Profa. Dra. Kátia Barbosa Macêdo, Anna Flávia Ferreira Borges, Carla Maria Santos Carneiro
Resumo
Este artigo pretende discutir teoricamente os prejuízos causados à saúde do trabalhador atribuídos ao trabalho em turnos. O estudo está estruturado em duas partes: a primeira apresenta um breve histórico, conceitos e modalidades do trabalho em turnos, além de trazer a revisão de literatura realizada no portal de periódico CAPES/MEC, no período de janeiro e fevereiro de 2017, sobre o tema em estudo; a segunda parte aborda os principais prejuízos que essa modalidade de trabalho causa na saúde do trabalhador, apresenta alguns efeitos das Leis nº 13.429/2017 e nº 13.467/2017 para os trabalhadores em turnos e, por fim, aponta algumas medidas de prevenção/mitigação, propondo sugestões nos âmbitos coletivo, individual e familiar, no intuito de contribuir para a minimização desses efeitos negativos na saúde do trabalhador. Conclui-se que investir na prevenção é a melhor forma de evitar ou intervir para minimizar esses impactos.
INTRODUÇÃO
Desde a Primeira Revolução Industrial (iniciada na Inglaterra na metade do século XVIII), as mudanças ocorridas pela inserção do modelo capitalista de produção exigiram, tanto das organizações quanto dos trabalhadores, alguns ajustes significativos na realização de suas atividades, como, por exemplo, nas formas e modalidades como o trabalho passou a ser organizado, as quais merecem atenção, em especial após o período de globalização e o advento da tecnologia. Como um desses ajustes, podem-se citar o trabalho em regime de turnos e o trabalho noturno Ressalta-se que o presente artigo utiliza o conceito de trabalho proposto por Dejours (2011), o qual compreende o trabalho como:
A atividade coordenada de homens e mulheres para defrontar-se com o que não poderia ser realizado pela simples execução prescrita de uma tarefa de caráter utilitário com as recomendações estabelecidas pela organização do trabalho (Dejours, 2011, p. 161).
Para que a população tenha à sua disposição todos os serviços e produtos em diferentes períodos, há um contingente de pessoas que exercem suas atividades fora dos horários considerados usuais. Esse tipo de organização do trabalho – que originalmente era restrito aos serviços essenciais, relacionados à saúde e à segurança – introduziu-se de forma mais efetiva nas sociedades devido às características dos processos contínuos de produção, como afirma Fischer (2004, p. 4):
[…] a produção e distribuição de energia elétrica, o trabalho de tratamento de água e esgoto, a manutenção de redes elétricas, a produção e distribuição de petróleo, todas as indústrias petroquímicas e derivadas destas, a grande maioria das indústrias químicas, as indústrias de vidros, cimento, siderúrgicas, de fertilizantes e muitos outros tipos de empresas, inclusive as de alta tecnologia, trabalham muito além das horas diurnas e dos chamados dias úteis – usualmente durante 24 horas por dia, todos ou quase todos os dias do ano.
Fischer (2004) toma como base o estudo de Scherrer (1981), que relata alguns fatos ocorridos desde o Império Romano até a época atual. Nesses relatos explica que havia, durante o dia, nas ruas estreitas das cidades romanas, um grande congestionamento de mercadorias, camponeses, artesãos e outros profissionais, capaz de inviabilizar ou dificultar a circulação de veículos.
Devido a esse cenário, os imperadores Claudius e Marcus Aurelius, tanto na Itália como em todas as demais cidades do Império, proibiram a circulação de carroças, cavalos e mercadorias durante o período diurno. Tais proibições levaram os trabalhadores a desenvolverem o seu trabalho no horário noturno, perturbando o próprio sono, bem como o das pessoas que residiam em ruas de grande movimento (Fischer, 2004).
Nessa época, uma das limitações para o trabalho noturno era a precária iluminação por lâmpada a óleo, abandonada em 1800, quando surgiu a iluminação a gás, vindo, posteriormente, na metade do século XIX, a de querosene. Ao final do citado século, mais precisamente em 1879, Thomas Edison inventou a lâmpada elétrica, tornando possível estender a jornada de trabalho para os horários noturnos.
Algumas estatísticas mais antigas sobre o levantamento efetuado pelo Instituto
Nacional de Pesquisa e Segurança (INRS), na França, em 1975, revelou que, na indústria metalúrgica francesa, os trabalhadores em turnos representavam o percentual de 71%, enquanto na indústria química eles eram 34,6% do total. Uma pesquisa realizada em maio de 1997, nos Estados Unidos, com 48.000 famílias, mostrou que desde aquela época somente 29,1% dos trabalhadores americanos empregados trabalham em horário padronizado, ou seja, em turnos fixos diurnos de 35 a 40 horas semanais, nos cinco dias úteis (Fischer, 2004).
Outro levantamento, datado de 1994 e realizado pela Comunidade Europeia, mostrou que cerca de 20% dos setores de manufatura e serviços adotam algum sistema de turnos ou trabalho não diurnos. Em 1994, um levantamento feito no Brasil pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE), a pedido da Fundação Jorge Duprat e Figueiredo (FUNDACENTRO), apurou que, entre os trabalhadores residentes na área metropolitana de São Paulo (correspondente a 38 cidades, na época com 16 milhões de habitantes), 8,6% eram fixos noturnos, 3,0% de turnos alternantes e 2,3% trabalhavam em horários irregulares (Fischer, 2004; Fischer, Moreno & Rotenberg, 2004).
Para se considerar as estimativas quanto ao número de trabalhadores em turnos, depende-se da definição dada ao “trabalho em turnos”, observando-se, ainda, que caso correspondam apenas às jornadas não diurnas, os trabalhadores do período vespertino serão excluídos das estatísticas. É possível que o número de trabalhadores em turnos no Brasil (aí inclusos todos os que trabalham em horários não diurnos de forma regular ou irregular) alcance aproximadamente 15% da força de trabalho (Fischer, 2004).
