Profa. Dra. Kátia Barbosa Macêdo
Introdução – Contextualização da modernidade
Somos seres que precisamos do outro para existir como humanos. Se nos falta ajuda, afeto, proteção, acolhimento, contenção, sentimo-nos desamparados (BARROS, 2007, p. 271).
Ao abordarmos um tema, devemos considerar o contexto e a cultura
onde o fenômeno ocorre, como forma de facilitar a compreensão do mesmo. Assim, para abordarmos o desamparo do sujeito contemporâneo, faz-se necessário apresentar alguns traços que caracterizam a cultura ocidental após a modernidade.
É importante comentar que o processo histórico é contínuo, dialético e
contraditório, e qualquer delimitação que façamos para atender a um
interesse didático sempre supõe recortes, portanto, incompletos. Não é
objetivo do presente artigo discutir a construção histórica da passagem do
Renascimento para a modernidade e desta para a contemporaneidade ou
pós-modernidade, até porque não parece haver consenso quanto a isso nem
entre os sociólogos. Pretendemos tão somente enfocar alguns aspectos que impactaram nas formas de vínculos afetivos e consequentemente na
constituição da subjetividade deste sujeito, objeto de nosso estudo.
A modernidade é o resultado do projeto iluminista, que visava a auto
emancipação de uma humanidade razoável. Ele se daria através de um
conjunto de valores e ideais baseados no racionalismo, no individualismo e
no universalismo. Nesse sentido, o racionalismo significou uma fé na razão
e na ciência, que substituiria a religião. O individualismo significou uma
ruptura com antigas cosmovisões comunitárias. Houve a transição para uma nova ética e política, com características descentradas e libertas do coletivo. Partindo dessa concepção, o homem passou a valer por si mesmo, e não pelo estatuto que a comunidade lhe outorgava. Emancipar implicava
individualizar, desprender o homem das malhas do todo social. O
universalismo buscava dissolver os particularismos locais e se concretizaria
no processo de globalização (ROUANET, 2007; MACÊDO, 2011b).
O termo modernidade implica uma série de transformações sociais,
materiais, políticas e intelectuais a partir da emergência e difusão do
iluminismo, e que acabaram por se misturar à revolução industrial e às
transformações geradas pelo capitalismo. A ideia de progresso baseado na
ciência e na razão é o resultado dos padrões críticos e racionais surgidos no
Renascimento, de acordo com Menezes (2006) e Giddens (1991).
A modernidade é um fenômeno de dois gumes, na medida em que o
desenvolvimento da ordem moderna e sua difusão global, ao mesmo tempo
em que criou oportunidades bem maiores para os seres humanos gozarem
de uma existência segura e gratificante mais que qualquer tipo de sistema
pré-moderno, trouxe mais violência exacerbada e em escala mundial
(GIDDENS, 1991). Pode-se dizer que três fontes facilitaram a transição da
ordem tradicional para a ordem moderna: a separação de tempo e espaço; o
processo de desencaixe dos sistemas sociais; a apropriação reflexiva do
conhecimento.
O iluminismo enunciou a ideia de felicidade segundo o qual o homem
dominaria a natureza com base na razão científica e constituiria uma
sociedade igualitária. Vimos surgir novos estilos, costumes de vida e
diferentes formas de organização social. É evidente o declínio da esfera
pública e política, a mistura entre o público e o privado, as novas formas de
identidade social, a expansão dos fundamentalismos, os tribalismos e as
mudanças que a tecnologia gerou na produção material e no cotidiano.
Para que o projeto iluminista tivesse a adesão garantida, passou a utilizar mecanismos de repressão e coerção, porém adotando um discurso em forma da liberdade. Assim, criou-se uma nova lógica violenta que passou a considerar: a violência contra o pensamento, traduzida na ideia de “liberdade” para pensar o que todos pensam; violência contra a vontade popular concretizada em um sistema ideológico / democrático contendo regras que impedem a contestação do poder.
