Profa. Dra. Kátia Barbosa Macêdo, José Roberto Heloani
Resumo: o presente texto aborda uma nova forma de violência nas organizações contemporâneas, que é o assédio moral. Inicia com uma introdução, que é seguida por uma discussão
sobre a violência na sociedade e nas organizações. Mesmo não havendo consenso acerca do
tema, é possível uma proposta de intervenção, que pode ocorrer em três níveis: social, organizacional e individual.
Palavras-chave: Assédio moral. Bullying. Mobbing. Trabalho. Violência.
O objetivo do presente texto é discutir a forma de violência que ocorre particularmente nas organizações, denominada assédio moral, psicológico ou mobbing. Parte-se do pressuposto que a violência é inerente ao ser humano, que a civilização criou um sistema de normas e leis e um controle grupal (insuficiente para coibi-la) para possibilitar uma convivência entre os homens.
Começamos com um excerto de uma obra clássica da psicanálise, “O futuro de uma ilusão” (FREUD,1927), ensaio escrito em pleno e tumultuado período entre guerras, no qual Freud (1856-1939) nos ensina que a inclinação agressiva do ser humano é uma disposição de impulsos, independente e original. A cultura encontra na referida inclinação um empecilho. Assim, não só a civilização, mas a cultura humana – em sua ampla concepção – acarreta uma restrição na felicidade das pessoas. Nas próprias palavras de Freud:
…todo indivíduo é virtualmente inimigo da civilização, embora se suponha que esta constitui um objeto de interesse humano universal. É digno de nota que, por pouco que os homens sejam capazes de existir isoladamente, sintam, não obstante, como um pesado fardo os sacrifícios que a civilização deles espera, a fim de tornar possível a vida comunitária (FREUD,1927 p.16).
É importante ressaltar que a agressividade é um fenômeno considerado por Freud como inerente à condição humana. Para o autor, o que nos diferencia de outros animais não é o fato de não sermos agressivos, mas a forma como lidamos com nossa agressividade. Na obra “Totem e tabu”(FREUD,1913) apresenta o pressuposto de que a civilização se erigiu a partir
de um assassinato que ocorreu na horda primitiva.
Assim, a constituição da civilização (FREUD, 1927, pág. 1) teria ocorrido a partir
da coerção e da renúncia do homem a alguns de seus instintos, referindo que tal fato conduziu a presença inevitável e inerente na natureza humana, de tendências destrutivas, anti-sociais e anti-culturais e que na grande maioria das pessoas, essas tendências são suficientemente fortes para determinar seu comportamento em sociedade, no caso em micro-sociedade, organizações e empresas.
Em “O mal estar na civilização”, afirma que:
Se a civilização impõe sacrifícios tão grandes, não apenas à sexualidade do homem, mas também à sua agressividade, podemos compreender melhor porque lhe é difícil ser feliz nessa civilização. O homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança (FREUD,1929, p. 137).
O natural instinto agressivo do homem, a hostilidade de cada um contra todos e
a de todos contra cada um, se opõe a esse programa da civilização (FREUD, 1929, p. 45). Cabe acrescentar que, os fundamentos da Psicanálise clássica partem do desígnio grupal, ou coletivo e que Freud, em toda sua vasta obra, não desprezou a dimensão sócio-cultural.
Souza (1993) agrupa a violência e suas principais correntes em teorias biologicistas e psicologicistas, baseando-se tal qual na abordagem psicanalítica acima descrita, em uma agressividade instintiva do homem:
• Violência de transição: uma relação de determinadas parcelas da sociedade as rápidas mudanças sociais provocadas pela urbanização e pela industrialização
• Violência como estratégia de sobrevivência das camadas populares frente às distorções do capitalismo e
• Violência como delinquência- que envolve condutas patológicas do indivíduo, cabendo ao estado o controle desta, visando o bem estar social.
