Reflexões sobre o adoecimento dos servidores técnico-administrativos em educação

Reflexões sobre o adoecimento dos servidores técnico-administrativos em educação – Kátia Barbosa Macêdo

Profa. Dra. Kátia Barbosa Macêdo, Lila de Fátima de Carvalho Ramos

Resumo

Resumo: O mundo do trabalho atual é marcado pelo capitalismo contemporâneo, que tem implicado na saúde do trabalhador. O objetivo deste estudo é analisar o impacto da organização do trabalho na saúde mental do trabalhador público federal no Ensino Superior na política social vigente. A abordagem teórica utilizada é a Psicodinâmica do Trabalho (PDT), desenvolvida por Christophe Dejours. A coleta de dados aconteceu durante a realização de oito sessões coletivas com seis participantes, cujos resultados indicam que a organização do trabalho se caracteriza por precariedade nas relações socioprofissionais e condições de trabalho inadequadas, que geram vivências de sofrimento. Estas se constituem em fatores para adoecimento físico e psíquico. Destacam-se ansiedade, depressão, alcoolismo, ideações suicidas e tentativas de suicídio. A abordagem dejouriana mostrou-se relevante.
Palavras-chave: Capitalismo contemporâneo. Psicodinâmica do trabalho. Organização do trabalho. Saúde mental. Suicídio.

Mental health of the federal public service worker in higher education

Abstract: The world of work nowadays is marked by contemporary capitalism, which has affected workers’ health. This study aims at analyzing the impact the organization of work has on the federal public service worker in higher education based on the current social policy. We have used Christophe Dejours’ Psychodynamics of Work as theoretical approach. Data collection took place during eight collective sessions with six participants, whose results indicate that the organization of work is characterized by precariousness in socio-professional relations and inadequate working conditions, which cause experiences of suffering. Those experiences constitute factors for physical and psychic illness, with emphasis on anxiety, depression, alcoholism, suicidal ideation and suicide attempts. Therefore, Christophe Dejours’ approach proved to be relevant.
Keywords: Contemporary capitalism. Psychodynamics of Work. Organisation of work. Mental health. Suicide.

INTRODUÇÃOtrabalho é, para o homem, condição de sua existência social; é o meio pelo qual ocorre a emancipação humana, construindo sua identidade, afirmandoo socialmente (DEJOURS, 2017). Nesse contexto, este artigo visa contribuir para as reflexões sobre os processos de saúde mental com foco especial no adoecimento que impactam os servidores TécnicoAdministrativos em Educação (TAE) que atuam no ensino superior federal. Para tanto, utilizase da abordagem teóricometodológica da Psicodinâmica do Trabalho (PDT). Essa metodologia foi desenvolvida por Cristophe Dejours (1992, 1994) e considera o trabalho como centralidade na vida de um trabalhador. Segundo Dejours (2017), a PDT compreende que o trabalho não é só sofrimento, mas também fonte de prazer, podendo construir e desempenhar um papel na construção da saúde do trabalhador (sublimação). Ela é praticada sob duas dinâmicas, ocorrendo a primeira no ambiente das organizações (instituições), com o objetivo de restaurar as condições de deliberação coletiva, orientadas para a busca de uma ação capaz de transformar a organização do trabalho. Essa premissa tem a função de mediar conflitos laborais.A segunda dinâmica ocorre no consultório, no atendimento e no acompanhamento de indivíduos que sofrem de transtornos psicopatológicos relacionados às atividades laborais. Tratase dos efeitos dos constrangimentos engendrados pelo trabalho sobre o funcionamento psíquico dos indivíduos. É o sujeito que luta por sua saúde mental, o sujeito da contradição, do conflito próprio, que hesita sobre si mesmo quando confrontado com o real, é o do sofrimento em relação às adversidades da organização do trabalho, do trabalhar. Isso porque o trabalho não é neutro para o sujeito; ao contrário, provoca conflitos com o mundo real; ele, sujeito, engajase no corpo, no afeto, e faz, ao trabalhar, o trabalho vivo, muitas vezes mortificado pelas prescrições da organização do trabalho (MACÊDO, 2013). Assim, para melhor compreensão deste estudo, passase a contextualizar o servidor e o serviço em uma Instituição Federal de Ensino Superior (Ifes).2 SÍNTESE CONTEXTUAL DO SERVIDOR EM UMA IFESOsserviços públicos enfrentam um tempo de transformações, impostas pelo processo de globalização, com consequências negativas na esfera da subjetividade. Aspectos como o individualismo, a agressividade, a competitividade entre os colegas como resultado daavaliação de desempenho individual , a falta de confiança e cooperação, a imposição pelo uso da tecnologia, a não participação laboral, entre outros, compõem um contexto de relações socioprofissionais. O mundo do trabalho precarizado, burocrático, fragmentado e produtor de adoecimento promove, frequentemente, ações de assédio moral institucional, permitindo uma micropolítica de exploração do sofrimento dos trabalhadores e de humilhações cotidianas e sistemáticas como instrumento de controle da biopolítica. Tais ações desestruturam emocionalmente os trabalhadores, podendo leválos, ante as ameaças diárias, a desistirem do emprego (RIBEIRO; SANTOS; MANCEBO, 2013). Em outros termos, no