A radicalização da modernidade é tão perturbadora e significativa que nos leva a um novo e inquietante universo de experiência. Seus traços mais evidentes são: a dissolução do evolucionismo, o desaparecimento da teologia histórica, o reconhecimento da reflexividade meticulosa e constitutiva e a evaporação da posição privilegiada do ocidente diante da globalização. Desse modo, o dinamismo da modernidade deriva basicamente de três fontes: que é a separação de tempo e espaço; o processo de desencaixe dos sistemas sociais e a apropriação reflexiva do conhecimento. Essas três fontes são condições que facilitaram a transição da ordem tradicional para a ordem moderna (GIDDENS, 1991, p. 58).
Essas características que compõem o contexto da modernidade tiveram sua origem na revolução industrial e são refletidas em quatro dimensões institucionais básicas que são: o capitalismo; o industrialismo e o uso de fontes inanimadas de emergia material na produção de bens; o poder militar e a vigilância. Essas dimensões são ilustradas na figura 1.
Figura 1 – Dimensões institucionais da modernidade
O resultado desse processo histórico foi a constituição de um contexto
moderno que inclui algumas características, apresentadas abaixo e
levantadas a partir dos trabalhos de Menezes (2006), Costa (1998), Birman
(2007), Giddens (1991), Macêdo (2010a, 2010b) e Rouanet (2007), dentre
outros.
1. Desenraizamento, que leva a constituição de Egos “flutuantes”, ou seja,
sujeitos à mudanças de acordo com os grupos de pertença, e à deriva
do desamparo advindo de vínculos afetivos cada vez mais descartáveis;
2. O tempo é ceifado do passado e do futuro, separado da história e da
memória, e o fluxo do tempo torna-se um presente contínuo onde a
ordem é flutuar. O tempo já não estrutura mais o espaço. A estratégia
da vida pós-moderna é evitar que a identidade se fixe, a incerteza passa
a ser permanente e irredutível. A segurança também se desintegrou
ou está consideravelmente enfraquecida;
3. O ambiente se configura em uma atmosfera de medo e favorável para o
desenvolvimento de fenômenos do campo da angústia;
4. As relações interpessoais são permeadas pelo consumismo, onde os
laços não prometem a concessão nem a aquisição de direitos e
obrigações. Uma das características do indivíduo é viver
permanentemente com o problema da identidade não resolvido.
Birman (2007) afirma que se constrói um tipo de laço social no qual o
vínculo é frouxo, precário, leve, superficial, não havendo mais lugar
para as experiências de perda e luto, de enraizamento e fixidez. Nesse
cenário, as individualidades são descartáveis, assim como as
identificações e os vínculos eróticos e afetivos. A alteridade e a
diferença vão dando lugar à igualdade e à massificação desenha-se
uma cena social em que ter equivale a ser;
5. As parcerias e os grupos se desintegram, e se tornam dependentes do
mercado. O cidadão sustentado na ética fundada na lei paterna cede
lugar para o consumidor, sustentado na ética do consumo. Há um
apagamento da alteridade e a tendência é uma redução do homem à
dimensão da imagem;
6. A cultura da imagem é um efeito da prática de produção da
subjetividade consumidora. O consumo consome o sujeito. A
publicidade manipula o poder de decisão de compra do indivíduo,
transferindo-o paras as empresas, acaba por fabricar seu próprio
produto: o consumidor perpetuamente insatisfeito e entediado.
Há um processo gradual e progressivo de desagregação do tecido
social. O abandono do Estado aumenta a vivência de desvalia e desamparo
por parte dos indivíduos, potencializando a sensação de vazio, o que
culmina na busca frenética de objetos que preencham esse vazio, e que
dêem sentido à existência do sujeito. Na atualidade predominam as
formações de ego baseadas em idealizações que negam a impotência e
castração, a passagem do tempo, ou seja, que negam o nosso desamparo da
condição humana. Isso contribui para a constituição de uma subjetividade
autocentrada e narcísica. Uma consequência disso é a alteração nas
modalidades de sociabilidade que aponta para a fragilização dos vínculos
sociais, ou seja, dos laços mútuos e da constituição e permanência dos
grupos (MACÊDO; JUNQUEIRA; CARNEIRO; MIRANDA; PEREIRA; MACEDO,
2010).
