Profa. Dra. Kátia Barbosa Macêdo e Isabelle Arão
Resumo
Objetivo: Discorrer sobre o processo de perlaboração entre engenheiros de segurança do trabalho autônomos e demonstrar a relação com o gerenciamento de riscos ocupacionais. Método: Trata-se de um estudo de caso de caráter descritivo e exploratório com base na Psicodinâmica do Trabalho, que utilizou análise documental e entrevistas individuais na fase de pré-pesquisa. Na fase da pesquisa propriamente dita, realizou-se o espaço de discussão coletiva. Participaram da pesquisa 10 engenheiros de segurança do trabalho autônomos, prestadores de serviços em organizações do Estado de Goiás, concentradas na região metropolitana de Goiânia e contemplando os mais diversos ramos de atividade. Os dados foram analisados utilizando-se a análise clínica do trabalho. Resultados: Entende-se por gerenciamento de riscos ocupacionais um processo de melhoria contínua adotado pelas organizações para prevenir lesões e doenças relacionadas ao trabalho e proporcionar locais de trabalho seguros e saudáveis e por perlaboração como sendo uma ação transformadora decorrente de uma dinâmica do coletivo do trabalho. Foi possível notar diferenças quanto à predominância entre os elementos da organização do trabalho e da mobilização subjetiva quando comparadas as entrevistas individuais com o espaço de discussão coletiva neste grupo de engenheiros autônomos. Considerações Finais: A perlaboração ocorreu na medida em que os profissionais participantes da pesquisa ressignificaram suas vivências levando à uma possível ação transformadora na atuação enquanto engenheiros no gerenciamento de riscos ocupacionais nas diversas empresas que atuam.
Palavras-chaves: Perlaboração; Psicodinâmica do Trabalho; Gerenciamento de Riscos Ocupacionais
Introdução
A recém atualizada Norma Regulamentadora nº 1 (BRASIL, 2020) institui a obrigatoriedade por parte das organizações de elaborarem o Programa de Gerenciamento de Riscos – PGR. A implementação deste se dá com o auxílio de profissionais com expertise na área de Saúde e Segurança do Trabalho – SST. Os engenheiros de segurança do trabalho autônomos, prestadores de serviços nestas organizações, pertencem a uma das categorias profissionais aptas a desenvolverem projetos para o cumprimento da legislação e para a manutenção da integridade física e mental dos trabalhadores. Para gerenciar os riscos ocupacionais aos quais os trabalhadores estão expostos é necessário, primeiramente, o levantamento das variáveis presentes no ambiente de trabalho, que se distribuem entre cinco categorias, descritas a seguir: físicos, químicos, biológicos, acidentes e ergonômicos. Os riscos físicos, de acordo com Bittencourt (2017) são diversas formas de energia, perceptíveis pelos sentidos do ser humano ou por equipamentos específicos, que podem causar danos ou agravo à saúde quando em contato com um receptor.
Dentre estas diversas formas de energia citadas, estão: ruído, vibrações, pressões anormais, temperaturas extremas, radiações ionizantes, radiações não ionizantes, bem como o infra-som e o ultra- som (BRASIL, 2019). Consideram-se riscos químicos as substâncias, compostos ou produtos que possam penetrar no organismo pela via respiratória, nas formas de poeiras, fumos, névoas, neblinas, gases ou vapores, ou que, pela natureza da atividade de exposição, possam ter contato ou ser absorvidos pelo organismo através da pele ou por ingestão (BRASIL, 2019). Os riscos biológicos são aqueles provenientes de vírus, bactérias, parasitas, fungos, dentre outros. Eles são transmitidos por meio de microrganismos ou substâncias oriundas de um organismo, muito comum ser encontrados em lixos hospitalares (FARIAS JUNIOR, 2021). Os riscos de acidentes, conhecidos no passado como riscos mecânicos, estão relacionados com a estrutura física do ambiente: espaços de circulação, pisos, instalações elétricas, dentre outros (BRASIL, 2018). A Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ, 2022) define como sendo qualquer fator que coloque o trabalhador em situação vulnerável e possa afetar sua integridade, seu bem-estar físico e psíquico. São exemplos de risco de acidente: as máquinas e equipamentos sem proteção, probabilidade de incêndio e explosão, arranjo físico inadequado, armazenamento inadequado, etc. Ainda de acordo com FIOCRUZ (2022), consideram-se riscos ergonômicos qualquer fator que possa interferir nas características psicofisiológicas do trabalhador, causando desconforto ou afetando sua saúde. São exemplos de risco ergonômico: o levantamento de peso, ritmo excessivo de trabalho, monotonia, repetitividade, postura inadequada de trabalho, etc. Uma categoria de risco ocupacional, considerada emergente pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e que também deve ser avaliada e considerada no gerenciamento são os riscos psicossociais. Tais riscos decorrem de interações entre trabalho, seu meio ambiente, satisfação no trabalho e as condições da sua organização (MESQUITA el al, 2016).