INTRODUÇÃOtrabalho é, para o homem, condição de sua existência social; é o meio pelo qual ocorre a emancipação humana, construindo sua identidade, afirmandoo socialmente (DEJOURS, 2017). Nesse contexto, este artigo visa contribuir para as reflexões sobre os processos de saúde mental com foco especial no adoecimento que impactam os servidores TécnicoAdministrativos em Educação (TAE) que atuam no ensino superior federal. Para tanto, utilizase da abordagem teóricometodológica da Psicodinâmica do Trabalho (PDT). Essa metodologia foi desenvolvida por Cristophe Dejours (1992, 1994) e considera o trabalho como centralidade na vida de um trabalhador. Segundo Dejours (2017), a PDT compreende que o trabalho não é só sofrimento, mas também fonte de prazer, podendo construir e desempenhar um papel na construção da saúde do trabalhador (sublimação). Ela é praticada sob duas dinâmicas, ocorrendo a primeira no ambiente das organizações (instituições), com o objetivo de restaurar as condições de deliberação coletiva, orientadas para a busca de uma ação capaz de transformar a organização do trabalho. Essa premissa tem a função de mediar conflitos laborais.A segunda dinâmica ocorre no consultório, no atendimento e no acompanhamento de indivíduos que sofrem de transtornos psicopatológicos relacionados às atividades laborais. Tratase dos efeitos dos constrangimentos engendrados pelo trabalho sobre o funcionamento psíquico dos indivíduos. É o sujeito que luta por sua saúde mental, o sujeito da contradição, do conflito próprio, que hesita sobre si mesmo quando confrontado com o real, é o do sofrimento em relação às adversidades da organização do trabalho, do trabalhar. Isso porque o trabalho não é neutro para o sujeito; ao contrário, provoca conflitos com o mundo real; ele, sujeito, engajase no corpo, no afeto, e faz, ao trabalhar, o trabalho vivo, muitas vezes mortificado pelas prescrições da organização do trabalho (MACÊDO, 2013). Assim, para melhor compreensão deste estudo, passase a contextualizar o servidor e o serviço em uma Instituição Federal de Ensino Superior (Ifes).2 SÍNTESE CONTEXTUAL DO SERVIDOR EM UMA IFESOss erviços públicos enfrentam um tempo de transformações, impostas pelo processo de globalização, com consequências negativas na esfera da subjetividade. Aspectos como o individualismo, a agressividade, a competitividade entre os colegas como resultado daavalia ão de desempenho individual , a falta de confiança e cooperação, a imposição pelo uso da tecnologia, a não p articipação laboral, entre outros, compõem um contexto de relações socioprofissionais. O mundo do trabalho precarizado, burocrático, fragmentado e produtor de adoecimento promove, frequentemente, ações de assédio moral institucional, permitindo uma micropolítica de exploração do sofrimento dos trabalhadores e de humilhações cotidianas e sistemáticas como instrumento de controle da biopolítica. Tais ações desestruturam emocionalmente os trabalhadores, podendo leválos, ante as ameaças diárias, a desistirem do emprego (RIBEIRO; SANTOS; MANCEBO, 2013). Em outros termos, no

INTRODUÇÃO

O trabalho é, para o homem, condição de sua existência social; é o meio pelo qual ocorre a emancipação humana, construindo sua identidade, afirmando-o socialmente (DEJOURS, 2017). Nesse contexto, este artigo visa contribuir para as reflexões sobre os processos de saúde mental – com foco especial no adoecimento – que impactam os servidores Técnico-Administrativos em Educação (TAE) que atuam no ensino superior federal. Para tanto, utiliza-se da abordagem teórico-metodológica da Psicodinâmica do Trabalho (PDT). Essa metodologia foi desenvolvida por Cristophe Dejours (1992, 1994) e considera o trabalho como centralidade na vida de um trabalhador.

Segundo Dejours (2017), a PDT compreende que o trabalho não é só sofrimento, mas também fonte de prazer, podendo construir e desempenhar um papel na construção da saúde do trabalhador (sublimação). Ela é praticada sob duas dinâmicas, ocorrendo a primeira no ambiente das organizações (instituições), com o objetivo de restaurar as condições de deliberação coletiva, orientadas para a busca de uma ação capaz de transformar a organização do trabalho. Essa premissa tem a função de mediar conflitos laborais.

A segunda dinâmica ocorre no consultório, no atendimento e no acompanhamento de indivíduos que sofrem de transtornos psicopatológicos relacionados às atividades laborais. Trata-se dos efeitos dos constrangimentos engendrados pelo trabalho sobre o funcionamento psíquico dos indivíduos. É o sujeito que luta por sua saúde mental, o sujeito da contradição, do conflito próprio, que hesita sobre si mesmo quando confrontado com o real, é o do sofrimento em relação às adversidades da organização do trabalho, do trabalhar. Isso porque o trabalho não é neutro para o sujeito; ao contrário, provoca conflitos com o mundo real; ele, sujeito, engaja-se no corpo, no afeto, e faz, ao trabalhar, o trabalho vivo, muitas vezes mortificado pelas prescrições da organização do trabalho (MACÊDO, 2013).