Essas características são ilustradas na figura 2, apresentada abaixo.
Figura 2 – Contextualização da modernidade
Assim, de forma resumida podemos sintetizar as principais características da modernidade e seu impacto no psiquismo do indivíduo inserido nesse contexto, utilizando as palavras de Birman (2007, p. 24-25):
Nas últimas décadas, constitui-se no Ocidente uma nova cartografia do social, em que a fragmentação da subjetividade ocupa posição fundamental. Esta fragmentação é a matéria-prima por meio da qual outras modalidades de subjetivação são forjadas. Atualmente se articulam a medicalização e psiquiatrização do social, mediados pelas neurociências e pela psicofarmacologia, e a construção empresarial gigantesca do narcotráfico. Essa articulação se funda em certos modelos privilegiados de subjetivação investidos pela cultura do narcisismo e pela sociedade do espetáculo, e enfatizam a exterioridade e o autocentra mento […] Os destinos do desejo assumem uma direção marcadamente exibicionista e autocentrada, na qual o horizonte intersubjetivo se encontra esvaziado e desinvestido das trocas inter-humanas. Esse é o trágico cenário da violência que marca a atualidade. Cada um por si e foda-se o resto parece ser o lema maior que define o ethos da atualidade, já que não podemos, além disso, contar mais com a ajuda de Deus em nosso mundo desencantado.
As sociedades modernas têm na liberdade, na autonomia individual e na valorização narcísica do indivíduo seus grandes ideais, orientados para o gozo e para o consumo. Cada indivíduo se crê pai de si mesmo, sem dívida nem compromisso com os antepassados, incapaz de reconhecer o peso do laço com os semelhantes, vivos e mortos na sustentação de sua posição subjetiva. A ética da sociedade contemporânea configura um ideal de cultura em que os valores soberanos são o autocentramento; o excesso de exterioridade; a exigência do sucesso; do enriquecimento a qualquer preço e de imediato. Há uma redução do homem à dimensão da imagem. A fama parece ter o poder de ser o que substitui a cidadania na cultura do narcisismo e da imagem.
Definimos cultura do narcisismo como aquela em que o conjunto de itens materiais e simbólicos maximiza real ou imaginariamente os efeitos de Ananke, forçando o Ego a ativar aprioristicamente os automatismos de preservação face ao recrudescimento da angústia de impotência. É a cultura onde a experiência de impotência e desamparo é levado a um ponto tal que torna conflitante e eternamente difícil à prática da solidariedade. Assim, diante das exigências dos ideais da cultura contemporânea o sujeito responde no regime da idealização do ego (narcisismo), correndo o perigo de se perder no lugar da impotência e desamparo que já no coração da angústia (COSTA, 1988, p. 65).
Ser e parecer se identificam absolutamente no discurso narcísico do
espetáculo, o que o sujeito perde em interioridade ganha em exterioridade.
O sujeito se transforma numa máscara, para exterioridade, para exibição
fascinante e para captura do outro. Para Birman (2007), o que caracteriza o
auto-centramento da subjetividade na cultura do narcisismo é justamente o
excesso de exterioridade. Temos que lidar com uma nova modalidade de
sujeito fora-de-si. Essa modalidade de autocentramento é valorizada
socialmente na cultura do narcisismo e estimulada socialmente pela cultura
da drogadição, pelas vias médicas e do narcotráfico.
Na atualidade, outra modalidade de comportamento ditado pelo
contexto é o consumo, que em decorrência do capitalismo se tornou a
medida de uma vida bem-sucedida. Os indivíduos da sociedade de consumo
devem lançar mão de todos os recursos de que dispõem para jogar, tendo
em vista que os jogadores incapazes são mantidos fora do jogo. A cena
social atual desenha uma sociedade de consumidores guiada pelo mercado
consumidor, portanto uma sociedade desregulamentada e privatizada em
que se lança um novo projeto de vida no qual se configura um novo projeto
de identidade. A identidade passou a ser uma tarefa individual e de
responsabilidade do indivíduo (MACÊDO, 2010a, 2011a).
