considerar liderança como administração do sentido é admitir as organizações como redes de senti- dos administrados, que resultam daqueles processos de interações, pelos quais as pessoas procuram dar sentido às situações. A administração do sentido é um processo de construção da realidade baseado no poder e deve ser compreendido nesses termos
A liderança funciona influenciando o relacionamento entre a figura e o fundo e, conseqüentemente, o sentido e a definição do contexto como um todo. As ações e declarações dos líderes enquadram e dão forma ao contexto da ação, de tal maneira que os membros desses contextos são capazes de usar o sentido assim criado como um ponto de referência para a sua própria ação e compreensão da situação. Por meio de palavras, imagens, ações simbólicas e gestos, os líderes podem estruturar a atenção, evocando padrões de significado que dão a eles considerável controle sobre a situação que está sendo administrada.
Heloani afirma que a dimensão do poder no interior das organizações revela-se intrínseca ao exercício do universo simbólico, que permite construir espaços de ordenamento dos fatos, dotá-los de significados específicos para formar a identidade da empresa e remodelar a dos trabalhadores. Para ele,” a principal estratégia do exercício de poder nas organizações reside na manipulação do universo simbólico dentro do processo de comunicação” (Heloani, 1991, p. 434).
A Abordagem de Max Pagés
Pagès desenvolveu uma abordagem psicodinâmica em que a relação do indivíduo com o grupo tem um papel fundamental. Para ele, é pela identificação da pessoa com o grupo na qual se relaciona que ela consegue desenvolver defesas psicológicas para lidar com sua angústia básica de separação. Assim, toda organização social está assentada nos sentimentos vividos por seus componentes em um dado momento.
Os componentes de um grupo desenvolvem uma solidariedade inconsciente, que leva a uma co-articipação das tarefas emocionais entre si, de tal forma que a coesão do conjunto permanece. A solidariedade, assim definida, raramente é consciente e manifesta-se pelo estabelecimento no grupo de sistemas coletivos de defesa contra a angústia de separação. Resumidamente, pode-se dizer que os fenômenos de grupo podem ser interpretados como sistemas de defesa coletivos contra a angústia de separação e a solidariedade, ambos inconscientes.
As organizações surgem como um tipo de grupo diferenciado, na medida em que o indivíduo está ligado a elas não apenas por laços materiais e morais, por vantagens econômicas e satisfações ideológicas que elas lhe proporcionam, mas também por laços psicológicos. E é a presença desses laços psicológicos que proporciona a oportunidade de as organizações atuarem em nível simbólico, visando afetar a vida emocional das pessoas que dela participam. A organização atua em nível emocional, propondo ao indivíduo um sistema de defesas inconscientes contra seus impulsos e suas angústias, provocando os processos de projeção e de identificação e organizando a fraqueza e o isolamento do indivíduo diante dela, mantendo e reforçando sua angústia. Pagés afirma que
[…] é através da manipulação do inconsciente que a organização coloca sob seu jugo o indivíduo, reforçando suas angústias paranóides inconscientes mais arcaicas, assim como os sistemas de defesa contra a angústia. Ela age provocando uma fantástica regressão psicológica, reforçando um estado de terror infantil no indivíduo e fornecendo-lhe no momento oportuno um meio, o seu, para se defender contra os terrores a se salvar. (Pagés, 1987, p. 171)
Nesse processo de manipulação, alguns fatores contribuem: a imagem e o culto do poder na organização; o isolamento do indivíduo; um modelo de personalidade baseado no sucesso e na conquista; a máquina da angústia e do prazer. A influência social da organização provoca, em nível psicológico, a formação de uma estrutura psicológica conflitante e fechada.
O sistema de regulação da organização se traduz no conjunto das estruturas de funcionamento, seus objetivos, métodos, normas, sistema de sanção e participa da função defensiva acima descrita. As estruturas da organização, tanto as fundamentais de autoridade e de poder como o conjunto de funcionamento, representam, portanto, um papel essencial de defesa contra os sentimentos coletivos inconscientes, sentidos pelos membros da organização, no seu encontro, contra a angústia de separação e o amor autêntico.