Consoante dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (IBGE, 2014-2015), existem, no Brasil, 44.820 mil trabalhadores que laboram entre 40 e 44 horas semanais. No entanto, há 11.486 deles que trabalham entre 45 e 48 horas e outros 9.787 que despendem 49 horas ou mais por semana com suas atividades profissionais. Esses dados permitem inferir que muitos trabalhadores exercem sua jornada de trabalho muito além do horário comercial, compreendido entre 8h e 18h, estendendo a sua atividade para horários noturnos.
Não há como negar a existência de uma “sociedade 24 horas”, a qual depende de vasto número de trabalhadores que está, por sua vez, exposto a riscos psicossociais do trabalho com potencial de causar danos físicos, biológicos, sociais e mentais, danos estes que serão melhor abordados ao longo deste artigo (Fischer, Moreno & Rotenberg, 2004).
Segundo Crary (2016), o termo 24/7 advém de uma modernidade cada vez mais
acelerada e hiperconectada, onde as redes de produção, financeirização e comunicação são ininterruptas e dependem cada vez mais de máquinas e suportes eletrônicos.
O objeto do presente artigo consiste em discutir teoricamente os prejuízos causados à saúde do trabalhador atribuídos ao trabalho em turnos e realizar alguns apontamentos sobre os efeitos da Lei da Reforma Trabalhista nº 13.467/2017 e da lei Lei da Tercerização nº 13.429/2017.
Inicialmente faz-se necessário pensar sobre os conceitos, os tipos e as modalidades existentes sobre o trabalho em turnos. Para melhor discorrer sobre essas definições foi construído o tópico a seguir.
CONCEITOS, TIPOS E MODALIDADES DE TRABALHO EM TURNOS
O conceito de trabalho em turnos adotado no presente estudo é o proposto por Narciso e Pinto (2013, p. 2), “[…] o trabalho em turnos e o trabalho noturno são caracterizados como um trabalho realizado em horário não usual que inclui turnos alternantes ou fixos, com escalas bem variadas”. Assim, a continuidade da produção ou da prestação de serviços é alcançada pela participação de várias turmas que se sucedem nos locais de trabalho. Estas turmas podem modificar o seu horário de trabalho ou trabalhar em horários fixos. A atividade de produção ou prestação de serviços pode ser realizada ininterruptamente, ou ser interrompida por algumas horas durante a noite, no fim de semana ou em dia predeterminado (Fischer, 2004; Narciso & Pinto, 2013).
Algumas terminologias básicas que definem os esquemas de trabalho em turnos são apresentadas no Quadro 1:
De acordo com o demonstrado no Quadro 1, há várias formas de organização do trabalho em turnos em uma instituição, dependendo do tipo da atividade realizada e da prestação do serviço oferecido. Em outros termos, os trabalhadores organizam-se em turnos para atender à demanda da organização.
Assim como o trabalho fixo ou em turnos alternados, o rodízio também é identificado em alguns estudos como fator de maximização de efeitos negativos na saúde por dificultar qualquer tentativa de adaptação do ritmo biológico ao ritmo de trabalho (Moreno & Louzada, 2004). Esses efeitos negativos serão mais bem aprofundados em tópico abordado mais adiante.
No intuito de mapear os estudos referentes ao trabalho em turnos, foi realizado um levantamento bibliográfico no portal de periódicos da Capes/MEC, que serviu de base para a construção do próximo item.
ALGUNS ESTUDOS SOBRE O TRABALHO EM TURNOS E NOTURNO
Efetuou-se um levantamento durante os meses de janeiro e fevereiro de 2017, no portal de periódicos da Capes/MEC, utilizando-se os descritores “trabalhadores em turnos e noturnos”, com o propósito de identificar estudos sobre o referido tema. Foram delimitados, como critério de inclusão, artigos publicados entre os anos de 2001 a 2016. Como critério de exclusão, foram afastados os artigos não disponíveis para consulta, os repetidos e aqueles que não abordavam o tema “trabalho em turnos e noturnos”.
Durante o levantamento, foram encontrados 21 artigos, dos quais 13 foram analisados por este estudo. Sendo que oito foram descartados, visto que três se repetiram, um não estava disponível para consulta e quatro não abordavam o tema pesquisado.
De acordo com o Quadro 2, observou-se que entre os pesquisadores e autores dos artigos, Fischer se destacou nesse levantamento, produzindo três artigos; Martino produziu dois estudos e os demais pesquisadores produziram um artigo cada. Os dados indicam que dos treze artigos analisados, três foram publicações de um único autor e dez artigos foram publicações em parceria com outros pesquisadores.
Em relação aos anos de publicação dos artigos, levantou-se que o ano de 2004 teve o maior número de publicações, com três artigos, seguido dos anos de 2002, 2012 e 2015, com a publicação de dois artigos, enquanto os anos 2001, 2008, 2010 e 2016 contaram apenas com um artigo publicado no portal de periódico Capes/MEC.
Ainda com fundamento no Quadro 2, é possível afirmar que muitos pesquisadores têm demonstrado preocupação com os impactos do sono dos trabalhadores em turnos e noturnos; alguns estudos investigaram os hábitos alimentares desses trabalhadores, outros analisaram questões pertinentes à sua saúde (síndromes metabólicas, diabetes e riscos cardiovasculares), e algumas pesquisas investigaram a percepção de fadiga e qualidade de vida, satisfação pessoal e felicidade desses trabalhadores. Em relação às revistas que mais se interessam pela temática trabalho em turnos, observa-se que são
revistas de saúde pública e saúde coletiva.
A Figura 1 ilustra a nuvem de palavras obtida por intermédio da frequência dos termos utilizados nos títulos dos artigos analisados no citado levantamento bibliográfico. A nuvem foi obtida a partir do software online tagul.
Conforme demonstrado na figura 1, as palavras que mais se destacaram nos títulos pesquisados, foram: fadiga, sono, trabalho em turnos, trabalho, trabalhadores, turnos, trabalho noturno, saúde, vigília, segurança, comportamento alimentar, síndrome metabólica e qualidade.
Para análise das palavras dos títulos dos artigos, e visando a melhor compreensão de seus resultados, elaborou-se a Tabela 1.