O indivíduo contemporâneo não se pauta mais prioritariamente pelos ideais libertários, tal como em 1960, quando buscava a superação de limites e interditos orientados por projetos utópicos. O que caracteriza o individualismo contemporâneo é uma experiência de desenraizamento, de errância, vinculada à perda de referências simbólicas, que leva a uma busca constante de ancoragens identitárias, ainda que transitórias. Esta configuração atual do individualismo expressa-se nitidamente no tribalismo contemporâneo, o que nos faz pensar em um novo individualismo alimentado tanto pelo culto à diferença e à autenticidade quanto por uma busca incessante e impositiva de liberdade.
A figura de um indivíduo errante, sem amarras e à deriva, como paradigmática dos novos contornos que o individualismo assume em nossa época. Sugerimos que a errância contemporânea traduz-se em uma modalidade de sofrimento psíquico, associado a uma situação de insegurança ou instabilidade identitárias, exacerbada pela imposição da busca do prazer constante e sem restrições. Este estado de coisas apresenta-se subjetivamente por meio de diversas manifestações de sofrimento psíquico, articuladas a uma experiência de desamparo perturbadora (GARCIA; COUTINHO, 2004, p. 132).
As psicopatologias emergem quando faltam ao sujeito os meios
habituais, ou seja, culturalmente codificados e legitimados para lidar com os
conflitos derivados das imposições do tipo psicológico ideal. A psicopatologia é produto de um entrave no processo de socialização, a cultura pode ser um fator patogênico, não porque produz um tipo particular
de identidade étnica, mas porque é um elemento causal na cadeia patogênica, quando produz uma dissimetria entre as exigências sociais e os meios adequados para cumpri-las.
Alguns autores, dentre eles Menezes (2006), Birman (2007), Kehl
(2002), Santos (2009), Macêdo (2010a), Macêdo, Junqueira, Carneiro,
Miranda, Pereira e Macedo (2010) e Rouanet (2007) esclarecem que esse
contexto auxilia na configuração das novas psicopatologias na atualidade, às novas formas de subjetivação e, portanto, à caracterização da identidade
pós-moderna e ao declínio da Lei paterna na sociedade contemporânea. O
autocentra mento absoluto do sujeito se expressa no individualismo em seu
limite máximo e se apresenta sob a forma da estetização da existência, na
qual o que importa para individualidade é a exaltação gloriosa do próprio
eu. Uma subjetividade que privilegia processos psíquicos narcísicos, a
idealização da onipotência do ego. As formas de adoecimento psíquico dessa época têm em comuns traços de desamparo, falta de referências. As que têm tido uma maior incidência atualmente são: pânico; depressão;
distúrbios relacionados à alimentação como bulimia e anorexia; as
psicossomatizações e as toxicomanias e adições.
A psicopatologia da pós-modernidade se caracteriza por certas modalidades privilegiadas de funcionamento psicopatológico, nas quais é sempre o fracasso do indivíduo em realizar a glorificação do eu e a estetização da existência que está em pauta: são quadros clínicos fundados sempre no fracasso da participação do sujeito na cultura do narcisismo […] Quando se encontra deprimido e panicado, o sujeito não consegue exercer o fascínio de estetização de sua existência, sendo considerado um fracassado segundo os valores axiais dessa visão de mundo (BIRMAN, 2001, p. 167-69).
Dos vários traços e características descritas acima, salientamos a importância do desamparo para o homem moderno. O homem moderno teria a marca do desamparo em função de três traços principais da modernidade: a passagem do holismo para o antropocentrismo, o autocentramento do sujeito no eu e na consciência e a substituição do discurso teológico pelo discurso da ciência.
Na modernidade, o desamparo tem a função de causa primeira não apenas do sofrimento neurótico, mas também da invenção do cultural, o que aponta para o caráter paradoxal da noção de desamparo em psicanálise. De fato, sofre-se a partir do desamparo, mas é também sua inevitabilidade que serve de motor para a construção da cultura.