Embora seja considerada uma categoria emergente, os riscos psicossociais podem ser considerados como parte da categoria de riscos ergonômicos, uma vez que a Ergonomia contempla fatores organizacionais que os abraçam. Corroborando com esta afirmação, Rodrigues, Faiad e Facas (2020) relatam que estes riscos se relacionam à interação dinâmica entre os indivíduos e seu trabalho, que inclui: o desempenho profissional; o controle e autonomia no tocante às funções, tarefas e atividades realizadas; a forma de organização da produção; a jornada e intensidade do trabalho; às características organizacionais, todas estas variáveis que compõem a organização do trabalho e que, portanto, estão contempladas pela categoria dos riscos ergonômicos. A Psicodinâmica do Trabalho, em uma das dimensões de análise, traz a organização do trabalho como sendo grande parte deste levantamento de riscos ocupacionais e em sua segunda dimensão, a mobilização subjetiva, como compreensão das práticas profissionais objetivas e subjetivas dos trabalhadores, geradoras de momentos de prazer e sofrimento no trabalho (FLEURY e MACÊDO, 2015). A Psicodinâmica do Trabalho utiliza a escuta clínica do trabalho, realizada em um espaço compartilhado por um grupo de trabalhadores. Neste local, o pesquisador favorece a circulação da fala e a escuta das vivências intersubjetivas sobre o trabalho, com o intuito de ressignificar o sofrimento advindo do trabalho. Por meio desse espaço público e da elaboração e perlaboração do que é dito, é possível que ocorra uma ação transformadora do real do trabalho (MESQUITA et al, 2016). A expressão perlaboração trata-se de um neologismo, deriva do termo francês perlaboration que traduz para a língua francesa o verbo alemão Durcharbeitenque foi utilizado por Freud e relaciona-se ao processo de trabalho psíquico inconsciente. Trata-se de uma elaboração interpretativa (VIEIRA E MENDES, 2013).
Esta ação racional é uma possibilidade para o trabalhador pensar o trabalho. Ela está no enriquecimento do pensamento, tecnicamente denominado por perlaboração da experiência. Havia um saber sobre o trabalho que estava armazenado, memorizado sob a forma de uma experiência aprendida. Perlaborar a experiência do trabalho é o que até agora não era consciente, mas, mas estava lá. É a denominação de trabalho vivo cuja revelação é permitida pela perlaboração (MACÊDO E HELOANI, 2017). Neste contexto, a pergunta problema que norteou a construção do presente estudo foi: como ocorre o processo de perlaboração entre os engenheiros de segurança do trabalho autônomos e qual é a sua relação no gerenciamento de riscos ocupacionais? Objetiva-se com esta pesquisa discorrer sobre o processo de perlaboração entre engenheiros de segurança do trabalho autônomos e demonstrar a relação com o gerenciamento de riscos ocupacionais.