Na verdade, seguindo o pensamento freudiano, os homens não são criaturas meigas, que desejam ser amadas e que, na pior das hipóteses, são capazes de se defender quando atacadas; pelo contrário, são criaturas cujos instintos incluem uma grande parcela de agressividade. A existência dessa inclinação para a agressão é o fator que perturba nossas relações com o próximo e obriga a civilização a tamanho dispêndio de energia. Em consequência dessa primitiva hostilidade mútua entre os seres humanos, a sociedade civilizada está perpetuamente ameaçada de desintegração. Nesse sentido, devido aos grandes sacrifícios impostos pela civilização à sexualidade e à agressão humanas, o homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança (FREUD, 1929).
Concordamos com MINAYO (1998) quando escreve que diferentes classificações, tais quais as de COSTA (1984), DAS (1999) FINKLER (1994) ARENDT (2000) entre outras, não conseguem dar conta da dimensão e da complexidade da violência, um fenômeno polissêmico, de explicação contraditória, mas permitem trabalhar com indicadores capazes de
informar e subsidiar ações nos níveis político e social.
Para a OIT (2002) a violência no trabalho é um problema transcultural. Constitui-
-se por vezes, em um risco invisível, que pode se concretizar nas relações de trabalho e na saúde dos trabalhadores, revelando-se de forma sutil na violência das organizações (GUIMARÃES, TEIXEIRA; CAMARGO, 2004). Da mesma forma, dialeticamente, as relações que ocorrem em uma organização refletem sua própria cultura e também a cultura de uma sociedade.
DA VIOLÊNCIA SOCIAL PARA A VIOLÊNCIA NO TRABALHO E NAS ORGANIZAÇÕES
Desde as formas de se estruturar o trabalho nas organizações, quando ocorre a
definição de sua política de pessoal e de gestão, já pode estar ou não prevista a possibilidade de ocorrência de relações interpessoais em que imperam a dominação, a exclusão, submissão e a alienação do trabalhador (MACÊDO,1999; HELOANI, 2003a e b; ANTUNES,1995).
Freud concebia as relações de trabalho como centrais para a inserção na comunidade humana, ao mesmo tempo em que as concebia como uma arena privilegiada para propiciar vivências de sofrimento e problemas sociais.
Nenhuma outra técnica para a conduta da vida prende o individuo tão firmemente a realidade quanto à ênfase concedida ao trabalho, pois este, pelo menos, fornece-lhe um lugar seguro numa parte da realidade, na comunidade humana. A atividade profissional constitui fonte de satisfação especial, se for livremente escolhida, isto e, se, por meio de sublimação, tornar possível o uso de inclinações existentes, de impulsos instintivos persistentes ou constitucionalmente reforçados. No entanto, como caminho para a felicidade, o trabalho não é altamente prezado pelos homens. Não se esforça em relação a ele como o fazem em reação a outras possibilidades de satisfação. A grande maioria das pessoas trabalha sob a pressão da necessidade, e essa natural aversão humana ao trabalho suscita problemas sociais extremamente difíceis (FREUD, 1929, p. 99).
O trabalho pode ser considerado um pilar constituinte da sociedade moderna, sendo gerador de vivências de prazer e satisfação. Como consequência de seu desenvolvimento histórico, traz em si também uma marca ligada ao sofrimento. Esse sofrimento está ligado à violência que também advém da distribuição desigual de renda para a sociedade e que se traduz em desigualdade
de acesso a sistemas de segurança, educação e atendimento a saúde. Portanto, muitos fatores que a princípio deveriam submeter as pessoas às mesmas leis, contribuem para a construção de uma sociedade de desiguais. Principalmente em países em desenvolvimento como o Brasil, a impunidade
se torna um fator agravante para que as desigualdades sociais sejam vivenciadas como um fator que incrementa o uso da violência, para a obtenção de benefícios e vantagens.
Embora o assédio moral no trabalho pareça ser tão antigo quanto o trabalho, se intensificou e ganhou visibilidade na última década, por meio da literatura acadêmica na mídia impressa e eletrônica. Para HELOANI (2002) a discussão sobre assédio moral é nova, mas o fenômeno é antigo, tão antigo quanto o homem.