Diante do desamparo radical, o sujeito pós-moderno abre mão de seu bem maior: a liberdade, pois em troca de uma segurança ilusória, ele se oferece como escravo. Essa posição de servidão caracteriza uma condição de extrema miséria psíquica, na medida em que o sujeito está inserido na proteção da onipotência narcísica, no registro do ego ideal e não arrisca o imprevisível, ou seja, não se aventura na experiência da castração. Você me protege do desamparo e em troca eu me submeto a qualquer coisa (MENEZES, 2006, p. 202).
Uma vez apresentados alguns aspectos do contexto no qual o sujeito se
insere, passaremos a enfocar mais especificamente o tema do desamparo.
O conceito de desamparo
A palavra Hilflosigkeit (utilizada por Freud para se referir ao
desamparo) pode ser traduzida como incapacidade de se sair bem de uma
situação difícil; de se virar; abandono; impotência e estado de desamparo, aquele que está sem ajuda, desarmado. O desamparo se tratava para Freud de um dado essencialmente objetivo: a impotência do recém-nascido humano que é incapaz de empreender uma ação coordenada e eficaz. Esse termo expressa um estado próximo do desespero e do trauma. O trauma está diretamente ligado ao estado de impotência e de desamparo do sujeito. O sujeito exposto ao excesso de excitação vive uma situação de desamparo.
Amparar procede do latim imparare, de onde deriva diretamente imparare, em italiano, que significa aprender; em português, o sentido desviou-se e, com efeito, ampara-se, protege-se aquilo de que estamos na posse. Desamparar, por conseguinte, além do sentido mais comum de deixar de amparar, não auxiliar, abandonar, encerraria também essa ideia de ausência de posse e da desproteção que daí decorreria (PEREIRA, 2000, p. 117).
O desamparo designa um estado ou situação do lactante que, dependendo inteiramente de outro para a satisfação de suas necessidades, se revela impotente para realizar a ação específica adequada para pôr fim à tensão interna. O desamparo decorre de uma situação de perigo inevitável vivida pelo ser humano devido à sua imaturidade neonatal; é uma experiência primordial da condição do vivente. É também considerado como protótipo da situação traumática geradora de angústia, e foi muito bem descrito por Green (1988, p.151), quando afirma:
A transformação na vida psíquica, no momento do súbito abandono ou privação da mãe quando abruptamente ela ficou desligada de seu bebê, é experimentada pelo filho com uma catástrofe: porque, sem qualquer sinal de alarme, o amor foi perdido de repente. Essa experiência se constitui numa desilusão prematura. O resultado é a constituição de um buraco na textura das relações com a mãe. Repete sentimentos de privação ou abandono da mãe. A mãe continua por perto, contudo, seu coração não está nela. A tentativa fracassa porque o sujeito se mantém vulnerável em um ponto em particular, que é a sua vida de amor.
À medida que Freud desenvolveu a psicanálise, ele esclareceu que
existem dois tipos de desamparo: o primeiro é o desamparo motor ou físico,
associado ao trauma do nascimento, indicando um perigo real e ligado a
fatores externos; o segundo é o desamparo psíquico, indicando um perigo
pulsional interno. Ele reconhece que há uma característica comum aos
perigos internos, que é o fato de se ligarem a angústia de perda ou
separação, o que provoca um aumento progressivo da tensão, a ponto de o
sujeito se ver incapaz de dominar as excitações, sendo submergido por elas,
o que define o estado gerador do sentimento de desamparo (MACÊDO,
2009, 2011B).
Partindo das ideias de vários autores, além de Freud, como Menezes (2006); Morgenstern (2010); Garcia e Coutinho (2004), temos que a vivência de desamparo expressa a dimensão fundamental e insuperável sobre a qual repousa a vida humana. É o motor na construção da civilização. O homem ergueu a civilização em uma tentativa de diminuir seu desamparo diante das forças da natureza, dos enigmas da vida e, sobretudo, da própria morte. O termo desamparo nos lança à condição de falta de auxílio e à experiência de estar fora de algum sistema de proteção. Essa vivência geralmente é anunciada e acompanhada de uma intensa angústia. É algo do humano que nos ronda e nos confronta com a nossa condição de incompletude e de fragilidade, que indica o desamparo fundamental. O desamparo inaugura a necessidade do outro, a partir do qual se funda a capacidade de desejar. A concepção do desamparo indica a base do desespero do homem, quando confrontado à precariedade de sua existência.