Assim, para melhor compreensão deste estudo, passa-se a contextualizar o servidor e o serviço em uma Instituição Federal de Ensino Superior (Ifes).

2 SÍNTESE CONTEXTUAL DO SERVIDOR EM UMA IFES

Os serviços públicos enfrentam um tempo de transformações, impostas pelo processo de globalização, com consequências negativas na esfera da subjetividade. Aspectos como o individualismo, a agressividade, a competitividade entre os colegas – como resultado da avaliação de desempenho individual –, a falta de confiança e cooperação, a imposição pelo uso da tecnologia, a não participação laboral, entre outros, compõem um contexto de relações socioprofissionais. O mundo do trabalho precarizado, burocrático, fragmentado e produtor de adoecimento promove, frequentemente, ações de assédio moral institucional, permitindo uma micropolítica de exploração do sofrimento dos trabalhadores e de humilhações cotidianas e sistemáticas como instrumento de controle da biopolítica. Tais ações desestruturam emocionalmente os trabalhadores, podendo levá-los, ante as ameaças diárias, a desistirem do emprego (RIBEIRO; SANTOS; MANCEBO, 2013). Em outros termos, no mundo capitalista neoliberal a inflexibilidade parece estar estabelecida ao se evidenciar o capital interferindo no serviço público. 

Isso porque há uma preocupação justificável em diminuir custos, gastos dos cofres públicos. Por outro lado, ao se extinguirem cargos e postos, não há concursos substitutivos o suficiente, o que promove a terceirização das funções inerentes aos postos de trabalho extintos (CASTRO; PEREIRA, 2014). A partir daí, passa-se a ter postos e funções semelhantes, mas salários e cargas horárias diferentes, o que contribui para o sentimento de injustiça e de insatisfação. 

Ademais, as relações de trabalho inflexíveis também são observadas no processo burocrático, consubstanciadas na precária estrutura, no clima organizacional com baixa participação nas tomadas de decisões laborais e nas questões políticas institucionais. De outra parte, uma suposta benéfica flexibilidade estaria presente na capacitação do servidor/trabalhador para desenvolver, simultaneamente, para várias funções pertencentes a cargos diferentes (técnicoadministrativo, recepcionista, digitador, secretário, vigilante), bem como para a disponibilidade de recursos tecnológicos que permitem o trabalho remoto. Por detrás desse discurso aparentemente atraente está o pensamento dominante capitalista de busca por um excelente desempenho (ANTUNES; PRAUN, 2015; BALASSIANO; TAVARES; PIMENTA, 2011).

Reis (2017) afirma que estudiosos da área da Administração Pública consideram que a Nova Administração ou Gestão Pública (New Public Management (NPM)) – movimento emergido nas duas últimas décadas – tem como meta impulsionar a referida Administração para atuar nos mesmos moldes das empresas privadas, ou seja, adquirir eficiência, reduzir custos, obter mais eficácia na prestação de serviço. Esse novo processo modificou o setor público, antes considerado mais estável, regulado pela burocracia, que passou a conviver com formatos diferentes: carreiras flutuantes, flexíveis, transacionais, além de contratação alternativa, como terceirização, subcontratação, informalidade (BALASSIANO; TAVARES; PIMENTA, 2011; DENHARDT, 2012; GAULEJAC, 2011; SILVA; BALASSIANO; SILVA, 2014).

No caso específico dos servidores Técnico-Administrativos em Educação (TAEs), eles são hoje regidos pelo Regime Jurídico Único. Por sua vez, a determinação constitucional é aplicar, como regra, a forma de relação estatutária entre aquele que ocupa cargo público e o órgão ou administração direta ao qual está vinculado. No plano federal, a lei que reúne essas regras é a nº 8.112/1990, denominada Estatuto do Servidor Público Federal ou regime jurídico estatutário (BRASIL, 1990).

Apesar da existência de uma normativa contendo regras jurídicas claras, ao ingressar no serviço público, o novo servidor raramente tem a compreensão da realidade em que está inserido. O treinamento de ingresso, quando existe, limita-se a esclarecer a localização do órgão na estrutura da União (no caso do servidor público federal) e as formalidades relativas às atribuições de cargo ou função. Encaminhado ao setor designado, começa a receber orientações para executar tarefas abstratas, desconhecendo, muitas vezes, de onde provêm, a que se destinam, sendo-lhe oferecido um vago sentido da utilidade, finalidade do trabalho, como também de condutas da nova identidade posta, a ser incorporada para sobreviver no meio e dele fazer parte (MARTINS, 2004). Durante dois ou três anos, estará em estágio probatório, não sabendo ao certo o que isso de fato significa, a não ser que, após esse período, será efetivado no cargo, geralmente com estabilidade. O órgão público passa a representar um ente distante, assim como seus objetivos. 

A orientação de respeito pela autoridade impele o servidor à estrita observação das normas (RIBEIRO; SANTOS; MANCEBO, 2013). Logo, o emprego público caracteriza-se pelo alijamento entre ação transformadora e trabalhador: a organização assume a conotação de ente distante, intocável, de empregador desconhecido, mutável. Há, ainda, pouca liberdade para exercer as funções laborais, falta de reconhecimento, excesso de cobrança e de burocracia, bem como a falta de autonomia no que se refere à possibilidade de o trabalhador promover os ajustes necessários para transformar o trabalho prescrito em trabalho real. Sem essa autonomia, o trabalhador fica engessado, o que compromete sua mobilização subjetiva, ponto nevrálgico para a psicodinâmica do trabalho no serviço público ou privado (ANTUNES; PRAUN, 2015; LANCMAN et al., 2013).