METODOLOGIA
A presente pesquisa é um estudo de caso descritivo e exploratório cuja abordagem é qualitativa vinculada à abordagem da Psicodinâmica do Trabalho. O estudo está inserido no paradigma humanista radical, uma vez que a Psicodinâmica do Trabalho propõe uma prática de superação ou transformação do sofrimento, visando à emancipação do trabalhador. O campo no qual a pesquisa desenvolveu-se foi a Associação Goiana de Engenheiros de
Segurança do Trabalho (AGEST), em sua sede localizada na região Centro-Oeste do Brasil. Como procedimentos, foi realizada a análise documental da organização. Nesta etapa foi possível conhecer o seu histórico, contexto e estrutura. Na fase de pré-pesquisa foram realizadas entrevistas individuais, cujo roteiro semiestruturado foi construído a partir de categorias definidas a priori, advindas da Psicodinâmica do Trabalho. Na pesquisa propriamente dita foram realizadas duas reuniões com objetivo de fornecer espaços para discussão coletiva. Participaram da pesquisa 10 engenheiros de segurança do trabalho autônomos, prestadores de serviços em organizações do Estado de Goiás, concentradas na região metropolitana de Goiânia, nos mais diversos ramos de atividade: indústrias sucroalcooleiras, de alimentos, têxteis, metalúrgicas e construção civil. Estes profissionais são atuantes no diagnóstico e desenvolvimento de projetos de intervenção em gerenciamento de riscos ocupacionais. Os dados foram analisados utilizando-se a análise clínica do trabalho.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
A partir do procedimento de campo realizado, como dados sociodemográficos dos participantes, tem-se: do total de participantes, 80% são do sexo masculino e 20% do sexo feminino. Em relação à faixa etária, com percentual idêntico estão as faixas entre os 41 e 50 anos e entre os 51 e 60 anos; seguidas pela faixa entre os 30 e 40 anos cujo percentual é de 22% e, por fim, 18% contemplando a faixa de participantes acima de 60 anos. No tocante à escolaridade, todos os participantes da pesquisa cursaram a pós-graduação em Engenharia de Segurança do Trabalho, já que o público alvo do estudo exige esta condição. Em relação ao estado civil, 90% dos participantes são casados e 10% divorciados. Em se tratando do tempo de formação e atuação na área da Engenharia de Segurança do Trabalho, 44% dos participantes formaram e estão atuando entre 6 e 10 anos, seguido de 33% cujo tempo de formação/atuação é entre 21 e 30 anos e 22% entre 11 e 20 anos. Quanto ao tempo de filiação à Associação Goiana de Engenheiros de Segurança do Trabalho (AGEST), a maior parte dos entrevistados (55%) está afiliada entre 6 e 10 anos, seguido de 33% cujo tempo de afiliação é entre 2 e 5 anos e 12% de afiliados cujo período supera os 10 anos. Partindo das entrevistas individuais na etapa de pré-pesquisa seguida das discussões coletivas foi possível notar diferenças quanto à predominância entre os elementos da organização do trabalho e da mobilização subjetiva. Ocorreu, portanto, a perlaboração, na qual os sujeitos venceram a resistência do inconsciente e ressignificaram conteúdos reprimidos ou não representados. Este processo permite pensar, sentir e ressignificar a realidade vivenciada, de forma vivida e resoluta além de possibilitar ao indivíduo transformações de sua experiência (VIEIRA E MENDES, 2013). Os resultados serão apresentados considerando as seguintes categorias ou dimensões de análise: cultura e valores organizacionais; organização do trabalho, incluindo condições e relações de trabalho e mobilização subjetiva do trabalho contemplando as vivências de prazer, de sofrimento e as estratégias de enfrentamento.