É principalmente a existência de um sistema estruturado, de um filosofia global que leva à adesão […]. Tudo já está previsto pelos manuais […]. Você sempre vai se basear em alguma coisa que já foi bem pensada […]. Não existem problemas, todo mundo fala a mesma língua […]. Eu me pergunto se não é isso que as pessoas precisam, de um quadro relativamente rígido […]. Esse sistema de valores constitui o quadro de referências […]. É a base onde se regulam as relações interpessoais e se baseiam as comunicações e as trocas. Todo aquele que queira ser compreendido na organização deve adotar esta linguagem para ter crédito e se situar em relação às normas que ela enuncia. (Pagés, 1987, p. 77)
Segundo Legge (1995), as práticas de poder estão comprometidas com funções de manu- tenção da ordem, sendo ideológicas e constituindo-se como processos de mediação pluridimensionais. No aspecto econômico, gerenciam vantagens; no político, asseguram o controle da conformidade às regras; no ideológico, encarnam os valores de consideração pela pessoa e ocultam o objetivo de lucro e a dominação, e, no psicológico, praticam uma política de gestão dos afetos que favorece o investimento inconsciente massivo da organização e a dominação desta sobre o aparelho psíquico dos funcionários.
Para Pagés, as conseqüências dessa manipulação levam a um indivíduo perseguindo objetivos e regras da organização, que se tornam vitais para seu próprio funcionamento psicológico, e que se dedica eternamente ao seu trabalho. Percebe-se a presença de uma extrema tensão psicológica, da angústia e dos impulsos agressivos, além de uma pessoa enfraquecida.
A dominação da organização sobre o inconsciente gera, ainda, uma canalização da agressividade e das angústias e a orquestração do prazer. Ama-se a organização pela perfeição que se almeja para si próprio. Outra conseqüência da captação pela organização do ideal dos seus membros é a tendência da perda por parte destes de todo o espírito crítico: a organização é perfeita. Em caso de conflito entre ele e a organização, é ele que tenderá a retornar a agressão contra si próprio, a se deprimir, a se sentir culpado, ao invés de acusar e atacar a organização.
Uma vez organizadas todas as estruturas ideologicamente comprometidas e com o objetivo de manipular o indivíduo em nível inconsciente, partindo de suas angústias, tem-se a organização vista como um bloco por quem entra em contato com ela.
Pagés (1987) afirma que, quando o indivíduo entra na organização, ele passa por um processo de “socialização ou adaptação” que consta de três momentos:
No primeiro momento ocorre a fraqueza do indivíduo, a angústia de destruição e impulsos agressivos. A hipótese é que as relações inconscientes do indivíduo com a organização (as transferências) são do tipo arcaico e de ordem mais maternal que paternal.
No segundo momento se dá a projeção e a identificação com o agressor. O indivíduo defende-se contra sua angústia e sua agressividade, desenvolvendo um desejo agressivo de onipotência e projetando esse seu desejo na organização, com a qual se identifica.
No terceiro momento, ocorre a introjeção, a organização imaginária invade o indivíduo e torna-se parte dele. Os limites com a vida pessoal e privada são frágeis; esta se torna o lugar privilegiado para viver a angústia e a agressi- vidade reprimidas. (Pagés, 1987, p. 150-152)
Assim, pode-se dizer que a pessoa se encontra cada dia mais sozinha e vulnerável às manipulações simbólicas, que atuam em um nível inconsciente. Essas práticas estão ideologicamente comprometidas e contribuem para um processo ou de alienação (caso a pessoa se adapte à organização) ou de exclusão social (caso a pessoa reaja). Penso ser tarefa dos pesquisadores e profissionais que intervêm nas organizações considerarem as questões éticas envolvidas em práticas sociais como as acima referidas, na medida em que podem gerar conseqüências irreversíveis para a saúde mental das pessoas que colaboram nas organizações.