Dessa forma, coloca-se em risco o significado do trabalho, seu sentido, reconhecimento social, que conjuga o meio sociocultural-histórico com a subjetividade do indivíduo, fornecendo a identidade necessária ao equilíbrio humano. Tais fatos atuam como desmotivadores do desenvolvimento pessoal, profissional, diminuindo a autoestima, favorecendo a acomodação às estruturas burocráticas vigentes. Enquanto isso, a sociedade exige resultados visíveis, sendo um desafio reconhecer a importância, a qualidade do serviço público, além de torná-lo transparente (LANCMAN et al., 2013).

Na Ifes em debate houve algumas mudanças impulsionadas pela criação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) (BRASIL, 1996), juntamente com a implementação do programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), instituído pelo Decreto nº 6.096, de 24 de abril de 2007, e parte do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) (BRASIL, 2007). A educação superior pública brasileira, assim, sofreu uma expansão, inserindo novas modalidades de graduação, pós-graduação, alterando sua estrutura de gestão acadêmica. Essas instituições, construídas sobre o tripé de atividades Ensino, Pesquisa e Extensão, ganharam mais um elemento: a gestão (BRASIL, 2017; CASTRO; PEREIRA, 2014). 

Esse cenário provocou alterações no contexto de trabalho dos TAEs – espaço físico, ambiente, condições de trabalho, que são impelidos a atender os indicadores de produtividade, havendo alteração no clima de cooperação, o que fomenta o isolamento no trabalho. Além disso, o serviço aumentou, mas o número de servidores não acompanhou a demanda. 

Desse modo, o adoecimento advindo do trabalho, vivenciado pelos trabalhadores no cenário exposto, emergiu na pesquisa. O campo de investigação deste estudo foi o Programa Saudavelmente (SDM), da Universidade Federal de Goiás (UFG). Assim, para melhor entendimento, antes da apresentação da metodologia, revela-se oportuna uma breve contextualização do SDM e uma descrição suscinta de um dos processos de adoecimento mental, o suicídio.

2.1 Programa Saudavelmente da Universidade Federal de Goiás

O processo de cuidar e prevenir, além do de reabilitar a saúde do servidor, está a cargo do Programa Saudavelmente (SDM), pertencente à Pró-Reitoria de Assuntos da Comunidade Universitária (PROCOM), que, por sua vez, incumbe-se das políticas sociais da universidade. O SDM abarca vários projetos de assistência, prevenção e capacitação na área de saúde mental (incluindo projetos referentes à dependência química) e se dirige a estudantes, docentes e técnicos administrativos. Sua equipe é multidisciplinar, composta por médico psiquiatra, assistente social, psicólogo, psicoterapeuta, arte terapeuta e enfermeira, que realizam atendimentos individuais, em grupo e acompanhamento familiar (RAMOS, 2016). Por ser o Saudavelmente campo deste estudo, emergiu-se como tema o adoecimento advindo do trabalho vivenciado nesse cenário, chamando a atenção especialmente para a ocorrência de ideações suicidas, várias vezes tornadas tentativas de suicídio. Sobre esses níveis de adoecimento passa-se a discorrer.

2.2 O suicídio no trabalho 

O termo suicídio foi utilizado pela primeira vez por Desfontaines (1737), sendo derivado do latim sui (si mesmo) + caederes (ação de matar), tendo como conotação a morte intencional, provocada, dirigida pelo próprio agente. Ainda, o vocábulo é relacionado à autoeliminação, autodestruição, autoassassinato, auto homicídio (FERREIRA, 1986). Antes de associá-lo ao trabalho, é necessário pormenorizar o sentido do trabalho na sociedade atual. 

Para Dejours (2004), o trabalho ocupa posição central na sociedade: desempenha papel essencial de formação do espaço público, pois trabalhar não é tão somente produzir, mas, ainda, viver junto. De modo aparentemente contraditório, também fator de sofrimento psíquico ligado à evolução da organização do trabalho. 

Nos tempos atuais, o trabalhador passa constantemente pela avaliação individualizada de desempenho funcional mediante instrumentos diversos, como entrevistas, auditagens internas, externas, contratos individualizados de objetivos, gestão por objetivo, balanço de competências, centro de resultados, autocontrole, autoavaliação, entre outros (REIS, 2017). 

Esse processo gerou consequências nocivas ao ambiente de trabalho. Os casos de assédio moral (HELOANI, 2013) têm levado muitas empresas e instituições públicas ao banco dos réus, sendo facetas desse fenômeno. Os suicídios – que ganharam evidência e despertam o interesse de alguns especialistas em saúde no mundo laboral como Christophe Dejours, Florence Bègue (2010) e Yves Clot (2009) – são também consequências disso. 