Observa-se que a palavra “turnos” foi a que mais se repetiu nos títulos analisados. Em seguida, com o mesmo número de repetições, apareceram as palavras “sono” e “trabalhadores”. Os termos “trabalhadores em turnos”, “qualidade de vida”, “trabalho noturno”, “síndrome metabólica”, “trabalho”, “fadiga”, “qualidade”, “vigília”, “segurança”, “saúde”, “comportamento alimentar” e “aspectos metabólicos” também estiveram presentes nos títulos analisados.
Os artigos analisados se ocuparam em investigar os prejuízos causados pelo trabalho em turnos na saúde física dos trabalhadores. Cabe ressaltar que não foi encontrado, no material levantado, qualquer estudo com trabalhadores em turnos que tivesse como objetivo investigar os impactos que essa modalidade de trabalho causa na saúde mental dos trabalhadores. Quanto ao aspecto social, apenas os estudos de nº 5 e 10 investigaram as implicações do trabalho em turnos na qualidade de vida dos trabalhadores. Todos os artigos analisados optaram pela abordagem quantitativa, sem utilizar metodologia com abordagem qualitativa.
De modo geral, os autores optaram pela aplicação de questionários, acompanhamento da saúde dos participantes investigados mediante utilização de prontuários e/ou diários de bordos, visando obter os dados para elaboração metodológica de seus estudos. Uma vez apontadas as abordagens dos estudos levantados, passa-se à análise pelo presente artigo, da compreensão dos prejuízos e impactos de ordem física, social e mental que a modalidade de trabalho em turnos pode causar na saúde dos trabalhadores.
OS PREJUÍZOS DO TRABALHO EM TURNOS NA SAÚDE DO TRABALHADOR
A saúde do trabalhador depende da sua qualidade de vida no trabalho e fora dele, bem como das condições ambientais e organizacionais em que se desenvolvem as tarefas, fundamentais para a manutenção da sua saúde física e mental:
As condições de trabalho e a organização do trabalho influenciam de forma significativa a tolerância ao trabalho em turnos e noturno. Particularmente, trabalhar em horários não diurnos pode levar os trabalhadores a ter pior desempenho em suas tarefas, a expô-los a maiores riscos de acidentes de trabalho e, de forma mais acentuada, a estressores ambientais, que podem levá-los à incapacidade funcional precoce. (Fischer, Moreno & Rotenberg, 2004, p. 35).
Nas empresas e instituições onde há trabalho em turnos contínuos, ou seja, durante 24 horas ininterruptas, sete dias por semana, ao longo de todo o ano, decorrente da necessidade de manutenção de processos produtivos ou da prestação de serviços, há usualmente múltiplos fatores de risco presentes no âmbito laborativo (Fischer, Moreno & Rotenberg, 2003).
Com efeito, os danos à saúde do trabalhador em turnos podem ser de diversas ordens, desde os ligados aos aspectos físico e mental, bem como aqueles associados à sua vida pessoal, familiar e social, até os relativos à adaptação aos ritmos biológicos do organismo.
No que tange aos impactos causados à saúde física, por meio do levantamento
bibliográfico realizado pode-se apontar: privações do sono, insônia ou sonolência, irritabilidade, fadiga crônica e flutuações oscilatórias de vigília e desempenho, tendência para maior índice de HOMA-IR (marcador de resistência à insulina), altos níveis de cortisol, tendência a maior índice de massa corpórea (IMC), problemas gastrointestinais, dessincronização dos ritmos circadianos e síndrome do shift-lag.
Quanto aos impactos relacionados à saúde mental, os sintomas que mais se
destacaram foram: transtornos afetivos e psicossomáticos, estados depressivos sazonais, transtornos do humor e da cognição e desgaste emocional (Fischer, 2004; Narciso & Pinto, 2013).
A respeito dos impactos ligados às relações sociofamiliares, é possível destacar como principais prejuízos: convivências social, familiar e de lazer prejudicadas, restrita participação nas atividades sociais e familiares, dificuldades conjugais, relações íntimas prejudicadas.
De acordo com o presente artigo, foi possível observar que o trabalho noturno – altera os padrões de sono, gerando irritabilidade, fadiga e dessincronização dos ritmos circadianos e, nos finais de semana, prejudicando a convivência social e familiar – é o que mais interfere e impacta a saúde global (física, mental, emocional e social) dos trabalhadores em turnos. (Fischer, 2004; Narciso & Pinto, 2013).
Assim, infere-se que os trabalhos em turnos e noturno interferem em todas as
dimensões na medida em que perturba a homeostase fisiológica (ritmos circadianos, hábitos de sono e alimentares), diminuem a eficiência do desempenho, prejudicam as relações familiares e sociais e deterioram as condições de saúde, causando, particularmente, transtornos do sono, gastrointestinais, neuropsíquicos e cardiovasculares (Costa, 1996; 2004; Harrington, 1978; Waterhouse & Minors, 2008).
Segundo afirma Costa (2004), homens e mulheres são seres biologicamente habilitados para entrar em vigília durante o dia, já que normalmente estão ativos à luz do dia e dormem à noite. Essa resposta natural é determinada pela oscilação regular das funções corporais (ritmos circadianos) que, em geral, mostram níveis mais elevados durante o dia e mais baixos durante a noite. Essa ritmicidade é controlada por um forte oscilador endógeno (relógio biológico), influenciado por fatores ambientais (zeitgebers ou sincronizadores), tais como o ciclo de sono/vigília, atividade produtiva, horários de refeições, tempo e intensidade de exposição à luz.
Desse modo, os que trabalham no turno noturno são forçados a inverter o padrão normal de vigília-sono de acordo com o período de atividade, enquanto tentam manter orientadas suas atividades sociais e familiares diárias durante o tempo livre e as folgas. Com isso, uma queixa bastante comum quanto ao trabalho em turnos noturnos é a relacionada às privações do sono (sonolência e insônia). Para o trabalhador noturno, em particular, o sono diurno subsequente é perturbado tanto por motivos fisiológicos, considerando que é difícil adormecer em horários aos quais o organismo naturalmente não se adapta, quanto pelas condições ambientais desfavoráveis, tais como compromissos domésticos, horários das refeições e cuidados com os filhos, ruídos etc. (Costa, 2004).