Desamparo e seu desenvolvimento na teoria freudiana
Sendo o desamparo considerado a vivência prototípica dos estados de angústia, faz-se necessário examinarmos resumidamente os três momentos da teoria da angústia no discurso freudiano, visando facilitar a compreensão das duas principais concepções freudianas sobre o conceito de desamparo. Desse modo, conforme Pereira (2000) os três momentos da teoria da angústia seriam:
1. Presente desde o início de seus trabalhos teóricos (1893 a 1895) – esse primeiro momento localiza-se em torno do estudo da neurose de angústia e suas relações com a vida sexual. Aqui a angústia era definida como uma descarga automática, sem a participação do psíquico.
2. O segundo momento corresponde ao período entre 1909 a 1917, girava em torno das relações da angústia e a libido recalcada. Iniciou-se quando Freud definiu a histeria de angústia como um processo patológico independente (no Pequeno Hans, em 1909). Aqui, a angústia era considerada como um dos resultados possíveis de serem obtidos por transformação da libido liberada com o recalque, sendo assim, a angústia o fruto do recalque.
3. Finalmente, o terceiro momento, correspondendo ao período entre 1926 a 1932, enfocava as relações entre a angústia e o aparelho psíquico, sendo, portanto uma reformulação do período anterior. A angústia era concebida como a condição necessária para colocar o processo de recalque em ação. Em Inibições, sintomas e angústia (1986 [1926]), Freud expôs essa reformulação, passando a considerar o ego como sede da angústia. A partir dessa concepção, quando a pessoa se defronta com situações de perigo, libera intencionalmente a angústia sinal.
Em decorrência dos três momentos acima descritos, a elaboração da noção de desamparo na teoria freudiana contou com a ênfase em distintos aspectos. A problemática do desamparo na obra de Freud aponta para duas dimensões: erótica e sexual e renúncia pulsional ou condição para viver em sociedade. O quadro 1, apresentado abaixo, ilustra o desenvolvimento do conceito de desamparo na obra freudiana.
Quadro 1 – O desenvolvimento do conceito de desamparo na obra de Freud
A primeira dimensão, erótica e sexual se liga ao primeiro e segundo
momentos acima descritos, abarcando obras do período entre 1893 e 1917.
Aborda o desamparo original estruturante do psiquismo, ligado a uma
situação de desamparo relacionada a um lugar infantil e à sexualidade
traumática vinda da mãe, uma reação perante a angústia relacionada à
angústia pela perda do objeto.
A segunda dimensão, a que relaciona o desamparo à renúncia pulsional
é produto do terceiro momento, com obras publicadas após 1926.
Apresenta o desamparo não mais apenas como situação, mas como condição para viver em sociedade. Está relacionada à falta de garantias do sujeito sobre seu existir e sobre seu futuro, que é obrigado a uma renúncia
pulsional como condição para viver em sociedade.
A dimensão erótica e sexual do desamparo
As obras que abordaram o desamparo nesta dimensão erótica e sexual foram Projeto para uma psicologia científica (1986 [1895]); A interpretação dos sonhos (1986 [1900]) e Inibições, sintomas e angústia (1986 [1926]). Na primeira delas, Freud considera o desamparo como fonte primordial de todos os motivos morais. Estar desamparado é estar à mercê. O nascimento se constitui como o protótipo da situação traumática. O fator biológico de prematuração do ser humano estabelece as primeiras situações de perigo e cria a necessidade de ser cuidado por outra pessoa para que possamos sobreviver. O bebê é incapaz de ajudar-se a si mesmo, encontra-se em uma atitude de completa dependência em relação ao outro. É inteiramente dominado pelo perigo do aniquilamento e de destruição, daí o fato do nascimento ter uma dimensão traumatizante.