Com efeito, Venco e Barreto (2010) afirmam ser consenso entre pesquisadores brasileiros relacionar a gênese do suicídio aos processos psíquicos, mas ressaltam que alguns estudiosos indicam um risco maior para profissionais como agricultores, médicos, bombeiros, bancários, juízes, entre outros. Também Santos (2009) e Marques e Giongo (2016) denunciaram evidências do nexo causal entre as condições de trabalho, as reestruturações, as situações de desemprego, a depressão e o suicídio. 

Dejours e Bègue (2010) sistematizaram três abordagens que fornecem elementos para compreender o vínculo entre suicídio e trabalho: a primeira é marcada pelo estresse, associado às perturbações biológicas, psíquicas, do ambiente laboral. A segunda, no campo estruturalista, imputa ao ato do suicídio uma fragilidade individual, oriunda de bases genéticas ou hereditárias. Essa análise considera o histórico prévio de patologias dessa natureza, nas quais o trabalho é compreendido como revelador das falhas. A terceira, denominada de sociogenética pelos autores, analisa os aspectos sociais vinculados ao trabalho como fatores de descompensação psicológica.

Como indicadores da presença dos elementos antes descritos, os trabalhadores sentem-se isolados, sem reconhecimento de suas potencialidades, sem criatividade, sem autonomia nem liberdade. O neoliberalismo e a globalização ditam as características do trabalho, impondo
metas variáveis, intensidades, ausência de orientações claras para uma nova organização do trabalho para o uso de novas tecnologias, configurando uma precariedade subjetiva.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) (2013) estima que 2,34 milhões de pessoas morrem a cada ano em acidentes de trabalho e por doenças a ele relacionadas, indicando que cerca de 2 milhões dessas mortes seriam causadas por doenças ligadas ao trabalho. Em 2013, o número de mortos em decorrência de doenças ou acidentes de trabalho chegou a 240 por hora em todo o mundo. De acordo com o mesmo levantamento, o Brasil ocupa o quarto lugar em relação ao número de mortes, com 2.503 óbitos, e perde apenas para China (14.924), Estados Unidos (5.764) e Rússia (3.090), tendo contribuído significativamente para a estatística mundial com os seus mais de 700 mil acidentes e adoecimentos por ano em consequência do trabalho.

Já a Organização Mundial de Saúde (2014) aponta que o Brasil é o oitavo país do mundo com mais suicídios. O índice de mulheres que morreram por suicídio em 2015 foi de 2,7/100 mil, enquanto os homens atingiram taxas quase quatro vezes superiores, 9,6 por 100 mil habitantes. Para a Organização Mundial de Saúde (2014), a extensão desse fenômeno é inaceitável. Tais dados têm íntima relação com o trabalho.

Todos esses fatores são responsáveis pelo desencadeamento de diferentes e novas patologias que estão na base do estado de mal-estar, responsável pelo aumento de suicídios no e do trabalho, mostrando a nova estética da violência em um mundo laboral globalizado.

3 METODOLOGIA DO ESTUDO

Este artigo foi elaborado com base na abordagem da Psicodinâmica do Trabalho (PDT), metodologia embasada em Dejours (1992, 1994, 2012, 2017), com contribuições de outros pesquisadores. Trata-se de uma abordagem qualitativa. Para a sua execução, buscou-se, inicialmente, a Coordenação do SDM e, posteriormente, as Pró-Reitorias às quais o programa se vincula, que encaminharam o projeto2 ao Comitê de Ética da PUC-GO e da UFG, que o aprovaram sob o Parecer nº 962.775/2015.

A escolha dos participantes deu-se a partir do estudo Análise documental do atendimento aos técnicos administrativos usuários do serviço de saúde mental, Saudavelmente, no período de 2003-2013 (UFG, 2014), realizado por meio da análise de 282 fichas de atendimentos, como se observa na Tabela 1, mais adiante. 

Como todo estudo com delineamento qualitativo, o critério para a escolha dos participantes foi o da intencionalidade, do voluntariado, como proposta da Clínica Psicodinâmica do Trabalho. Cabe ressaltar que o critério adotado para a conclusão das reuniões coletivas foi o da saturação. Ademais, foi utilizada a triangulação de juízes na coleta e na análise clínica dos dados. Estes, por sua vez, foram apresentados aos participantes e por eles validados. 

O grupo de participantes fixos compreendeu seis pessoas, sendo cinco mulheres e um homem, lotados em diferentes unidades na Instituição, com idades e níveis de escolaridade diversos: ensino médio; pós-graduação (mestrado); graduação em Letras, Direito, Jornalismo, Administração, Psicologia; um dos participantes tem duas graduações. Com exceção de um
deles, que tem quatro anos de serviço, os outros estão inseridos entre 10 e 25 de trabalho. Os participantes foram esclarecidos sobre o teor da Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012 (CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE, 2012). Eles assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), após leitura conjunta, e foram informados de que, a qualquer momento em que não se sentissem à vontade, poderiam retirar-se da pesquisa, e, caso apresentassem qualquer problema decorrente do estudo, teriam acompanhamento psicológico e médico, sem qualquer custo. Os dados foram/são utilizados somente para estudo/publicação e os participantes foram identificados com a letra P ao terem suas falas citadas. Todas as sessões foram gravadas. 