Categoria Cultura Organizacional: No elemento que contempla a cultura organizacional, o organograma e a divisão técnica e hierárquica da empresa, quando questionados nas entrevistas individuais, os participantes relataram não levar em consideração diretamente estas informações para o processo de gerenciamento de riscos. Correlacionaram-as com algo meramente burocrático e que se prendem ao documento: “A hierarquia, ela acaba sendo, na maioria das vezes, meramente textos escritos em papeis”. Embora alguns coletam estes dados, não os correlacionam com o gerenciamento de riscos: “Assim, eu levanto esses dados, né, mas nem tudo é colocado no trabalho, né”; “Pelo menos antes desse PGR aí, a gente, pra nós, não era interessante fazer esse levantamento. Pelo serviço que a gente presta pra eles, não tem essa importância”, Já, na discussão coletiva, estas mesmas informações geraram um movimento que diferiu das entrevistas individuais. O grupo mencionou a transposição de hábitos desenvolvidos internamente nas organizações para a vida pessoal e para o mundo fora da empresa. A cultura disseminada dentro da empresa passa a ser a desenvolvida em todos os momentos da vida do sujeito, já que sua vida é única, não sendo possível dividi-la entre profissional e pessoal. Macêdo (2002) traz o entendimento por cultura como sendo um complexo e multidimensional conjunto de tudo o que constitui a vida em comum nos grupos sociais, resultante de comportamentos compartilhados e transmitidos pelos membros de um determinado grupo.
Categoria Organização do trabalho: Na organização do trabalho, com exceção dos itens trabalho prescrito/real e normas e procedimentos, os demais como estrutura física, riscos psicossociais, relações sócio-profissionais, comunicação e gestão do trabalho foram predominantemente abordados pelos participantes da pesquisa nas entrevistas individuais. Nos espaços de discussão coletiva, pouco foram mencionados. Ressalta-se que no elemento comunicação, fatores negativos vieram à tona como: comunicação ruim e/ou falha; comunicação superficial e informalidade de tal comunicação. Já na discussão coletiva, estes aspectos negativos não forma revelados. Os participantes exaltaram a positividade desta comunicação, dando exemplos muito positivos da prática diária dos mesmos. Em um grupo, o indivíduo está sujeito a uma profunda alteração em sua atividade mental. Sua submissão à emoção se intensifica, enquanto que sua capacidade intelectual é acentuadamente reduzida, com ambos os processos evidentemente dirigindo-se para uma aproximação com os outros indivíduos do grupo (ENRIQUEZ, 1990).
O espaço de discussão coletiva está à procura de entender como as pessoas compreendem o trabalho e como fazem para negociar com a organização do trabalho, com o real do trabalho. O ato de negociar implica em encontrar uma solução ou um acordo que pode evitar o adoecimento (MACÊDO E HELOANI, 2017). Conforme demonstrado, neste elemento comunicação não foi depreendido dos participantes o entendimento e a compreensão no tocante a tal elemento. Notou-se a travessia do negativo (entrevistas individuais) para o positivo (discussão coletiva). Ainda no eixo organização do trabalho, os participantes foram questionados quanto a levar em consideração no processo de gerenciamento de riscos ocupacionais as normas e os procedimentos adotados pelas empresas. Todos afirmaram considerar tais normas e procedimentos no levantamento de dados praticado, correlacionando estas informações com a discrepância encontrada entre o trabalho prescrito e o trabalho real: “Esses procedimentos são muito bem detalhados a fim de conhecer como é feito o trabalho prático mesmo. Muitas vezes nas empresas existe um Procedimento Operacional Padrão (POP), né, que nem sempre é seguido”. Na discussão coletiva, esta indagação trouxe questionamentos quanto ao preparo das empresas frente a um efetivo sistema de gestão. Não basta ter normas e procedimentos escritos se a empresa não incorporou as práticas de uma verdadeira gestão: “A grande maioria das empresas não está preparada pra enfrentar um sistema de gestão”. “Quem define o nível de segurança sou eu. Ah, mas a lei fala que eu posso fazer desse jeito. Tá, mas se você fizer desse jeito aqui dentro da empresa, pode ter um problema, então eu vou além do que a lei tá me pedindo. Eu vou cumprir obviamente requisito legal? Claro. Eu não sou louco. Mas eu vou além do que o requisito legal tá me pedindo”. “O problema é que geralmente as pessoas fazem a menos, aquém do que a legislação exige”.