Em A Interpretação dos Sonhos (1986 [1900]), Freud relaciona o desamparo à falta de uma vivência de satisfação. Em Inibições, sintomas e angústia (1986 [1926]), introduz a noção da angústia ligada ao medo da perda do amor do ser que ocupa a função de protetor. Angústia passou a ser o produto do desamparo psíquico da criança frente a uma situação traumática. Em uma situação traumática estão presentes três elementos, sendo a ansiedade diante do perigo de perda; o desamparo e a impotência para lidar com a situação.
A dimensão da renúncia pulsional do desamparo
As obras que abordaram o desamparo nesta dimensão da renúncia pulsional, ou seja, que discutiram o processo civilizatório e seu impacto no psiquismo humano foi O futuro de uma ilusão (1986 [1927]) e O mal-estar na civilização (1986 [1930]). Nestas obras, Freud explica o mal estar como resposta do sujeito ao excesso de demanda pulsional que o processo civilizatório faz, sem oportunizar a possibilidade de satisfação pulsional. Há um antagonismo irremediável entre as exigências pulsionais e as restrições da civilização. O mal-estar diz respeito ao desamparo no campo social e, para viver, as pessoas devem criar possibilidades afetivas para o enfrentamento da condição de desamparo.
Freud afirmou que o sofrimento nos ameaça a partir de três direções: a
fragilidade de nosso corpo; o poder superior da natureza e as pressões do
mundo externo e a inadequação das regras que procuram ajustar os
relacionamentos mútuos dos seres humanos. Diante do sofrimento advindo
principalmente destas três fontes, Freud afirma que o indivíduo utiliza
algumas estratégias para lidar com ele, ressaltando principalmente:
isolamento voluntário; submissão às normas; uso de substâncias tóxicas;
tentativa de controlar a nossa vida instintiva: (defesas, sintomas);
sublimação via trabalho; delírio ou cultivo da ilusão no fanatismo religioso
(tornar-se louco) e finalmente amar e ser amado.
Dentre as estratégias apresentadas acima, três chamam especialmente a atenção: a sublimação via trabalho e arte que, juntamente com a submissão às normas e regras são utilizadas para a constituição do trabalho civilizatório e a que se refere a cultivar uma ilusão, que pode constituir na constituição de uma ilusão específica em forma de religião. A constituição da civilização e da religião foram dois aspectos especificamente abordados por Freud para explicar nossa estratégia para lidar com o desamparo em uma dimensão de renúncia pulsional (MACÊDO, 2009, 2011a).
Para lidar com o medo da morte, que nos coloca em contato com nossa impotência e desamparo, o ser humano construiu a civilização. Freud parte do pressuposto de que a cultura teria por função a proteção da condição humana do desamparo perante o mundo e os outros homens, tanto quanto a organização de suas relações sociais e a divisão dos bens. Para Freud (1986 [1930], p. 100-105)
Civilização descreve a soma integral das relações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos antepassados animais, e servem para proteger os homens contra a natureza; ajustar os seus relacionamentos mútuos (leis) e valorizar a beleza, a ordem e a limpeza […] O que chamamos de nossa civilização é em grande parte responsável por nossa desgraça, e seríamos muito mais felizes se a abandonássemos e retornássemos às condições primitivas.
Infelizmente a civilização não se mostrou capaz de atender aos anseios do ser humano, e Freud comenta que “o programa de tornar-se feliz, que o princípio do prazer nos impõe, não pode ser realizado” (FREUD, 1986 [1930], p. 102).
A religião foi construída como um cabedal de ideias nasceu da necessidade que o homem tem de tornar tolerável seu desamparo, e construído com o material das lembranças do desamparo de sua própria infância e da infância da raça humana. O anseio pela proteção frente à sua debilidade humana. É a defesa contra o desamparo infantil que empresta suas feições características à reação do adulto ao desamparo que ele tem que reconhecer. A crença religiosa é uma ilusão quando uma realização de desejo constitui fator proeminente em sua motivação, e assim procedendo, desprezamos suas relações com a realidade, tal como a própria ilusão não dá valor à sua fixação.