No início de cada sessão, foram lidos os temas para discussão e os termos técnicos foram esclarecidos; após, foi solicitado aos participantes que validassem o material apresentado. Após a leitura do relatório, ouviram-se os comentários dos participantes desencadeados pela interpretação dos pesquisadores durante a sua leitura, fazendo surgir novos temas, relatos e
comentários. O roteiro das sessões seguiu a apresentação dos dados do estudo para validação e discussão do material da pesquisa. O papel dos clínicos consistiu em traduzir o que é ocultado pelo coletivo em relação aos modos de engajamento do e no trabalho. A sua função esteve relacionada a uma escuta qualificada, mobilizando os integrantes e apontando discursos justapostos.

4 RESULTADOS E DISCUSSÃO 

Inicialmente, apresentam-se alguns dados do levantamento documental, os quais estabeleceram a demanda segundo a abordagem da PDT. Durante os anos de 2012 e 2013 não houve acolhimentos de novos usuários TAEs, tendo sido a demanda maior do que a oferta do trabalho. Houve um aumento na demanda de discentes entre 2009 e 2013, o que provocou um acúmulo de trabalho, incrementado por questões organizacionais da instituição, visto que
alguns profissionais do programa se aposentaram, outros se afastaram para capacitação em pós-graduação: mestrado e doutorado. Os TAEs passaram a buscar atendimento fora da instituição através dos planos de saúde que adquiriram.

Assim, em relação ao sexo dos usuários, os dados indicam que 75,2% são do sexo feminino e o restante do masculino. Indaga-se o porquê de haver mais pacientes do sexo feminino do que masculino. Dejours (2012) pressupõe a questão da virilidade, cultural, pois o homem reclama menos e, igualmente, fala menos de seus conflitos, enquanto a mulher expõe com mais frequência os seus processos conflituais. 

Dejours (2017) ressalta que algumas profissões e locais de trabalho provocam mais adoecimento, como os relacionados a educação, saúde, segurança, telefonia, serviços bancários, entre outros. Na pesquisa, são apontados os locais pertencentes à Ifes pesquisada (Hospital das Clínicas e Faculdades, Institutos, Escolas), bem como seus profissionais (Técnicos, Assistentes, Auxiliares), os quais confirmam os pressupostos dejourianos, conforme Tabela 1

Tabela 1 – Cargo e nível de escolaridade da Ifes pesquisada

A Tabela 2, a seguir, mostra o resultado documental do SDM, apresentando as hipóteses diagnosticadas que apontam para os indícios suicidas

Tabela 2 – Hipóteses diagnosticadas na Ifes pesquisada

Tais hipóteses foram elaboradas pela equipe de psicólogos e psiquiatras do programa SDM de acordo com CID 10 e DSMIV. Os maiores índices – transtorno de humor, transtornos de ansiedade, depressão – levaram alguns servidores a ideações suicidas e a tentativas de suicídio, na frequência demonstrada na Tabela 3.

Tabela 3 – Número de ideações suicidas e tentativas de suicídio na Ifes pesquisada

Venco e Barreto (2010) afirmam que é consenso entre pesquisadores brasileiros relacionar a gênese do suicídio aos processos psíquicos, apontando-se ainda como nexo causal as condições de trabalho, as reestruturações e as situações de desemprego. No presente estudo, evidenciaram-se as tentativas de suicídio motivadas pela organização do trabalho.

Tinha um chefe que, Deus me perdoa… ninguém nunca olhou pra mim… só sabia reclamar, eu tava assim, desistindo… não tinha motivação…cansei de ser burro de carga… foi por causa da chefia mesmo em si que tava lá. Porque eu me sentia assim… sem saída, depressiva, sozinha, angustiada. Então, quando eu tomei aquela medicação e tomei bebida alcoólica. Ah, eu não morri porque Deus não quis. Porque eu fiz aquilo mesmo, porque eu não tava querendo mais viver. Eu achava que a vida pra mim ali não tinha mais sentido, tudo ali já tava desperdiçado… assim fui pensando num jeito de morrer. Pensei e fiz e não tenho vergonha de dizer isto. (P2).

A subjetividade do servidor integrou-se ao suicídio, pois a tentativa por ele experimentada estava vinculada ao estresse, às perturbações biológicas e psíquicas do ambiente laboral, às fragilidades genéticas, ao histórico das patologias e à sociogenética (DEJOURS; BÈGUE, 2010). 

A premissa da centralidade das relações de trabalho como fundamental para a constituição de saúde psíquica do trabalhador se apresenta como um pressuposto nessa abordagem. Conforme afirma Dejours (1992, p. 164), “[…] o trabalho não é neutro em relação à saúde mental do trabalhador […]”, podendo essa relação ser um fator de constituição de identidade, de inclusão ou exclusão social, fonte de vivências de prazer ou sofrimento (DEJOURS, 1994,
2012, 2017).