Associar o cumprimento da legislação à fiscalização também é comum por parte do empresário que o engenheiro de segurança do trabalho, participante desta pesquisa, lida diariamente: “Gente, quantas vezes cês já passaram por isso em consultoria, o empresário fala pra você assim: “Ah tá, se me fiscalizar, aí eu vou ter que pagar insalubridade pra ele. Aí ele faz uma continha rápida ali e fala: Ah, compensa, não vou investir em nada que cê tá falando aí não”. Ainda neste elemento normas e procedimentos, na discussão do grupo uma importante informação foi ressaltada: a precarização de determinados ramos de atividade como as centrais de Call Center ou Teleatendimento. Mesmo que haja normas e mais normas regulamentando este segmento, dentre elas o anexo 13 da Norma Regulamentadora nº 15 (BRASIL, 2022) e o anexo II da Norma Regulamentadora nº 17 (BRASIL, 2021), o trabalhador se mantém vulnerável frente aos riscos aos quais estão expostos: “Então, depois de tantas horas de trabalho, olha essa pecinha aqui chamada operador de Call Center. Depois de tantas horas, o que que a gente faz com a peça defeituosa? Troca a peça defeituosa. Se você ferrou com a vida daquele cara, foda-se. Eu resolvi o meu, certo? Eu resolvi o meu”. Neste ramo de atividade ressalta-se o clássico caso da France Telecom, descrito por Dejours e Bégue (2009) na qual vinte e quatro trabalhadores se suicidaram de fevereiro de 2008 até 7 de outubro de 2009. A referida empresa havia sido privatizada e foi submetida a processos de reestruturação produtiva, entre estes, uma enxuta no quadro de empregados. Tratou-se de um caso tão impactante que o presidente da república na época se manifestou e o vice-presidente executivo da empresa renunciou ao seu cargo.
Categoria Mobilização Subjetiva do trabalhador – vivências de prazer: No segundo eixo de análise que compreende a Mobilização Subjetiva, as entrevistas individuais não divergiram da discussão coletiva quanto às vivências de prazer: liberdade e reconhecimento. Ambos foram citados pelos participantes de igual forma nos dois momentos: “Então, assim, de uma maneira geral, eu posso dizer que eu tenho liberdade plena de escrever o que eu quero, de fazer o que eu quero. Eu tenho liberdade total”; “Eu tenho um cliente que fala assim: Olha, eu posso fazer com outros profissionais, eu pagaria muito menos, mas eu gosto de fazer com você porque o teu serviço é bom”. O reconhecimento foi relatado pela maioria dos participantes da pesquisa, seja advindo dos trabalhadores, da empresa que o contratou ou o seu Auto-reconhecimento. “Quando quem te contratou chega e te dá um feedback de que aquilo realmente tá valendo…”. Ainda no tocante às vivências de prazer, mais especificamente no elemento autonomia, pôde depreender-se uma diferença entre as entrevistas individuais e a discussão coletiva. Quando questionado individualmente, o participante correlacionou autonomia com a sua atuação enquanto autônomo nas empresas no momento da intervenção: “Eu tenho liberdade, mas autonomia nem tanto. Liberdade é o seguinte: eu posso propor o que eu bem entender, eu posso fazer…normalmente eu tenho acesso a muitos dados, etc, etc. Mas a minha autonomia barra, ela é barrada”; “A gente tem um certo limite, né. Porque, o que que acontece…a gente enquanto prestador de serviço, oh, empresa, você tem que fazer isso, isso e isso. Cê vai mostrar pra empresa qual é o caminho correto. Agora, a empresa vai seguir? Essa autonomia a gente não tem… Liberdade de falar a gente tem, de fazer não”. Na discussão coletiva, os participantes relacionaram autonomia com o poder de escolha do cliente e das demandas que surgirem: “Hoje como autônomo, eu tenho a possibilidade de escolher o que eu faço”; “Você pode escolher o que você mais gosta”. “Pra mim é muito mais cômodo, eu tenho a opção de aceitar o serviço ou não”.