Administração simbólica: uma nova forma de “religião”?
Para Pagés (1987), a contribuição dos indivíduos para a produção depende em grande parte de sua integração ideológica, e a função da ideologia é tanto reforçar a dominação quanto aumentar a exploração dos trabalhadores, além de mascarar as relações sociais de produção.
Partindo de uma pesquisa desenvolvida em uma grande organização hipermoderna, Pagès apresentou a hipótese de que uma nova religião é elaborada dentro das empresas capitalistas modernas, uma religião que assegura a continuidade das religiões tradicionais falidas. E é exatamente pelo fato da “falência das religiões tradicionais, que o homem fica vagando tais como cães sem dono” (Pagés, 1987, p. 75).
Diante desse fato, as organizações propõem um sistema de crenças e valores, uma moral de ação, apropriados para conduzir os trabalha- dores à adesão. Valores que são divulgados nos manuais e que podem ser considerados como escritura sagrada, e que se concretizam em um conjunto de práticas rituais utilizadas pela hierarquia da organização.
Estamos diante de um sistema religioso, e isto não é uma simples metáfora, visto que dispomos de todos os elementos em torno dos quais se articula um sistema desse tipo: um conjunto de crenças que formam um dogma; escrituras sagradas e ritos pondo em prática esse conjunto de crenças; uma organização hierarquizada servida por seus celebrantes; uma massa de fiéis compartilhando a mesma fé; um deus que a organização encarna. (Pagés, 1987, p. 76)
Existe um sistema estruturado, uma filosofia global que leva à adesão. Esse sistema de valores constitui o quadro de referências no qual os indivíduos elaboram as representações do que foi vivido. É ele que fornece os princípios fundamentais segundo os quais os indivíduos orientam suas ações e a base na qual se regulam as relações interpessoais e se estruturam as comunicações e as trocas. Assim, todo aquele que queira ser compreendido na organização deve adotar essa linguagem para ter crédito e se situar em relação às normas que ela enuncia. A integração de valores que compõem esse sistema pode ser comparada ao Credo. Entre os valores, destacam-se: progresso técnico e mudança; auto superação, esforço e sacrifício; respeito e consideração para com o indivíduo; espírito de competição, sucesso individual e individualismo; integridade, honestidade; contribuição para a melhoria da sociedade; busca da perfeição; qualidade dos serviços; ausência de favoritismo; liberdade de expressão; contribuição para a felicidade dos indivíduos; plenitude pelo trabalho, e recompensa pelos esforços dedicados à empresa.
O domínio ideológico passa uma imagem moralista e humanista e, ao mesmo tempo, uma imagem de superioridade. Essas características de poder e generosidade são divinas e tal proclamação institui, de início, a organização como sujeito da história e princípio de todas as coisas, assegurando por isso sua deificação, como veremos posteriormente.
Os mandamentos desta religião referem-se aos diferentes parceiros que compõem a empresa e seu ambiente: suscitar um administrador inteligente, agressivo e capaz; servir nossos clientes de maneira tão efetiva e eficaz quanto possível; suscitar um grau de satisfação máxima junto aos empregados na realização das tarefas que lhe são confiadas; reconhecer a obrigação de fornecer a nossos acionistas um benefício justo e reconhecer nossas responsabilidades como cidadão, membro da nação e do mundo. (Pagés, 1987, p. 83)
Alguns mecanismos utilizados pela organização para “evangelizar” os trabalhadores aparecem através de técnicas de controle e avaliação dos mecanismos de socialização organizacional e acompanhamento de resultados, dentre eles, citam-se: “[…] a confissão: as entre- vistas de avaliação; a missa: os encontros; o batismo: a admissão; o catecismo: a formação; a liturgia: as regras e o direito canônico: os manuais” (Pagés, 1987, p. 84).