A questão do assédio moral é mundialmente reconhecida como um problema sério e complexo, advinda de fatores sociais, econômicos, organizacionais e culturais. Essa forma de violência psicológica no trabalho está descrita pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pela Organização Mundial da Saúde (OMS, 2004) que reconhecem que o assédio moral ou mobbing constitui um problema internacional que vem aumentando a cada ano e que, em grande parte, ainda é ignorado e subestimado.
BULLYING, MOBBING E ASSÉDIO MORAL: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO
Vários termos vêm sendo empregados na literatura especializada para designar o fenômeno. O Quadro 1 abaixo apresenta cronologicamente os principais autores que auxiliaram na constituição do conceito.
Quadro 1:- Breve histórico da constituição teórica sobre assédio moral
Historicamente, o termo assédio moral, foi usado para descrever o comportamento predatório de aves e de outros animais atacando um individuo ou grupo (DAVEWNDORF, 1999).
Em relação aos seres humanos, o termo foi usado pela primeira vez por LORENZ (1963) em sua descrição do comportamento dirigido a “estranhos”, nas escolas e nas forças armadas. No entanto, o problema foi amplamente elaborado chamando a atenção pública, por LEYMANN (1996), a partir de estudos com base nos ambientes de trabalho sueco. O autor descreveu o assédio moral como uma forma de isolamento social que frequentemente
resultava na expulsão do trabalhador-alvo de seu trabalho. Da análise de 800 respostas da pesquisa que realizou com trabalhadores, Leymann identificou uma tipologia de cinco categorias de comportamentos de assédio moral que incluíam:
– agressões que impediam a autoexpressão e a comunicação;
– ataques ao relacionamento social,
– ofensas à reputação,
– ofensas com impacto sobre a qualidade de vida geral e profissional e
– agressões diretas sobre a saúde da pessoa (LEYMANN, 1996).
O termo assédio moral deve ser utilizado com referência a indivíduos adultos e
no contexto ocupacional, sendo uma forma de violência psicológica. Para ao autor, o termo bullying aplica-se a crianças e adolescentes, no contexto escolar, podendo ser uma forma de violência física ou psicológica.
No entanto, a consolidação do tema como objeto de estudo veio a ocorrer com
Hirigoyen, pesquisadora francesa, psiquiatra e psicanalista com grande experiência em terapia familiar. Lançou o livro “Assédio moral: a violência perversa no cotidiano” (HIRIGOYEN, 2002a) que se tornaria um best-seller e que popularizou o assunto, franqueando inúmeros debates que incluíram o tema também na área de organização do trabalho, além de sua ocorrência no âmbito familiar.
A figura 1 abaixo ilustra alguns termos relacionados e utilizados como sinônimos.
Embora os conceitos de bullying (usado em países de língua inglesa) e mobbing, (usado em muitos países europeus) possam ter algumas diferenças semânticas e conotações, referem-se basicamente ao mesmo fenômeno. Qualquer variação no uso dos mesmos pode estar mais relacionada às diferenças culturais que envolvem o fenômeno em diferentes países, do que a diferenças reais dos fenômenos (EINARSEN, 2003, p.25). Além disso, qualquer diferença percebida pode ser atribuída a diversas perspectivas pelas quais o fenômeno possa ser visto, que não indica que sejam fenômenos distintos (ZAPF; EINARSEN, 2005).
ZAPF (1999) refere a existência de múltiplas causas potenciais e componentes para o mobbing a serem consideradas:
• A organização;
• O assediador;
• O sistema social das equipes de trabalho e
• A vítima de mobbing, não devendo ser considerada uma explicação unilateral.
Elas estão ilustradas na figura 2 a seguir:
Alguns autores consideram o mobbing como uma síndrome psicossocial multidimensional. Contudo, para Freitas, Heloani e Barreto (2008), o assédio moral é fruto de relações interindividuais deterioradas, em consequência de formas de organização do trabalho perversas, na qual se evidencia a ideologia do indivíduo abstraído do conjunto das relações sociais e não como uma questão precipuamente individual.