Categoria Mobilização Subjetiva do trabalhador – vivências de sofrimento: Ainda no eixo da Mobilização Subjetiva, também é possível observar diferenças nos relatos das vivências de sofrimento dos participantes nas entrevistas individuais e na discussão coletiva. Nos relatos individuais, por unanimidade tem-se que a concorrência por parte dos pares é desleal e predatória. Algumas falas dos participantes demonstram claramente estas situações: “Porque hoje o que a gente vê é PCMAT (Programa das Condições e Meio Ambiente de Trabalho) de R$ 2.000,00 e a gente sabe que PCMAT não é pra custar menos que, sei lá, R$ 20.000 a R$ 25.000,00, mas é um PCMAT que começa no primeiro dia de obra e ele acaba a revisão final, né, de número duzentas dele no último dia de obra, na entrega do apartamento”. “Eu diria que existem pessoas que se vendem, né, por uma assinatura, que simplesmente assinam uma ART (Anotação de Responsabilidade Técnica). Ele não faz um serviço, ele vende um laudo”. Na discussão coletiva, esta concorrência desleal não foi mencionada pelos participantes. Não trouxeram à tona essa temática para o grupo. Está cada vez mais comum o exercício da profissão vinculado ao menor preço praticado, cuja contratação destes prestadores é garantida pelo empregador que tem interesse somente na elaboração do documento/ “produto final” e não na real mudança da cultura organizacional, na forma de ajustes que visem promover a Saúde e Segurança do Trabalho. “A grande dificuldade é a visão que os empresários têm que segurança do trabalho é uma obrigação legal, que não serve pra nada”. “Tem empresa que muitas vezes ela quer que você faz o que ela quer. E o que ela quer? Reduzir carga horária de treinamento; assinar um certificado sem fazer o treinamento”. A condição de profissional autônomo reforça esse padrão, uma vez que é temporária a presença do profissional na empresa e por este motivo, torna-se um obstáculo para a(s) mudança(s) que poderia(m) ocorrer, tanto por parte da gestão quanto pelos trabalhadores. Alves, Dias e Monsores (2015) relatam que a prestação de serviço significa dizer que uma pessoa está tentando mudar ou melhorar uma situação sem ter controle direto sobre sua implementação, fato este de crucial importância na geração de sofrimento nestes trabalhadores. Nesta questão do curto espaço de tempo que o profissional permanece nas empresas, a discussão coletiva corroborou com os relatos individuais: “Não é fácil, é muito frustrante. Tem muita coisa que a gente gostaria de fazer e não faz por diversos motivos. Eu tenho um certo sentimento de frustração com isso”.
Outra vivência de sofrimento relatada por alguns participantes nas entrevistas individuais foi a sobrecarga (física e mental), seja decorrente do volume de atividades, seja pelo fato de desempenhá-las sozinho, sem ajuda de outro profissional ou pelo curto prazo estabelecido por parte das empresas.“Eu tenho uma sobrecarga física porque às vezes cê vai fazer o levantamento, cê roda 3, 4, 5 Km carregando equipamento pra fazer medição”. “O próprio acúmulo de trabalho mesmo”. “No meu caso eu me sinto sobrecarregado porque eu trabalho sozinho. A minha empresa sou eu e eu mesmo”. “Você tem um prazo muito curto, entendeu. Isso gera uma sobrecarga. Algo que levaria 60 dias o cliente pede em 30”. Esta sobrecarga também foi mencionada na discussão coletiva tanto pelo acúmulo de atividades quanto pelo prazo imposto para entrega das documentações: “A própria dinâmica do trabalho, ela te impõe uma pressão muito grande, pressão a ponto de você acordar de madrugada e fazer o laudo porque aquilo tá te agoniando”. “A palavra que eu acho que dentro da engenharia todo mundo odeia, chama-se prazo”. Na reunião em grupo traços da precarização do trabalho vieram à tona em vários momentos. Um deles foi quanto à insegurança e instabilidade: “Você começa a ter aquela sensação: eu sou autônomo, se eu não produzo, não entra dinheiro”. “Quem imaginou que nós iríamos ter um bloqueio econômico por quase 2 anos de duração. Quem que consegue juntar dinheiro por 2 anos? Para o profissional liberal, se você parou de trabalhar, a máquina também pára de produzir dinheiro”.