Considerações finais: o trabalho com o desamparo na clínica psicanalítica
Pode-se afirmar que o objetivo do texto foi alcançado considerando que
correlacionou teoricamente o conceito do desamparo do sujeito contemporâneo com o contexto atual, demonstrando que há um estímulo social para o fortalecimento do individualismo e do movimento narcísico, decorrente da crescente fragilidade dos vínculos sociais e afetivos, cada vez mais tratados como descartáveis.
A clínica psicanalítica contemporânea confronta-nos com manifestações de sofrimento psíquico, que nos fazem pensar em uma nova forma de mal-estar na civilização, tendo em mente o texto de Freud em 1930. Enquanto Freud deparava-se com uma cultura que cerceava o indivíduo, impedindo a satisfação das pulsões sexuais e agressivas, hoje vivemos em uma sociedade que cultua a liberdade individual como valor absoluto e hegemônico, estimulando a busca de prazer constante, o que resulta em uma experiência de insuficiência e fracasso. Conforme vários autores como Garcia e Coutinho (2004) e Barros (2007), parece que hoje deparamo-nos com manifestações de dor psíquica motivada mais pela exigência de prazer do que pela restrição ao prazer.
Assim, há na clínica atual uma crescente busca por pessoas cuja queixa
manifesta mostra-se relacionada às chamadas “patologias do vazio”. Tais
inquietações estão associadas às experiências afetivas, à autoestima e às
escolhas inerentes à fase que antecede a vida adulta. Por vezes, essas
vivências vinculam-se à depressão e constitui um risco importante, que
exige um olhar atento, uma focalização da angústia em especial, a criação de
um espaço de contenção, a partir do qual possa ser criada a possibilidade de
novos contatos com o mundo interno e ressignificar as experiências que
possibilitem a melhor utilização dos recursos emocionais.
Em análise, as experiências patológicas de solidão e desamparo encontram,
nesses processos, possibilidades de simbolização que venham a dar sustentação á angústia vivida frente á sensação de ausência e de vazio. A condição da solidão ao encontro se estabelece como eixo em torno do qual as vivências transferenciais ocorrem e o processo analítico evolui. No transcurso da experiência analítica, a vivência da solidão pode ser transformada. Ela se dá através de sucessivas situações de separações e de fortalecimento do vínculo, as quais contribuem para que a associação entre solidão, tédio e desamparo possa dar lugar a uma experiência de solidão, na qual a capacidade criativa possa substituir o vazio e a confiança no vínculo e na capacidade de ar e receber afeto resgate o indivíduo do sentimento de desamparo.
Em alguns momentos a solidão é uma experiência necessária, que
possibilita o pensar, a reflexão, a introspecção, a diferenciação, o sentir, o
fantasiar, o criar e o elaborar. O sofrimento psíquico é o elemento comum a
todas as formas de solidão que constituem sintomas e demandam uma
abordagem. No trabalho analítico, a possibilidade de lidar com as
experiências de solidão e desamparo, por vezes traduzidas em termos de
experiências traumáticas, demanda do analista uma condição de estabelecer
a possibilidade de recuperar a representação inconsciente, vinculando-a ao
afeto correspondente e, ao mesmo tempo, permite a criação de uma nova
inscrição geradora de uma nova subjetividade. Esta parecer ser a tarefa que
temos a enfrentar diante da demanda das situações que se apresentam na
clínica. Concluo com as palavras de Kahn (2000, p.36), que tão bem
descrevem nossa tarefa:
A tarefa terapêutica que herdamos de Freud, a qual consiste em criar um ambiente onde o outro, a partir de sua carência e de sua incapacidade, poderia crescer e aprender a testar e a experimentar tudo aquilo que até então era uma tentativa de auto-cura emudecida, ferida e vingativa, a fim de transcendê-la em direção à verdadeira capacidade de confiar-nos outros e de personalizar a si mesmo, sem mais sentir-se ameaçado nem pela aniquilação nem por aquela submissão conivente representada pela definitiva dissociação do verdadeiro eu.
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