Isso porque o trabalhador noturno precisa repousar durante o dia, quando sua família está acordada e o ambiente da casa e o da cidade estão em plena atividade, o que se torna especialmente mais complexo quando há crianças no ambiente familiar (Costa, 2004). Para os trabalhadores dos turnos exclusivamente matutinos, em que os turnos de trabalho são iniciados logo ao amanhecer do dia, o sono geralmente é reduzido, sendo despertado muito cedo, ocasionando uma redução significante no sono REM (Rapid Eye Moviment) (Régis Filho, 2002).
Para melhor compreender o ciclo do sono, basicamente três critérios devem ser
avaliados: a atividade elétrica do córtex cerebral, como a medida pelo eletroencefalograma (EEG); o grau de facilidade com que o indivíduo pode ser acordado e o tônus muscular. Em um indivíduo relaxado e com olhos fechados, a atividade no EEG é de ondas grandes e lentas (ondas alfas), sendo que nas pessoas alertas e com olhos abertos a atividade no EEG é mais dessincronizada, ou seja, apresenta ondas de amplitude menor (ondas betas) (Régis Filho, 2002).
As fases do sono são estruturadas em cinco estágios. No primeiro, o sono é
considerado leve, a atividade cerebral é também mais leve e acontecem algumas contrações musculares. No segundo estágio, a respiração e a batida do coração diminuem e ocorre uma leve diminuição da temperatura do corpo. No terceiro estágio, inicia-se o sono profundo e o cérebro começa a gerar as ondas delta. Já no quarto estágio, o sono é bastante profundo, a respiração fica mais rítmica e a atividade muscular limitada; é nesse estágio que o cérebro produz ondas delta. No quinto e último estágio, acontece o rápido movimento dos olhos, as ondas cerebrais aceleram e o sono acontece. A frequência cardíaca e respiratória e a pressão arterial são aumentadas e acontece o baixo tônus muscular (sono REM) (Régis Filho, 2002).
Quanto ao sono, pesquisas ressaltam que as necessidades são distintas de um
indivíduo para o outro e, portanto, dormir 7 horas a cada 24 horas pode ser suficiente para uma pessoa e não para outra. Isso ocorre porque o padrão de duração do sono da espécie humana apresenta frações de sono e vigília distintas entre os indivíduos (Fischer, Moreno & Rotenberg, 2004).
Entretanto, independentemente das diferentes necessidades de duração desse
repouso, é inegável que as perturbações e privações de sono impactam diretamente na saúde do trabalhador de turnos, pois, além de terem influência na dessincronização dos ritmos circadianos e na síndrome do shift-lag, como já dito – o que interfere no âmbito mental –, são, no longo prazo, capazes de produzir transtornos severos e persistentes no próprio sono, fadiga crônica e síndromes psiconeuróticas (tais como ansiedade e depressão crônica) que, com frequência, podem exigir tratamento com agentes hipnóticos ou psicotrópicos (Costa, 2004).
Alguns estados depressivos de que se queixam os trabalhadores noturnos poderiam estar associados à perturbação dos ritmos circadianos e a uma exposição menor à luz do dia. Ademais, transtornos de sono, fadiga crônica e flutuações oscilatórias de vigília e desempenho podem, ainda, ser importantes fatores de contribuição para o “erro humano” e para a maior ocorrência de acidentes de trabalho (Costa, 2004; Monk, Folkard & Wedderburn, 1996).
No âmbito social, os problemas vividos pelos que trabalham em turnos,
particularmente durante a noite, relacionam-se a um cotidiano essencialmente
diferente do restante da sociedade, como a distribuição temporal de suas atividades. A depender do tipo de esquema de turnos, esses trabalhadores podem enfrentar dificuldades de convivência com familiares e amigos, além da relativa impossibilidade de participar de cursos ou outros compromissos regulares, caminhando para o isolamento social (Fischer, Moreno & Rotenberg, 2004).
Tais dificuldades impactam, portanto, o ciclo da atividade social, que corresponde a um conjunto de sincronizadores sociais, como horários de trabalho, calendário escolar dos filhos, atividades religiosas, enfim, atividades sociais que se repetem com periodicidade determinada e que fazem parte da vida de qualquer pessoa. Para um indivíduo que trabalha durante o dia e dorme à noite, isso não se constitui um problema; no entanto, para alguém que inverte os horários de trabalho, os compromissos familiares e sociais frequentemente são incompatíveis (Moreno, 1998).
Com efeito, as dificuldades familiares e sociais são queixas frequentes dos
trabalhadores em regime de turnos e noturno, mais do que as relacionadas às
consequências biológicas, e, por vezes, são a principal causa de má-adaptação ao turno de trabalho, tendo ainda grande influência no desenvolvimento dos transtornos psicossomáticos (Régis Filho, 2002).
Estudos identificam que um a cada cinco trabalhadores apresenta, pelo menos, um dos sintomas de inadaptação ao trabalho em turnos e noturnos e que pelo menos 10% deles manifestaram sintomatologia característica de síndrome de má-adaptação ao trabalho em turnos (Régis Filho, 2002).
Como forma de mitigar os efeitos do regime de trabalho em turnos, alguns estudos sobre escalas de trabalho têm sido empreendidos no intuito de que elas causem menos impacto na saúde dos trabalhadores sujeitos a esse regime.
Autores ressaltam que as escalas de trabalho que seguem a rotação no sentido horário acarretam menos prejuízos à saúde dos trabalhadores, uma vez que permitem mais tempo de descanso entre os blocos de trabalho e garantem que o trabalhador tenha, igualmente, mais oportunidades de recuperação, prevenindo a acumulação da fadiga (Rzezak, Tufik & Mello, 2013). Com base nessa afirmativa, se a escala de trabalho for elaborada para “rodar para frente” (sentido horário), os ritmos circadianos adaptarseão com mais facilidade. De outra parte, no modelo de escalas por turno, os ritmos se atrasam para acompanhar a escala, pois rodam no sentido inverso todas as vezes que o
trabalhador altera o seu turno de trabalho (Rzezak, Tufik & Mello, 2013).