Nesse contexto, alguns indicadores ligados à área de gestão de pessoas devem ser analisados, conforme Lancman et al. (2009), entre eles a alta rotatividade, o índice de licenças por acidentes laborais, por doenças ocupacionais, assim como o afastamento de trabalhadores. Os dados obtidos com o resultado do estudo indicam vários temas recorrentes e expressivos, corroborando com os pressupostos dejourianos. Percebeu-se que o servidor tem, no trabalho, seu maior fator de produção de sentido para a sua integração social, ocupando ele uma posição central na sua vida, pois, durante as sessões, foram encontrados fatores que indicaram adoecimento resultante da organização do trabalho. Devido ao processo burocrático da instituição, os participantes relataram sentir que a falta de possibilidade em usar sua criatividade para resoluções laborais, suas frustrações e a consequente irritabilidade afetaram sua subjetividade. Esta é compreendida por Abbagnano (1998) como o caráter de todos os fenômenos psíquicos, enquanto fenômenos de consciência,
que o sujeito consegue chamar de ‘seus’, além dos fenômenos psíquicos inconscientes, no sentido freudiano.

Também foram observadas condições de trabalho precárias, conforme relatos de outros servidores: “Eu trabalho num cubículo… é o almoxarifado… adoeci, né? Psicologicamente eu não dou conta de ficar nesse lugar. Eu trabalho com arquivo morto, sozinha. Só eu naquele lugar” (P6). 

Tratam-se de espaços físicos precários, instalações inadequadas, alguns locais muito quentes, outros muito frios. Além disso, surge um processo de solidão no qual o trabalhador pode adoecer. Os relatos reforçam que as condições de trabalho são ruins, havendo dificuldade na realização das atividades. Ainda, foram detectados vários participantes com desvio de função, relações hierárquicas conflitantes, gestão com comandos e controles diferenciados apesar de pertencerem à mesma instituição: Eu tenho mestrado, fui concursada para um cargo técnico de nível superior e, aí, eu faço compra, acompanho serviço de manutenção, tenho que levar material de limpeza, faço pedido, conferência do patrimônio dos bens da unidade; sinto que meu
rendimento está ruim. (P4). 

A gestão de organizações públicas considera, em sua cultura e na distribuição de pessoas nos cargos, aspectos relacionados ao cargo para o qual o servidor foi concursado. De outra parte, o perfil do servidor pode, muitas das vezes, ir além das atividades prescritas pelo cargo, situação que pode significar um fator desmotivador. 

Outro aspecto importante a ser considerado é que, a partir da cultura de organizações públicas, considerando a estabilidade, uma vez concluído o estágio probatório, alguns servidores adotam uma postura de fazer o mínimo. Isso leva à sobrecarga de outros colegas, tornando-se um fator de adoecimento para estes. 

No caso de alguns participantes, houve, ainda, inadequação entre suas habilidades e as atividades do setor, o que tem gerado insatisfação e sofrimento. Foi indagado se, quando assumiram o cargo do concurso, imaginavam que seriam lotados em funções diferentes, ao que responderam que se tratou de ajustamento interno por falta de servidores. Esse fator
tende a corresponder à questão neoliberal nas instituições públicas; logo, o servidor precisa ter desempenho excelente em várias funções.

Os relatos indicam, ainda, que há um descontentamento em relação à carga horária, apesar de os servidores estarem cientes das normas quando prestam o concurso e assumem o cargo. O desvio de função também causa problemas para a instituição na medida em que, enquanto alguns servidores contribuem muito pouco com as atividades, outros se veem sobrecarregados. Cabe apontar que a gestão, baseada na lógica neoliberal, beneficia-se indiretamente do sofrimento do trabalhador. A falta de abertura de novos concursos, que depende de política pública, cria uma situação paradoxal, conforme dados apresentados na Tabela 4.

Tabela 4 – Evolução histórica de servidores técnicos, docentes e discentes na Ifes pesquisada

A tabela mostra a defasagem entre o número de servidores e o aumento das tarefas. Há um crescimento desproporcional entre a demanda de discentes, docentes e técnicos. Isso acarreta uma sobrecarga que impossibilita o cumprimento das tarefas nos moldes prescritos. Apesar de se tratar da mesma instituição, há gestores que autorizam carga horária de seis horas, turno
ininterrupto, enquanto outros não. Esse pressuposto mostrou que os servidores sentem muito descontentamento, desmotivação, e que há recorrentes pedidos de remoção de local de trabalho. As formas de acompanhamento, controle e avaliação de resultados também divergem, dependendo do campus, gestor etc.

Ainda quanto à gestão, percebeu-se também, por meio dos relatos dos servidores, que a Ifes em análise apresenta diferenças bastante evidentes, parecendo haver várias instituições dentro de uma mesma. Consequentemente, a organização, as condições, as relações de trabalho têm momentos de conflito que causam adoecimento. 

Neste artigo, evidencia-se, a partir da pesquisa realizada junto ao grupo estudado, que o trabalho real é discrepante do trabalho prescrito. As atribuições cotidianas afetas ao servidor não são cumpridas por falta de adequação do espaço físico, por sobrecarga de trabalho, por falta de comunicação entre pares, gestores, segundo os relatos expressos. 

A compreensão de sentido do trabalho, postulada por Dejours (2012, 2017), refletiu-se no presente estudo, que descreve, a seguir, como os pesquisados mobilizaram corpo e subjetividade para a execução do trabalho real. A mobilização subjetiva deve ser considerada contribuição específica, insubstituível dos trabalhadores na concepção, nos ajustes, na gestão
da organização do trabalho. A mobilização promove a construção das regras práticas das decisões, a qual influencia a identidade e a personalidade do trabalhador. 