Estes autores consideram o assédio moral, basicamente como um fenômeno decorrente do processo disciplinar, por sua vez proveniente das “modernas” formas de gestão e organização do trabalho no mundo atual, que passa por rápidas mudanças.
Hirigoyen (2002b) pontua outra dificuldade com relação ao assédio moral, a existência de duas dimensões. Há, ao mesmo tempo, uma dimensão coletiva que deve ser tratada pelos sindicatos e tratada de forma coletiva, mas também, uma dimensão de sofrimento individual que precisa de apoio de médicos, psicólogos e outros profissionais afins, para ajudar a pessoas a encontrar soluções.
O enfoque do assédio moral como uma perversão do ego em uma perspectiva fundamentalmente individual, em que ocorre um silencioso assassinato psíquico em uma esfera estritamente psicopatológica, traduz a posição de vários autores conhecidos. HIRIGOYEN (2002a), afirma que o que é necessário saber é que se o assédio moral somente é possível quando a hierarquia ou a direção da empresa deixou isto acontecer e se omitiu. Se uma empresa é vigilante e severa com relação a essas práticas, o assédio moral não prospera, mesmo quando há um indivíduo particularmente perverso na empresa. Ele será sancionado e não poderá continuar a agir desta forma. Não há consenso absoluto acerca do conceito de assédio moral, no entanto, o conceito de assédio moral que norteia o presente texto é o que se segue:
Assédio moral é uma conduta abusiva, intencional, frequente e repetida, que ocorre no ambiente de trabalho e que visa diminuir, humilhar, vexar, constranger, desqualificar e demolir psiquicamente um indivíduo ou um grupo, degradando as suas condições de trabalho, atingindo a sua dignidade e colocando em risco a sua integridade pessoal e profissional (FREITAS; HELOANI; BARRETO, 2008, p.37).
O ASSÉDIO MORAL NAS ORGANIZAÇÕES BRASILEIRAS
Heloani (2004) afirma que no Brasil colônia, índios e negros foram sistematicamente humilhados por colonizadores que, de certa forma, julgavam-se superiores e aproveitavam-se dessa suposta superioridade militar, cultural, religiosa e econômica para impingir- lhes sua visão de mundo, sua religião e seus costumes. Não raro esse procedimento, constrangedor sob vários aspectos, vinha acompanhado de outro que hoje denominamos assédio sexual, ou seja, constranger-se uma pessoa do sexo oposto ou do mesmo sexo a manter qualquer tipo de prática sexual sem que essa verdadeiramente o deseje. Será o assédio moral herança do período colonial no Brasil?
Constata-se que o movimento sindical foi, em parte, o responsável pela propagação das discussões e reflexões sobre assédio moral no Brasil. A assunção desse tema no meio jurídico e mesmo nas rodas acadêmicas foi produto desse enfoque e escorou-se no trabalho incansável de militância de Margarida Barreto. Sua atuação como médica do trabalho no âmbito sindical, as várias entrevistas e palestras ofertadas e sua dissertação de mestrado sobre humilhação no trabalho, foram cruciais para a introdução desse tema no país.
Frente à gravidade do problema e com a finalidade de combater toda e qualquer
violência no ambiente de trabalho, incluindo o assédio moral, o Ministério da Saúde (BEASIL, 2008) lançou uma cartilha denominada “Violência e sofrimento no ambiente de trabalho: assédio moral”, com a colaboração de entidades sindicais.
Os procedimentos que envolvem o assédio moral parecem ser os mesmos no mundo todo e o sofrimento das vítimas é descrito exatamente da mesma forma, bem como as consequências sobre sua saúde. O que parece mudar são as características das pessoas atingidas, provavelmente, em função do contexto sociocultural, havendo diferenças quanto à forma de vivenciar a situação, que favorecem a instauração do assédio moral (HIRIGOYEN, 2002b).