Já outros autores apresentam programas de computador que podem auxiliar no
gerenciamento de escalas de trabalho que consideram as horas operacionais
necessárias e a carga de trabalho individual de diferentes grupos de trabalhadores. Nesse caso específico, o trabalhador não participa da elaboração da escala de trabalho, o que lhe pode ser prejudicial também à empresa, visto que as escalas elaboradas com a participação do trabalhador tendem a ser mais benéficas a todos (Gärtner, Horwein & Janke, 2004).
Dessa feita, não apenas em virtude da escala de trabalho, mas, sobretudo, devido à modalidade de trabalho em turnos e noturno, não é exagero ressaltar que há inegáveis prejuízos ao trabalhador que, como já exposto, podem estar associados a problemas de saúde física e psicológica, mudanças biológicas, comportamentais e dificuldades sociais (Narciso & Pinto, 2013).
Para alguns autores, o aumento do tempo de trabalho em turnos (anos trabalhados) conduz a uma cronificação de sintomas provocados pela atividade profissional (Narciso & Pinto, 2013). Para esses autores, quanto maior o número de anos trabalhando em turnos, maior o número de queixas e do desenvolvimento de patologias associadas a esse esquema de trabalho, conforme demonstrado a seguir, na Figura 2:
A Figura 2 demonstra as fases do trabalho em turnos, em que de 0 a 5 anos é
considerada a fase de adaptação aos horários de trabalho não usuais e, no caso do trabalhador que não se adapta, isso pode ocasionar sua saída do emprego.
A segunda fase – de 5 a 20 anos trabalhados nesse regime – é considerada a fase de sensibilização, na qual o trabalhador já está adaptado ao trabalho em turnos, teve um desenvolvimento em sua carreira e construiu um patrimônio da vida familiar e social; porém, também pode acontecer que opte pela saída do emprego.
A terceira fase é considerada a fase de acumulação, que se inicia com mais de 20 anos de atividade desempenhada em turnos, sobretudo de riscos ambientais e de adoção de estratégias combinadas com os efeitos do processo biológico de envelhecimento. Nessa fase, pode acontecer a saída do trabalhador ou, ainda, uma aposentadoria precoce.
A quarta e última fase, que igualmente ocorre após mais de 20 anos de trabalho em turnos, é a colocada pelo autor como a de manifestação dos distúrbios sérios, citando os problemas de sono e doenças diversas (gastrointestinais, circulatórias ou nervosas). Essa fase pode gerar tanto a saída do emprego como a aposentadoria. De acordo com a Figura 2, a quarta fase pode ser considerada a mais crítica quanto aos sintomas de adoecimento do trabalhador em turnos.
Por toda a situação evidenciada neste estudo, é possível constatar que os
trabalhadores em turnos estão expostos a situações que, sem dúvidas, podem causar adoecimento. Diante disso, convém ressaltar que, em 12 de maio de 1999, foi publicado, no Diário Oficial da União, normativa acerca das doenças profissionais e doenças relacionadas ao trabalho em turnos, regulamentando o Decreto nº 3.048, de 6 de maio de 1999 (Brasil, 1999): o Regulamento da Previdência Social concernente aos benefícios, incluídos aqueles a serem auferidos pelos trabalhadores em caso de acidente e doenças profissionais e do trabalho.
Os regimes de trabalho em turnos e noturno estão incluídos como agentes etiológicos ou fatores de risco de natureza ocupacional e são considerados fatores de adoecimento reconhecidos pela Previdência Social brasileira, classificados conforme os códigos Z 56.5 (má-adaptação ao trabalho); F 51.2 (transtornos do ciclo vigília-sono devido a fatores não orgânicos) e G 47.2 (distúrbios do ciclo vigília-sono).
O reconhecimento feito pelo Governo Brasileiro de alguns fatores de adoecimento está relacionado na Classificação Internacional de Doenças (CID-10), elaborada pela Organização Mundial de Saúde, referente ao trabalho em turnos, ficando explícito que essa modalidade de trabalho causa impactos à saúde do trabalhador, em consonância com o defendido neste estudo.
Apesar desse reconhecimento ainda tímido – visto que estão pouco explícitas nesses documentos as consequências negativas do trabalho em turno e noturno para os fatores biológicos e psicossociais dos trabalhadores, demonstrados ao longo deste tópico –, isso representa, para alguns estudiosos do tema, um grande avanço, que coloca a legislação brasileira à frente da praticada pela maioria dos países do mundo no que diz respeito à proteção legal conferida aos trabalhadores em turnos e noturnos (Fischer, 2004).
EFEITOS DA REFORMA TRABALHISTA E DA LEI DA TERCEIRIZAÇÃO SOBRE O TRABALHO EM TURNOS
Mais nefastos do que todos os impactos que o trabalho em turnos pode causar à saúde do trabalhador, serão os efeitos deletérios que a Reforma Trabalhista, Lei nº 13.467/2017, e a Lei da Terceirização, nº 13.429/2017, as quais tornaram-se realidade no Brasil, poderão causar às relações trabalhistas.
A Lei da Reforma Trabalhista permite que os contratos sejam “flexíveis”, o que implica na precarização do trabalho, uma vez que os contratos dos trabalhadores serão descontínuos. Como exemplo pode-se citar os contratos intermitentes (que podem ocorrer em qualquer atividade) e os contratos temporários (com prazos maiores).
Trazendo para o objeto de estudo em questão “trabalho em turnos”, o trabalhador não poderá comprovar que os problemas de saúde advindos dessa modalidade de trabalho serão de responsabilidade da empresa X ou Y e, com isso, os vínculos trabalhistas serão extremamente fragilizados.