Categoria Mobilização Subjetiva do trabalhador – estratégias de enfrentamento ao sofrimento: Para lidar com o sofrimento advindo do trabalho, os profissionais autônomos da engenharia de segurança do trabalho adotam estratégias e/o mecanismos defensivos na sua maioria, individuais. Tais mecanismos inconscientes são realizados pelo ego e foram predominantemente, no presente estudo, a racionalização, seguida da negação e projeção.
Laplanche e Pontalis (2022) no Vocabulário de Psicanálise trazem a definição destes termos, a saber:
Racionalização – Processo pelo qual o sujeito procura apresentar uma explicação coerente do ponto de vista lógico, ou aceitável do ponto de vista moral, para uma atitude, uma ação, uma ideia, um sentimento, etc., cujos motivos verdadeiros não percebe; fala-se mais especialmente da racionalização de um sintoma, de uma compulsão defensiva, de uma forma reativa. A racionalização intervém também no delírio, resultando numa sistematização mais ou menos acentuada (LAPLANCHE E PONTALIS, 2022, p. 25). Negação – Processo pelo qual o sujeito, embora formulando um dos seus desejos, pensamentos ou sentimentos até então recalcado, continua a defender-se dele negando que lhe pertença (LAPLANCHE E PONTALIS, 2022, p. 20).
Projeção – Operação pela qual o sujeito expulsa de si e localiza no outro – pessoa ou coisa – qualidades, sentimentos, desejos e mesmo “objetos” que ele desconhece ou recusa nele. Trata-se aqui de uma defesa de origem muito arcaica, que vamos encontrar em ação particularmente na paranóia, mas também em modos de pensar normal (LAPLANCHE E PONTALIS, 2022, p. 22).
Ao desconsiderar aspectos organizacionais que deveriam ser contemplados no levantamento de dados, o engenheiro de segurança do trabalho autônomo faz uso da racionalização seguida da negação na tentativa de justificar a sua atuação pontual e temporária, não sendo possível o acompanhamento a posteriori das ações que por ventura seriam implementadas. “Quando cê mostra que o problema não tá no seu colo, tá no colo dele, cê acaba com o seu problema”. A negação também foi verificada no tocante à ausência do vínculo empregatício com as empresas. “Tem hora que a gente sente saudade do salário, né, porque é uma inconstância. Mas eu gosto do que eu faço”. O profissional projeta no gestor a responsabilidade de que a atuação não é completa, torna-se conivente com o sistema instituído pela legislação e passa a ser um “servo voluntário” diante do mercado competitivo e cada vez mais agressivo. “Colocar o problema no colo deles, mostrar que é uma bomba e eles estão sentados em cima da bomba”.
A autoaceleraçãotambém foi constatada na fala de dois participantes como estratégia de enfrentamento individual: “A minha estratégia é trabalhar muito e apresentar resultados”. “Acontece comigo de eu tá fazendo três coisas ao mesmo tempo”. Esta estratégia, segundo Dejours (2022b) acalma a angústia, mas esgota as forças, trazendo consequências significativas para a economia psíquica. Do ponto de vista coletivo, ainda para Dejours (2022b) as estratégias de defesa reúnem os esforços de todos para proteger contra os efeitos desestabilizadores de determinados riscos. A estrutura de tais estratégias é complexa e exige a participação de todos. Aestratégia predominante relatada pela maioria dos participantes do estudo foi no que diz respeito à locação dos equipamentos/instrumentos utilizados na avaliação dos riscos ambientais, inseridos no contexto da higiene ocupacional. Quase todos os profissionais autônomos fazem a locação destes, uma vez que o custo da manutenção/calibração dos mesmos inviabilizaria os valores praticados nas consultorias. “Normalmente eu terceirizo esses equipamentos e as medições”. “Eu tenho parceiros, né. Um parceiro que eu costumo trabalhar com ele, ele tem um mundo veio de instrumentos. Ele mexe só com isso”. Uma outra estratégia coletiva mencionada por dois participantes foi a cooperação entre os profissionais: “Se a gente se unir, valorizando esses instrumentos, essas ferramentas que são nossas, não é de ninguém, não é do médico”. “A gente tenta fazer parcerias, né, pra dividir um pouco os trabalhos ou indicar às vezes alguns colegas”. Machado (2022) afirma que a cooperação entre os trabalhadores é essencial. Trata-se da vontade das pessoas de trabalharem juntas e superarem coletivamente as contradições que surgem da própria natureza do trabalho. A cooperação supõe um compromisso que é tanto técnico quanto social (DEJOURS, 2022a).