Os resultados encontrados indicam que as relações de trabalho no contexto descrito estão permeadas de vários fatores desestabilizadores da saúde do servidor. A sobrecarga de trabalho e a falta de reconhecimento foram queixas recorrentes, as quais serviram como fatores patogênicos ou desencadeadores de adoecimento. Assim, o estresse, as perturbações biológicas e psíquicas advindas do ambiente laboral, somados à falta de reconhecimento, confiança e cooperação nas relações socioprofissionais, contribuíram para o surgimento de
ideações suicidas e para as tentativas de suicídio dos servidores (DEJOURS; BÈGUE, 2010). 

A partir do discurso dos participantes, fica evidente que as tentativas ou ideações suicidas decorrem das vivências de sofrimento advindas das relações de trabalho. Segundo relatos, eles se sentiram desamparados e impotentes, não receberam suporte adequado da gestão e dos colegas e dizem que houve descaso, banalização, omissão dos gestores, dos pares.

Com efeito, as vivências de sofrimento surgiram, causando impacto nos participantes por um longo período. Há, entre eles, fichas médicas que registram hipóteses diagnósticas de transtorno bipolar repetitivo, depressão, ansiedade, lesão por esforço repetitivo (LER), fibromialgia. Também fazem uso de medicamentos, apesar do acompanhamento psicoterapêutico e/ou com médico-psiquiatra. 

No entanto, as situações de sofrimento podem ser transformadas no espaço laboral, convertendo-se em vivências de prazer que se estabelecem quando há confiança, cooperação, reconhecimento. A análise dos dados destaca, ainda, o espaço da fala, da escuta na clínica do trabalho – enquadre teórico-metodológico que constituirá o ambiente em que o trabalhador
exporá suas angústias e as elaborará de modo individual e coletivo –, como recurso que potencializa a mobilização subjetiva, a organização do trabalho e fortalece o trabalhador no enfrentamento das situações relacionadas ao sofrimento no trabalho. 

Dejours (2004) considera, desse modo, que a PDT, ao focar o sujeito, não propõe uma individualização ou um isolamento do trabalhador em uma relação entre seus desejos, conflitos com a produção. Ao contrário, não apenas em seus fundamentos teóricos, mas, sobretudo, em suas propostas de ação, a importância do outro, do coletivo entre pares, gestores, é fundamental para a manutenção da saúde mental, vale dizer, para o não adoecimento.

Além das vivências de sofrimento, foram encontradas, nos relatos, vivências de prazer. Alguns dos sujeitos conseguiram transformar o sofrimento, a dificuldade de realizar o trabalho, ao utilizar a experiência laboral na execução da tarefa no trabalho. Houve cooperação, confiança entre pares em alguns setores ou áreas específicas de trabalho. Encontrou-se a solução de dificuldade. Utilizou-se a inteligência criativa. Trata-se das vivências dos sujeitos, da sua relação com o mundo através de seu corpo, da sua psique. Há sofrimento quando não se tem
liberdade de modificar algo prescrito, quando o trabalhador esgotou tudo de que dispunha – de saber, de poder – para a execução da tarefa (DEJOURS, 2017).

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

O presente estudo apresentou a organização do trabalho de uma Ifes, em que foram observadas condições que desencadearam adoecimento físico e psíquico nos participantes da pesquisa. As vivências de sofrimento aparecem massacrando a subjetividade dos pesquisados por repetição em circunstâncias semelhantes, com diferentes pessoas por um longo período. As vivências de sofrimento originadas pela organização do trabalho indicam o adoecimento, com a hipótese diagnóstica de transtorno bipolar repetitivo, depressão, ansiedade, LER, fibromialgia. Os participantes fazem uso de medicamentos, apesar do acompanhamento psicoterapêutico e/ou com médico-psiquiatra.

O objetivo deste estudo foi contribuir para as reflexões sobre os processos de saúde mental que impactam os servidores do ensino superior federal na abordagem Psicodinâmica do Trabalho. Pode-se inferir, de modo geral, que a Ifes pesquisada precisa repensar a organização do trabalho, o exercício do poder, a forma de lidar com os sofrimentos, suas consequências
para o trabalhador, para a coletividade. Nesse contexto, diante de complexidades como as apresentadas e de tantas outras, constatou-se a urgência de viabilizar espaços de escuta.

Considerando-se que o sofrimento tem sua origem no conflito entre o desejo do trabalhador e a organização do trabalho, a abordagem PDT mostra-se de grande valor na investigação dos modos como os sujeitos buscam garantir sua saúde em determinado contexto laboral. 

Não foi identificada pesquisa científica com dados sobre as taxas de suicídio nas Ifes, mas foi possível perceber a banalização do adoecimento do trabalhador no modelo socioeconômico atual (ANTUNES, 2014). Sob esse prisma, uma das contribuições do estudo foi avançar/motivar a realização de pesquisas – o que desde já se sugere – sobre o sofrimento mental no trabalho, além de incentivar a discussão do tema tabu suicídio, contribuindo para a sua prevenção dentro e fora das organizações do trabalho, bem como a abordagem da questão de gênero no contexto laboral.

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Publicado na Revista  de Epidemiologia e Controle de Infecção. , v.10, Disponível em: http://10.18315/argumentum.v10i3.16911


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