No que se refere à ideologia da organização, ela só é tão eficaz porque vai ao encontro e mobiliza aspirações profundas, valores que transcendem o interesse individual. As políticas da organização estudada extrapolam políticas de tratar bem o pessoal e trazem para si um sentido de dar sentido à existência dos trabalhadores, o desejo de ser útil a uma coletividade, o desejo de criar e se apropriar de seu futuro. Assim, o indivíduo adotado por esse sistema encontra e recebe no mundo do trabalho uma resposta para suas angústias humanas, tendo seus valores profundos mobilizados e colocados a serviço da organização – sua fé é, assim, desviada.
Pagés (1987) aborda um aspecto da ideologia, quando comenta que a alienação ideológica se apóia na alienação política, econômica e psicológica. Elas abordam o indivíduo tocando- o no que ele tem de mais precioso, seus valores e seus objetivos; ela é o sistema através do qual o indivíduo simboliza o conjunto de suas relações sociais, demonstrando assim o nível de sua perversidade.
Assim, para ele, “Os métodos para conseguir sacralizar ou resacralizar a organização, a esfera religiosa ou política e o corpo são irracionais em sua essência, na medida em que não se trata, de fato, de criar uma cultura, mas de edificar novos cultos” (Pagés, 1987, p. 49).
A contribuição de Christophe Dejours
No estudo das relações homem–trabalho e suas conseqüências para a saúde mental, deve- se destacar o papel de uma corrente francesa de pensamento denominada psicopatologia do trabalho, que se construiu a partir das concepções e pesquisas desenvolvidas por Cristophe Dejours (1997, 1994, 1999, 2004). A psicodinâmica do trabalho é uma abordagem científica que investiga a saúde psíquica no trabalho. Privilegia como categoria central de análise a inter-relação entre o sofrimento psíquico – decorrente das contradições entre o sujeito e a realidade de trabalho – e as estratégias de mediação utilizadas pelos trabalhadores para superar esse sofrimento e transformar o trabalho em fonte de prazer. A abordagem psicodinâmica do trabalho fundamenta-se na psicossociologia e na psicanálise.
O sofrimento mental é entendido em uma perspectiva dinâmica dos processos psíquicos mobilizados pela confrontação do sujeito e da organização do trabalho. Dinâmico diz respeito aos conflitos intersubjetivos e intrapsíquicos resultantes dessa relação (Dejours, 1994).
A organização do trabalho desencadeia conseqüências no corpo e no funcionamento psíquico dos trabalhadores. No que se refere às pressões derivadas da organização do trabalho, Dejours e Abdoucheli (1994) afirmam que elas estão relacionadas à própria forma como o trabalho está organizado. Por um lado, a divisão do trabalho, compreendendo a divisão de tarefas entre os trabalhadores, ritmo, repartição, ou seja, o modo operatório prescrito e, por outro lado, a divisão de homens – hierarquia, controle, perda de autonomia, relações de poder, entre outros. Se as condições de trabalho têm por alvo principal o corpo, a organização do trabalho, por sua vez, atua no nível do funcionamento psíquico do trabalhador. Na possibilidade de entender como os trabalhadores se submetem a determinadas condições de organização do trabalho e não desenvolvem doenças no trabalho, os estudos da psicodinâmica do trabalho passaram a considerar a “normalidade” dos trabalhadores que resistem às pressões advindas do trabalho.
A teoria psicodinâmica do trabalho concebe o modelo de homem como um ser que pensa na sua relação com o trabalho, interpreta sua situação e, em função desta, reage e se organiza. Tem uma história singular que constrói sobre o sentido do trabalho. É sujeito, na medida em que não sucumbe às pressões do trabalho e luta pela
manutenção de sua saúde mental. E, sobretudo, não é isolado: toda vivência subjetiva relativa ao trabalho é construída nas relações entre sujeitos ou nos coletivos, privilegiando-se a intersubjetividade.