No que tange à jornada de trabalho, ainda conforme a referida lei há permissão para pactuar sobre a modalidade de registro de jornada – art. 611-A, inciso X. Há, também, permissão para o labor em jornadas além das 10 horas, desde que não exceda o limite semanal (44h) – art. 611, inciso I, CLT.
Por outro lado, o intervalo intrajornada poderá ser reduzido para o mínimo de 30 minutos para as jornadas acima de 6h – art. 611-A, inciso III, e/ou fracionado para algumas categorias – art. 71, § 5º, CLT, o que está em total desacordo com o estudo geral relativo aos instrumentos sobre o tempo de trabalho produzido durante a 107ª Conferência Internacional do Trabalho, realizado em Genebra em 2018 (OIT, 2018).
Permite-se, ainda, a realização da jornada 12×36 – atividades insalubres, sem licença prévia do Ministério do Trabalho (que foi extinto recentemente no Brasil por meio da Medida Provisória nº 870/19) – parágrafo único do art. 60 da CLT.
Outras mudanças impactarão diretamente na aplicação da NR-15 (atividades e operações insalubres) e NR-04 Serviço Especializado em Engenharia de Segurança e em Medicina do Trabalho (SESMT), a exemplo da possibilidade de pactuação sobre o percentual de insalubridade a ser considerado em cada atividade, cabendo o seguinte questionamento: Como fica a aplicação do item 15.5.1 que dispõe sobre a validade das perícias técnicas administrativas e judiciais? E ainda, como fica o perfil profissiográfico previdenciário (PPP) dos trabalhadores, o laudo de insalubridade, o Laudo Técnico das
Condições Ambientais do Trabalho (LTCAT), o Programa de Prevenção de Riscos Ambientais (PPRA – NR-07) e o Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO – NR-09), principalmente para os trabalhadores em turnos, que exigem que seus níveis estejam em constante alerta, já que as partes poderão acordar o percentual de insalubridade a ser considerado na atividade exercida?
Pois bem, a reforma trabalhista propiciou, dentre outros, a terceirização de todas as atividades da empresa, inclusive fim a possibilidade de negociação individual da jornada de trabalho, nela inclusa a adoção da jornada de 12 por 36 horas, já mencionada, e a redução do intervalo para refeições; permite, além disso, a pejotização do trabalho e a intermitência do contrato de trabalho (Brasil, 2017).
Para fins trabalhistas, cumpre esclarecer a diferença entre atividade-fim e atividadesmeio. Atividade-fim é aquela que compreende as atividades essenciais e normais para as quais a empresa se constituiu. É o seu objetivo a exploração do seu ramo de atividade expresso em contrato social. Atividade-meio é aquela não relacionada, diretamente, com a atividade-fim empresarial.
Essas condições geram insegurança e quebra dos vínculos de cooperação e
solidariedade nas relações de trabalho, fragilizando-as e propiciando adoecimentos e acidentes do trabalho em face dos efeitos deletérios causados à saúde mental do trabalhador, uma vez que atacam, em primeiro lugar, a solidez do próprio contrato de trabalho, que agora não precisará ser necessariamente de emprego e tampouco constante e permanente; em segundo lugar, a segurança financeira, já que a remuneração poderá ser reduzida; e, em terceiro lugar, o equilíbrio e a higidez, visto
que as jornadas poderão ser mais exaustivas.
Informações levantadas em todo o país evidenciaram, de forma unânime, a associação entre terceirização e precarização do trabalho9
como se fossem um mesmo fenômeno, visto que esta comumente é adotada por empresas para burlar a legislação trabalhista e desrespeitar direitos estabelecidos pela Consolidação das Leis do Trabalho, gerando
grande vulnerabilidade social e política, colocando em risco a relação de emprego enquanto elemento básico do contrato de trabalho (Druck, 2017).
Segundo Antunes (2018), o modelo acumulação flexível articula um conjunto de
elementos de continuidade e descontinuidade que acabam por conformar algo
relativamente novo e bastante distinto do padrão taylorista/fordista de acumulação, conhecido como o modelo das “empresas enxutas”. Assim um dos traços marcante desse modelo denominado toyotismo é a estrutura horizontalizada, ao contrário da verticalidade fordista. Enquanto nas fábricas taylorista/fordista 75% da produção era realizada no interior da fábrica, no toyotismo esse número cai para 25%, e a terceirização/subcontratação passa a ser central na estratégia patronal.
Antunes (2018) denomina esse momento vivenciado no mundo do trabalho, como uma fenomenologia preliminar dos modos de ser da precarização, o que denota a ampliação acentuada de trabalhadores submetidos a sucessivos contratos temporários, sem estabilidade, sem registro em carteira, dentro ou fora do espaço produtivo das empresas, quer em atividades mais estáveis ou ainda em atividades temporárias, quando não submetidos a situações de desemprego.
A terceirização é, na verdade, um fenômeno principal, que gera dimensões diversas de precarização, a saber: mercantilização da força de trabalho; padrões de gestão e organização do trabalho com imposição de metas inalcançáveis sustentadas na gestão por medo, alicerçada por jornadas de trabalho exaustivas e diversas formas de abuso de poder e discriminação (Druck, 2017).
É segundo Antunes (2018) uma hegemonia da “lógica financeira” que, para além de sua dimensão econômica, atinge todos os âmbitos da vida social, dando um novo conteúdo aos modos de trabalho e vida, sustentados na volatilidade, na efemeridade e na descartabilidade sem limites. Uma lógica que visa apenas a inovação e o aumento da produção, tornando obsoletos e descartáveis os homens e mulheres que trabalham.
Assim, além de condições de (in)segurança e saúde no trabalho, há um consequente aumento do índice de acidentes; condição de desemprego e ameaça permanente de perda do emprego; enfraquecimento da organização sindical e das formas de luta e representação operária; além da condenação e do descarte do Direito do Trabalho (Druck, 2017).
A pressão atual é no sentido de romper-se com os hábitos regulares, permanentes, cronometrados e fixos do trabalho. A estratégia é fazer com que os trabalhadores esqueçam e não aprendam o que quer que se refira à ética do trabalho, pois a mão de obra só pode se tornar realmente flexível se os empregados efetivos ou em perspectiva de se tornarem perderem os hábitos adquiridos do trabalho cotidiano, dos turnos diários, de um local permanente de trabalho e de uma empresa com colegas fixos (Bauman, 1999).