O fenômeno, sob o rótulo assédio moral é bastante estudado, havendo ainda
uma escassez de estudos realizados no campo da saúde mental. Existem várias abordagens teórico-metodológicas para se abordar o tema do assédio moral nas organizações. Para Jacques (1985), os referenciais da Sociologia e da Psicologia Social, ou ainda, o referencial freudo-marxista, propiciam elucidar os nexos e as articulações indispensáveis entre identidade e trabalho. Em 2003, Jacques afirma ainda que, embora possamos apontar tanto para as diferentes ênfases entre a abordagem (clínica) de base psicanalítica da Psicodinâmica do Trabalho e as abordagens (sociológicas) de base marxista, ambas alinham-se à metodologia qualitativa, ao passo que as abordagens cognitivo-comportamentais que utilizam o conceito de stress podem ser caracterizadas pelo uso de metodologias quantitativas (JACQUES, 2003).
No campo da saúde mental, o debate ganha intensidade a partir do trabalho de
Barreto (2000; 2003b), de Freitas (2001) e de Heloani (2003; 2004) – pioneiros deste tema no Brasil -, acrescido da tradução dos livros de Hirigoyen (2000; 2002a). O site www.assediomoral.org, fundado em primeiro de maio de 2001 (dia do trabalho), foi e continua sendo uma sólida referência na conscientização e divulgação de informações de todos aqueles que, por alguma razão tangenciam o tema. Muitos trabalhadores encontraram interlocução, apoio, estratégias de enfrentamento e prevenção, graças ao trabalho teórico e prático desenvolvido.
Hoje, profissionais de diferentes campos do conhecimento e acadêmicos dão sua contribuição de inúmeras maneiras, originando diferentes solicitações no campo jurídico, empresarial e até midiático, como se pode notar pelas chamadas a seguir.
POSSIBILIDADES DE INTERVENÇÕES
A simples existência de códigos de ética adotados pela maioria das empresas coibindo a violência no trabalho, não resolve o problema. Em nossa opinião, além deles, os departamentos de Recursos Humanos das empresas devem criar mecanismos que possibilitem ao trabalhador agredido defender-se, denunciando a agressão de que foi vítima por escrito e sigilosamente, para sua maior segurança. Com este intuito, cabe a utilização de caixas postais
ou urnas, localizadas no interior das organizações. Mas é óbvio que tudo isso ainda se mostra insuficiente.
A solução mais recomentada para o enfretamento do problema se encontra em um trabalho de humanização do processo laboral. Por mais que o trabalho se apresente como estranho a quem o faz, por mais que as organizações tentem estimular o trabalhador a se motivar a alcançar os seus objetivos e metas visando satisfazer suas necessidades; por mais que as pessoas sejam consideradas como meios para que as organizações atinjam seus fins, sabemos que é nas relações de trabalho que se aprende o exercício da democracia. É nesse espaço que o psicólogo pode atuar, é também no plano do coletivo que ele pode trabalhar. É na intervenção da organização do coletivo que se pode atingir a saúde mental individual, pois o trabalho nunca é neutro: ou contribui para a constituição de uma identidade emancipatória, (processo
de realização de si) ou induz à construção de uma identidade deteriorada (agente de desestabilização e de sofrimento).