Então, da interação entre o trabalhador com a organização do trabalho, ocorrem vivências de prazer ou sofrimento. As vivências de prazer ocorrem quando as exigências intelectuais, motoras ou psicossensoriais da tarefa convergem para as necessidades do trabalhador, de tal maneira que a simples execução da atividade origina o prazer. Outra possibilidade configura- se quando o trabalho é fonte de satisfação sublimatória. Há liberdade para modificar a organização do trabalho, reconhecendo a singularidade do trabalhador. A concepção do conteúdo, o ritmo de trabalho e o modo operatório são em parte deixados sob livre gestão do trabalhador.
O reconhecimento e a confiança são fatores que possibilitam sentimentos de prazer no trabalho.
O reconhecimento, tão freqüentemente presente no discurso dos trabalhadores, não é mero adorno: é um tempo necessário do trabalho e de toda a sua economia. Sem o reconheci- mento, não pode haver sentido, nem prazer, nem reapropriação em relação à alienação. Sem reconhecimento só sofrimento patogênico e estratégias defensivas, sem reconhecimento, haverá inevitavelmente desmobilização. (Dejours, 2004, p. 214)
Quando a organização do trabalho é rígida e o trabalhador não consegue negociar, ajustando-a às suas necessidades, ocorre o sofri- mento. Se o trabalhador reage a este tentando transformá-lo ou, nesta impossibilidade, ao menos reduzi-lo, vivencia mais prazer. Se nenhuma das alternativas funcionar, o trabalhador pode adoecer (Dejours, 1999).
O conflito que surge entre a organização do trabalho e o funcionamento psíquico pode tanto originar sofrimento como também suscitar estratégias defensivas. Esses estudos compõem o eixo central de investigação da abordagem psicodinâmica do trabalho.
Dejours (1994) salienta que, na organização do trabalho, quando não é mais possível ao trabalhador fazer o arranjo no trabalho, a relação entra em conflito, a tarefa é bloqueada, ocorrendo um acúmulo de energia pulsional, que, por sua vez, não acha descarga no ato do trabalho e acumula-se no aparelho psíquico, resultando em sentimento de desprazer, insatisfação e ansiedade.
Assim, quando a relação entre homem e trabalho encontra obstáculos, provoca sofri- mento de ordem mental no trabalhador. Quando a organização permite ao trabalhador buscar formas de adaptar-se a ela, principalmente no sentido de aumentar sua autonomia individual, bem como de obter condições de liberdade de negociação das regras impostas pelo trabalho, ela aumenta as possibilidades de esse indivíduo identificar as causas do sofrimento para que possa evitá-las, reduzi-las ou eliminá-las.
A saúde psíquica no trabalho não implica ausência de sofrimento e pressupõe presença de prazer. Todavia, prazer–sofrimento é um constructo único, originado das mediações utilizadas pelos trabalhadores para tornar o trabalho saudável. Assim sendo, o sofrimento não pode ser estudado sem ser considerado o prazer como seu contraponto. O sofrimento tende a ocorrer diante de condições externas extremamente restritivas à possibilidade de o sujeito negociar seus desejos com a realidade, quando se esgotam todas as tentativas individuais e coletivas de reação às adversidades do trabalho. O trabalho é, portanto, uma das fontes de saúde psíquica, de construção (ou reconstrução) da subjetividade e identidade do sujeito e não lugar de sofrimento.
Para Dejours (1994), o conceito de sofri- mento configura-se como uma vivência subjetiva intermediária entre a doença mental descompensada e o bem-estar psíquico. Compatível com a realidade, implica mecanismo de regulação. Dependendo da possibilidade de negociação com a organização do trabalho, pode ter caráter patogênico, com utilização de estratégias coletivas de defesa; ou criativo, que remonta ao uso de “quebra-galhos” e possibilita a transformação da vivência de sofrimento em prazer.