A ideia é que os trabalhadores não desenvolvam atividades vocacionais em relação a qualquer trabalho realizado e estejam sempre prontos a abandonar a tendência mórbida de fantasiar direitos à manutenção do emprego e às responsabilidades a ela inerentes. “Os trabalhadores devem desaprender a dedicação ao trabalho duramente
adquirida e o apego emocional duramente conquistado ao local de trabalho, assim
como o envolvimento pessoal no conforto desse ambiente” (Bauman, 1999, p. 120).
Assim é que, se antes da reforma trabalhista a terceirização já agravava os transtornos do trabalho em turnos por ser possível adotá-la nas atividades-meio da empresa, agora é que, com a possibilidade de adotá-la em todas as atividades da empresa, inclusive fim, esses transtornos serão multiplicados. Isso porque sabe-se que as atividades até então terceirizadas restringiam-se praticamente à limpeza e à segurança, o que implicava num percentual de 5% do contingente de trabalhadores de uma empresa; hodiernamente, em face da reforma trabalhista, esse percentual poderá ser elevado em até 100%.
É certo, portanto, afirmar que todos os agravos à saúde do trabalhador decorrentes do trabalho em turnos poderão ser extremamente potencializados caso as empresas resolvam terceirizar todas as atividades, em específico aquelas que requeiram uma sintonia fina entre conhecimento, experiência e relacionamento, e que possam de alguma maneira ser perigosas e causar danos à população e aos próprios trabalhadores.
FATORES DE PREVENÇÃO/MITIGAÇÃO
A Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) preocupou-se com a saúde do trabalhador noturno, com acréscimos na remuneração salarial por meio do adicional noturno e uma redução do tempo das horas trabalhadas durante o período noturno, considerando esse período de trabalho “potencialmente” prejudicial à saúde. Não se sabe ao certo quais serão os efeitos na prática após a implementação das leis mencionadas no tópico anterior, mas é com desalento que se enxerga, diante dos olhos, direitos sociais e trabalhistas adquiridos arduamente em anos de lutas se esfacelando.
A Constituição Federal brasileira de 1988, em seu artigo 7°, inciso XIV, previu a jornada de seis horas para o trabalho por turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva de trabalho, por entender ser essa modalidade de trabalho mais prejudicial aos trabalhadores (Brasil, 1988).
Algumas diretrizes internacionais, editadas em um passado relativamente recente, também enfatizaram a necessidade de uma organização cuidadosa das escalas de turnos e do trabalho noturno para proteger a saúde dos trabalhadores (Costa, 2004).
Assim, é imperativo considerar recomendações baseadas em estudos e pesquisas, como é o caso da 77ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho, ocorrida em 1990, em Genebra – que aprovou a Convenção n° 171, da Organização Internacional do Trabalho (OIT) –, onde discutiu numerosas proposições sobre o trabalho noturno, estabelecendo recomendações quanto à duração do trabalho, períodos de descanso, compensações pecuniárias, aspectos relacionados com a segurança e saúde, serviços sociais, entre outros pontos (Fundacentro, 1990).
Entre as recomendações, uma novidade: a necessidade de ser dada uma atenção aos efeitos cumulativos oriundos de fatores que provocam agravos à saúde, bem como uma atenção às formas de organização do trabalho em turnos (Fischer, 2004; Fundacentro, 1990). Com relação à avaliação da saúde, a comentada Convenção assim dispõe:
Art. 4. A seu pedido, os trabalhadores terão o direito de submeter-se à avaliação da saúde sem ônus e a receber orientação sobre como reduzir ou evitar problemas de saúde associados ao trabalho: a) antes de assumir uma nova tarefa como trabalhador noturno; b) em intervalos regulares durante tal atribuição; c) se sofrerem problemas de saúde durante tal atribuição que não sejam causados por fatores outros que não o desempenho do trabalho noturno (OIT, 1990).
Além disso, declara:
Art. 6. Trabalhadores noturnos designados, por motivo de saúde, como inadequados ao trabalho noturno deverão ser transferidos, sempre que praticável, a uma tarefa semelhante para a qual estejam capacitados. Se a transferência a tal atribuição não for praticável, esses trabalhadores deverão ter os mesmos direitos que os outros trabalhadores que sejam incapazes de trabalhar ou garantia do emprego. Um trabalhador noturno determinado como temporariamente inadequado ao trabalho noturno deverá receber a mesma proteção contra a demissão ou aviso prévio que os outros trabalhadores que estejam impedidos de trabalhar por motivos de saúde. (OIT, 1990)
Ademais, a seção IV das Recomendações da citada Convenção, quanto ao trabalho noturno (1990), afirma que:
IV. Patrões e representantes dos empregados envolvidos devem ser capazes de consultar o serviço de saúde ocupacional, onde existam, quanto às consequências das várias formas de organização do trabalho noturno, especialmente quando realizado por equipes rodiziantes. (OIT, 1990).
Dessa forma, com base na Convenção citada acima, os trabalhadores em turnos, em especial o noturno, que apresentarem algum problema de saúde relacionado às suas atividades em turnos poderão, após avaliação da área de saúde ocupacional, ser transferidos para atividades compatíveis com a sua função e passar a desenvolvê-las em horário comercial.
Além dos mecanismos legais mencionados, é importante frisar a necessidade do estabelecimento, pelas instituições públicas e privadas, de outras medidas de prevenção e compensação dos danos potenciais à saúde do trabalhador. As medidas de prevenção e de mitigação podem – e devem – ocorrer em três âmbitos distintos: coletivo, individual e familiar.
No que tange às medidas de prevenção coletivas, pesquisadores há muito advertiram que as mais efetivas para contrabalançar os efeitos negativos do trabalho em turnos incluem o desenho de esquemas de trabalho e o envolvimento interativo das partes envolvidas, visto que esses aspectos proporcionam maior sucesso nas mudanças organizacionais (Moreno, Fischer & Rotenberg, 2003).