Tanto as estratégias de enfrentamento individuais quanto as coletivas não divergiram entre o espaço de discussão coletiva e as entrevistas individuais. Neste grupo estudado, a discussão conjunta tanto de elementos da organização do trabalho quanto da mobilização subjetiva valorizou os seus aspectos positivos. Um mecanismo de sublimação pode ser observado entre os participantes. Para Freud (1930), diante da angústia, o indivíduo adota algumas estratégias e uma delas é a sublimação via trabalho. Este mecanismo é, ainda segundo Freud o mais importante pelo fato de permitir a satisfação da pulsão de vida, o prazer. A pulsão é sublimada na medida em que é derivada para um novo objetivo não sexual e em que visa objetos socialmente valorizados (LAPLANCHE E PONTALIS, 2022). Enriquez (1990) relata que um grupo psicológico ou massa psicológica tem a seguinte peculiaridade: sejam quem forem os indivíduos que o compõem, o fato de haverem sido transformados num grupo coloca-os na posse de uma espécie de mente coletiva que os faz sentir, pensar e agir de maneira muito diferente daquela pela qual cada membro dele, tomado individualmente, sentiria, pensaria e agiria, já que leva-se em consideração o contexto grupal no qual se encontra.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo do presente artigo foi discorrer sobre o processo de perlaboração entre engenheiros de segurança do trabalho autônomos e demonstrar a relação com o gerenciamento de riscos ocupacionais. Pelo que foi exposto, percebe-se que o processo de perlaboração ocorreu nos espaços de discussão coletiva. Os participantes se reapropriaram de alguns conceitos e variáveis pertinentes ao gerenciamento de riscos ocupacionais e manifestaram a vontade de emancipação, em especial, na forma de levantamento dos dados para tal gerenciamento. Uma das contribuições do presente estudo para esta categoria de profissionais é elucidar sobre estratégias metodológicas que contribuirão com este levantamento de dados para posterior gerenciamento de riscos. Para tanto, sugere-se a realização de um Workshop entre os participantes desta pesquisa contemplando conteúdo sobre Ergonomia da atividade, Psicodinâmica do Trabalho e Gerenciamento de Riscos Ocupacionais. A vivência teórica com possibilidade de discussão trará à tona abordagens que envolvam a classe trabalhadora e que em muito auxiliarão no gerenciamento dos riscos presentes nas empresas que estes profissionais prestam serviços. Notou-se que os espaços de discussão entre os profissionais da Engenharia viabilizados pelo presente estudo permitiram a reflexão e a possível mudança na forma de atuação. Tradicionalmente, estes profissionais abordam os riscos de maneira técnica, voltada para as metodologias em higiene do trabalho. Porém, gerenciar riscos é mais que o cumprimento de normas e procedimentos. É necessário, além de seguir as etapas da antecipação, reconhecimento, avaliação e controle (pertinentes à mencionada higiene do trabalho); favorecer os processos de reflexão e de elaboração que mobilizam os trabalhadores na direção de mudanças no trabalho e nas suas relações laborais. É preciso superar e ir além, avaliar os agentes que, de fato, adoecem a população trabalhadora nos tempos atuais. E, após sugerir as melhorias, acompanhar a implementação. Fazer com que as empresas nas quais a prestação de serviços é feita veja uma continuidade da atuação destes profissionais.
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