Em resumo, o sofrimento tende a ocorrer diante de condições externas extremamente restritivas quando não há possibilidade de o sujeito negociar seus desejos com a realidade.
Quando se esgotam todas as tentativas individuais e coletivas de reação às adversidades do trabalho, o trabalhador reage com estratégias de mediação.
Estratégias defensivas dos trabalhadores
As estratégias de regulação do sofrimento constituem-se nas possibilidades de adaptação, ajustamento à organização do trabalho ou transformação dela pelo trabalhador, para colocá-la em concordância com o seu desejo. Quando fracassam, abre-se espaço para o adoecimento no trabalho. Uma forma de mediação ocorre por meio da utilização de estratégias defensivas individuais ou coletivas que levem ao abranda- mento da percepção da realidade de trabalho. O foco da psicodinâmica é abordar as estratégias defensivas construídas coletivamente, tendo em vista que, no campo do trabalho, o coletivo se sobrepõe ao privado.
Em estudos empíricos, Dejours (1987) levantou estratégias coletivas de diversas categorias profissionais. Os trabalhadores da construção civil lidaram com o medo de danos físicos por uma fachada de negligência e desafio. Ignoraram o risco potencial e, em ritual de iniciação aos recém–chegados, instigaram demonstração de coragem, como um teste de adequação e aceitação à estratégia de defesa coletivamente constituída.
Embora essas estratégias desempenhem o importante papel de proteger o trabalhador da desestabilização psíquica e possibilitar o cumpri- mento dos objetivos do trabalho em casos extremos, geram alienação e funcionam como promessa de felicidade, configurando-se em ideologia: “ideologia defensiva”.
A ideologia defensiva passa a significar a única saída para as pressões da organização do trabalho, afastando a pessoa de uma mobilização subjetiva (recursos psicológicos mobilizados nas situações de trabalho) promotora de mudanças, ocorrendo a alienação.
Segundo Pagès et al. (1993), as pessoas, utilizando-se de mecanismos inconscientes, invertem a realidade e, na impossibilidade de construir uma organização do trabalho espontaneamente, investem energia psíquica na organização prescrita, a qual se transforma em seu objeto de desejo. Enriquèz (1999) enfatiza que essa substituição da realidade refere-se quando o objeto é posto no lugar do que constitui o ideal de ego e que vem representar completamente e sem crítica a esse ideal.
Esse processo leva a pessoa a substituir o seu ideal de ego por um ideal coletivo (Pagès, 1993), assim, por intermédio da identificação com a organização, as pessoas vão amá-la e suas qualidades passarão a ser também as qualidades das pessoas. Nesse mecanismo, podem-se encontrar não apenas a introjeção, mas também o desaparecimento das particularidades individuais, haja vista a identificação com outros membros do grupo, mediante a referência ao ideal de ego.
Outro exemplo de estratégia defensiva é também reconhecida na exploração dos trabalhadores pela organização ao acarretar aumento de produtividade. A incoerência é que, para explorar as estratégias de defesa, os trabalha- dores intensificam o próprio sofrimento dos quais eles são fruto.
Segundo Dejours (1994, 1999), as estratégias defensivas coletivas são modalidades de adequação às pressões, constituindo um acordo partilhado pelo grupo. Fortalecem a coesão e a construção do coletivo de trabalho e também a cooperação, com vistas a atender aos objetivos de produtividade. A garantia de sua eficácia simbólica depende da participação de todos. Têm caráter inevitável, tornando-se obrigatórias. Embora sejam importantes estabilizadores psíquicos na confrontação do sujeito com a organização do trabalho, alimentam resistência à mudança. Os trabalhadores hesitam em questionar suas defesas pelo importante papel que assumem na permissão da continuidade do trabalho.