Especialistas no tema advertem que investir na prevenção é a melhor intervenção para minimizar os impactos do trabalho em turnos. Nesse sentido, apresentam-se algumas sugestões que podem minimizar os impactos causados pelo trabalho em turnos (Narciso & Pinto, 2013).
Em âmbito coletivo, o empregador deve:
- Proporcionar o maior número possível de folgas nos finais de semana e em datas comemorativas para reduzir o isolamento social e fortalecer o convívio familiar e os vínculos afetivos;
- Elaborar materiais informativos sobre a necessidade de adoção de comportamentos mais saudáveis relacionados ao sono, à alimentação, à prática de exercícios físicos, ao lazer, à vida em família e em sociedade, contribuindo para que os trabalhadores minimizem os problemas relacionados ao trabalho em turnos;
- Incentivar o acompanhamento médico sistemático – e com fácil acesso –, como a realização de exames médicos periódicos, investigando aspectos físico e mental, assim como o tratamento adequado de doenças e síndromes diagnosticadas;
- Proporcionar um espaço de discussão coletiva, onde os trabalhadores possam falar sobre situações relacionadas ao trabalho, de forma a transformar as vivências de sofrimento em prazer no trabalho por meio de estratégias individuais e coletivas, contribuindo para a manutenção da saúde mental (Dejours, 2012).
No âmbito familiar, o suporte dos demais membros da família é fundamental para mitigar os impactos do trabalho em turnos na saúde do trabalhador, o que pode ocorrer por meio de visitas das famílias aos locais de trabalho, para compreender as dificuldades enfrentadas pelo trabalhador, no intuito de diminuir as exigências excessivas no ambiente doméstico e auxiliá-lo quanto aos hábitos a serem adquiridos no cotidiano, como o incentivo a uma alimentação saudável, sono repousante, lazer, prática de exercícios físicos e ao convívio social.
Por fim, no âmbito individual, os trabalhadores devem atentar-se para pequenos
detalhes que podem fazer sensível diferença ao longo dos anos trabalhados em turnos, como, por exemplo:
- Favorecer o descanso e o sono em casa, dormindo em ambientes silenciosos,
escuros e com temperatura agradável, recomendações feitas pelos higienistas de sono e que devem ser atendidas pelo trabalhador; - Promover ajuste dos ritmos biológicos por meio de terapias já consolidadas na literatura, como a fototerapia, cochilos programados, entre outros;
- Conscientizar-se acerca dos hábitos alimentares visando minimizar os problemas digestivos e metabólicos por meio da redução do consumo excessivo de gorduras, frituras, sal, açúcar, carboidratos, assim como regularização do horário das refeições.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Encerramos esse artigo com algumas observações, pois, a sociedade moderna, da forma como é atualmente organizada, exige a prestação de serviços e a oferta de produtos diuturnamente, demandando que trabalhadores de diversos segmentos exerçam suas atividades em turnos. Tal realidade demanda a reflexão acerca de meios que minimizem os impactos dessa forma de organização temporal do trabalho na vida desses trabalhadores, considerando que eles se esforçam ao tentar reajustar os seus ritmos biopsicológicos e podem apresentar queixas de perturbações do sono (insônia e sonolência excessiva), perturbações gastrointestinais e cardiovasculares, fadiga crônica,
depressão, ansiedade, alterações do humor e problemas sociofamiliares, abordados ao longo desse estudo.
Desse modo, o objetivo deste artigo foi o de proporcionar uma discussão teórica sobre os prejuízos que a modalidade de trabalho em turnos pode causar à saúde do trabalhador que exerce a sua atividade laboral sob esse regime e realizar alguns apontamentos sobre os efeitos da Reforma Trabalhista e a Lei da Terceirização.
Como visto, o trabalho em turnos implica problemas inevitáveis, já que contraria
princípios biológicos e de convivência social.
Conclui-se que, após a aprovação da Reforma Trabalhista e a Lei da Terceirização, essa modalidade de trabalho pode degradar ainda mais a saúde dos trabalhadores que assim laboram. Concordamos com Antunes (2018), quando o autor afirma que o trabalho em turnos tende a ser mais precarizado, mais informalizado, com mais trabalhadores intermitentes, eliminando inclusive postos de trabalho, o que consequentemente gera menos pessoas trabalhando com direitos preservados.
Infere-se que essa realidade demanda a adoção de medidas de prevenção ao
adoecimento, que podem acontecer em três âmbitos: coletivo, individual e familiar, que perpassam pelo redesenho de esquemas de trabalho e pelo envolvimento interativo das partes envolvidas; reconfiguração das escalas de trabalho, de modo a propiciar mais folgas em finais de semana; cuidados maiores com a saúde, alimentação, repouso; envolvimento da família e favorecimento do descanso em casa; promoção de terapias já consolidadas na literatura; compreensão por parte da família acerca das dificuldades
enfrentadas pelo trabalhador, entre outras medidas propostas.
Por fim, pondera-se que a sociedade se beneficia dos serviços ofertados 24h, sendo preciso mobilizar esforços, incentivar pesquisas e manter intensa fiscalização por parte das instituições competentes, de modo a tornar menos árdua a organização temporal do trabalho em turnos e causar o menor prejuízo possível na vida e na saúde das pessoas que assim laboram. Se faz imperativo lutar e resistir para que medidas como as preconizadas pela Reforma Trabalhista e a Lei da Terceirização que contrariam as recomendações de saúde e segurança do trabalho, não sejam implementadas nas organizações que dispõem desse contingente de trabalhadores laborando em turnos.
Por fim, parafraseando Antunes (2018), nesse conturbado século XXI, o desafio maior é dar sentido autoconstituinte ao trabalho humano, de modo a tornar a vida dos trabalhadores fora do ambiente de trabalho também dotada de sentido.
REFERÊNCIAS
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Publicado na Revista Farol, Disponível em: http://https://revistas.face.ufmg.br/index.php/farol/article/view/5516
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