Embora as organizações não tenham formas de lidar com sentimentos de angústia, medo, remorso e sofrimento que constituem a psique humana, os trabalhadores vivenciam sua interação com eles de forma diferenciada, dependendo de sua história pessoal, seus valores e ainda dos aspectos relacionados à cultura e a socialização organizacional. Dependendo da
abordagem para explicar o assédio moral é que se configura a forma de intervenção para lidar com o assunto. Desenvolvemos abaixo uma figura que apresenta algumas possibilidades de intervenção:
Hirigoyen (2002b) acrescenta que a lei é muito importante, primeiro num plano
simbólico e também no dissuasivo para desencorajar este tipo de comportamento. Sendo assim, descortina-se ao psicólogo do trabalho, e aos demais profissionais da área de saúde mental, um importante campo de estudos, não apenas de denúncia. É fundamental evitar este tipo de violência e fazer um trabalho preventivo nos níveis primário, secundário e terciário para que haja cada vez menos assédio moral. Hirigoyen (2002b) sugere uma ação de
reconhecimento e enfrentamento coletivo do assédio moral, direta e clara. Acrescenta que o assédio é um péssimo “negócio” para as empresas, não se constituindo em um método eficiente, na medida em que causa perda de produtividade. Custa caro para as vítimas porque muitas vezes são obrigadas a se tratar, perdem seus empregos, têm que recorrer a um advogado
para se defender etc. A questão do assédio moral, portanto, deve ser difundida cada vez mais entre os profissionais de saúde, entre as pessoas que tomam decisões, os políticos, gerentes e administradores, pessoal de RH, comunidade, sindicatos e trabalhadores em todo o mundo. Que haja sensibilidade ao sofrimento dos trabalhadores e a este tema, pois somente a tomada
de “consciência coletiva e multidisciplinar” em todos os níveis, poderá apontar soluções. O combate ao assédio psicológico-moral requer a união dos esforços de todos esses atores, abordando o problema de diferentes ângulos, de forma interdisciplinar.
Acreditamos ser possível erigir uma forma alternativa de sociabilidade que inclua outra relação intersubjetiva, um paradigma social e humano que não instrumentalize o outro e que se apoie no princípio moral da dignidade e dos direitos humanos. Confiamos na possibilidade de o psicólogo contribuir para a promoção de uma política de identidade autônoma e emancipatória, capaz de criar o impulso de luta contra a nossa capacidade de nos destruir a nós mesmos. Uma psicologia individualista – indiferente aos problemas sociais e políticos – e incapaz de perceber a configuração social e histórica do sujeito, tem conduzido a uma interpretação do assédio moral como uma patologia individual, ao invés de situá-lo no campo coletivo da organização da produção material ou imaterial. Esquecem-se, assim, de que as atitudes e as ações dos homens só ocorrem e só podem ser compreendidas como processos que se articulam na intersubjetividade, envolvendo obrigatoriamente o reconhecimento ou não do outro em sua humanidade, dentro da história.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O texto construído permitiu dimensionar a questão do assédio moral-psicológico ou mobbing como um processo de socialização da organização social, no qual se inclui a organização do trabalho, com seus processos de racionalização, que por sua vez requerem uma disposição dos sujeitos para se concretizarem. A subjetividade não é uma abstração! Esse recorte permite abordar o “sujeito psicológico” a partir de seu contexto social.
Nessa perspectiva, vários elementos como o sentido e o significado do assédio moral no trabalho, os sujeitos e seus respectivos processos de subjetivação (subjetividades) abrem diferentes projeções e são concebidos a partir da ideia de que são “forjados” por certas estruturas sociais. Este pressuposto produz um importante recorte ontológico/epistemológico que ajuda a desfazer a dicotomia indivíduo-sociedade.
Sendo a violência no trabalho um assunto multidisciplinar, o recorte de análise aqui utilizado permitiu melhor explicitar a relação entre a dimensão pública e a particular e também o lugar do indivíduo-trabalhador nessa conexão. A observação sistemática e o estudo do modo de organização do trabalho nas diferentes organizações nacionais e internacionais propicia entender um pouco mais o “homem psicológico”, chave para iniciarmos essa discussão.
A contenda não é simples nem tão pouco fácil, é complexa. Embora tais concepções se acirrem e ganhem contornos mais claros na atualidade, estão assentadas em uma tradição liberal e na sua ideia de “indivíduo”, avessa a qualquer insinuação de que o processo de formação do psíquico ocorre também, a partir do social. Aliás, a própria psicanálise postula que
o superego é essencialmente cultural e social.
De forma semelhante, por meio do raciocínio analógico, localizamos essa discussão no âmbito do racismo, do preconceito de classe, da homofobia, da defesa de um liberalismo econômico extremado e de outras concepções que partem de um olhar excludente e preconceituoso em relação ao sujeito, distante de uma perspectiva dialética mais complexa e menos fragmentada, inserida necessariamente numa representação cultural, histórica, e, necessariamente social.
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