Para o autor (1999), aqueles que sofrem pela intensificação do trabalho, pelo aumento da carga de trabalho e da fadiga, ou pela desarticulação das relações de trabalho, encontram dificuldades para reagir coletivamente. Estudo com operários em uma indústria automobilística mostrou que, diante de pressões, do ritmo intenso e de exíguas possibilidades de coletiva- mente manejá-los, a principal estratégia utilizada pelos trabalhadores foi a resistência, capacidade de ir até o fim, sem se ferir ou adoecer.
Dejours (1999) identifica estratégia da distorção comunicacional como uma estratégia defensiva, baseada na negação do real do trabalho e do sofrimento no trabalho. Implica a supervalorização da concepção e do gerencia- mento. Os fracassos do trabalho são entendidos como conseqüência da incompetência, falta de seriedade ou de preparo, negligência, má vontade, incapacidade ou erro humano, em detrimento da situação de trabalho.
Então, as estratégias defensivas ocultam o sofrimento e constituem importantes elementos na manutenção da saúde psíquica. Se a utilização das estratégias defensivas fracassar, o trabalhador pode adoecer. No entanto, além do recurso defensivo, o sofrimento pode ser subvertido, transformando as situações adversas em geradoras de prazer, evitando as defesas e sua patologização, mediando o sofrimento de uma forma mais saudável.
Todas as reflexões sobre o processo de estratégias defensivas enfatizam os aspectos socioculturais e essencialmente coletivos envolvidos na mobilização subjetiva. Assim, a mobilização coletiva só se configura no coletivo construído pelos trabalhadores, diferentemente das defesas, que podem ser individuais ou coletivas. Esse caráter do coletivo presente na mobilização é o que possibilita as mudanças das situações de trabalho.
Enfim, para Dejours, o entendimento da saúde no trabalho compreende três lógicas: a da organização do trabalho, que implica contradições e constantes ajustes; a do outro, que remete a normas e valores da convivência, e a do trabalhador, que se refere ao mundo subjetivo de cada um. É na articulação harmônica dessas três dimensões, muitas vezes contraditórias, que reside a possibilidade de manutenção da saúde mental.
Conclusão
Todo grupo funciona à base da idealização, da ilusão e da crença. Para que um projeto comum possa verdadeiramente mobilizar uma pessoa, consciente e inconscientemente, é necessário que, em um grau maior ou menor, ele se apresente sob um aspecto religioso, sagrado, inatacável: assim, ele pode nos atrair, nos inspirar, nos fazer sair de nossa cotidianidade e nos unir aos outros que partilham da mesma ilusão.
Em todos os tempos, as organizações têm sido sistemas culturais, simbólicos e imaginários. Elas sempre afirmaram determinados valores, trataram de dar sentido à ação de seus membros, sendo sempre o lugar de projeção de fantasmas individuais e coletivos e sempre tentaram colher as pessoas nas malhas do imaginário que elas propõem. A diferença essencial é que hoje em dia todas as organizações tratam, consciente e voluntariamente, de construir tais sistemas, a fim de modelar os pensamentos e induzir os comportamentos indispensáveis à sua dinâmica. Se elas são elevadas a proceder assim, isso é porque buscam converter-se em verdadeiras microssociedades que sejam ao mesmo tempo comunidades: em uma palavra, elas visam substituir a identificação com a nação e com o Estado pela identificação com a organização, que se torna assim o único sagrado transcen- dente ao qual é possível se referir e crer.
Desse modo, se a organização consegue imprimir sua marca sobre o pensamento e sobre o aparelho psíquico, ela poderá integrar seus colaboradores na “cultura” que ela propõe e impõe e a desenvolver sua motivação para contribuir na realização dos seus objetivos.
Por outro lado, considerando que o trabalhador também é um sujeito de ação, ele se mobiliza juntamente com seus colegas de trabalho desenvolvendo estratégias defensivas que visam atenuar o sofrimento gerado pela interação entre trabalhador e organização do trabalho e ainda proporcionar vivências de prazer no trabalho, na medida em que o trabalho é estruturante psíquico, fator que constrói identidade e fator de inclusão social.
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