Imagem Narcisista

As Múltiplas Faces de Narciso – Kátia Barbosa Macêdo

Narciso’s Multiples Faces
Las Múltiplas Faces de Narciso

Resumo

Narciso’s Multiples Faces Las Múltiplas Faces de Narciso

Kátia Barbosa Macêdo1 Pontifica Universidade Católica de Goiás

O presente artigo objetiva discutir o narcisismo como conceito teórico e apresentar alguns fragmentos de sessões para ilustrar o fenômeno na clínica psicanalítica. Está dividido em duas partes. A primeira contextualiza o desenvolvimento teórico sobre o tema, partindo de Freud, e com as contribuições de outros autores. Apresenta ainda as principais características da dinâmica psíquica dos pacientes narcísicos, visando a auxiliar na identificação desses conteúdos pelo analista, na transferência. Na segunda parte são apresentados fragmentos de sessões analíticas de quatro pacientes que possuem dinâmica psíquica com traços predominantemente narcísicos, ilustrando a emergência do fenômeno na clínica analítica.Seguem-se as considerações finais.

Palavras-chave: narcisismo, clínica psicanalítica, características narcísicas.

Abstract

This article seeks to discuss the narcisism as a theoretical concept, and presents some fragments of sessions to illustrate the phenomena in psychoanalytical clinic. It has been divided in two parts. The first one presents the concept of narcisism and its development, beginning with the Freud’s contributions and therefore with other authors. The article also presents some characteristics of psyquic dynamics of narcissistic’ patients, to help analysts to identify the process into clinical setting. In the second part some psychoanalytical sessions’ fragments are presented of four patients to illustrate the psyquic dynamics of narcissist patients.

Key-words: narcisism, psychoanalytical clinic, some characteristics.

Resumen

El presente artículo visa a presentar la discusión a cerca del narcisismo como término teórico, y aún presentar fragmentos de sesiones psicoanalíticas visando ilustrar el fenómeno en la clínica. Está dividido en dos partes. La primera presenta el desarollo del concepto narcisismo, partindo de Freud, y con las contribuciones de otros autores. Presenta aún los principales rasgos de la dinámica psíquica de los pacientes narcísicos, visando facilitar la identificación de estos contenidos por el analista, en la transferéncia. En la segunda parte, son presentados fragmentos de sessiones psicoanalíticas de cuatro pacientes con predomináncia de aspectos narcisistas en su dinámica psíquica, visando facilitar al analista su identificación en la clínica.

Palabras-lhaves: narcisismo, clínica psicoanalítica, rasgos narcisistas.

Introdução

Contra o sofrimento que pode advir dos relacionamentos humanos, a defesa mais imediata é o isolamento voluntário, o manter-se à distancia das outras pessoas (Freud, 1929: 96).

A configuração da família moderna se estrutura a partir das novas divisões de tarefas entre pais e filhos; a entrada da mulher no mercado de trabalho cada vez mais competitivo e a condição pós- moderna da sociedade capitalista ocidental são alguns aspectos que contribuem para que o individualismo, a dificuldade de estabelecer vínculos afetivos e o culto à imagem sejam algumas das características que marcam a identidade dos pacientes. A indústria cultural e as estratégias publicitárias atuam no sentido de levar as pessoas a aumentar o nível de exigência em relação à aparência física, diminuir a capacidade de tolerar frustrações e lidar com limites, ou seja, há toda uma estimulação para que as pessoas fiquem mais isoladas e voltadas para si mesmas.

Em nossa sociedade atual, há uma exigência de que as pessoas se mostrem sempre independentes e autônomas. A idéia do descartável para produtos e serviços parece se estender também às relações interpessoais. O sensacionalismo, a invasão de privacidade das pessoas e a banalização dos sentimentos fazem, na sociedade pós-moderna, a apologia do efêmero, do vazio e da falta de referências.

Não é de se admirar uma civilização que cultiva ambições desmedidas, que louva a exigência de uma responsabilidade global do indivíduo pelo casal,pela família, pelas instituições sociais, o que encoraja passivamente a abolição de todo sentimento dos limites nos êxtases artificiais procurados nas drogas químicas e de outros tipos, o que expõe a criança, cada vez mais filho único, à concentração traumatizante sobre ele do inconsciente de seus pais nos limites de um lar cada vez mais restrito em número de participantes e em estabilidade. (Anzieu, 1989: 8)

Apresento abaixo três situações que indicam que nossa cultura transmite, cada vez mais, a idéia de vínculos descartáveis, superficiais, e dessa forma dificulta o estabelecimento de relações afetivas que proporcionem vivências de confiança e esperança.

Em uma conversa entre dois jovens numa academia de ginástica, eles apresentavam a versão moderna da Bela Adormecida para o século XXI: “Num belo dia, a princesa chegou para o príncipe e disse: Meu amor, eu te amo tanto, vamos nos casar?” O príncipe rapidamente respondeu que não.” E viveram felizes para sempre, cada um sozinho no seu canto.

Em outra conversa, agora entre dois irmãos, uma menina com seis anos e seu irmãozinho de quatro, também chama a atenção. A menininha, toda romântica, olhando para o céu, disse: “Quando eu crescer, quero me apaixonar, me casar e ter dois filhos.” O irmão, ao ouvir o sonho da irmã, disse quase automaticamente, quebrando todo o romantismo da situação: “Mas antes tem que passar num concurso, porque mulher hoje tem que ganhar o próprio dinheiro e não depender de marido para nada.”

Outra situação também exemplifica isso: um paciente com 36 anos, após se separar da esposa, reclamava que estava cansado de ficar com várias garotas, e tinha dificuldade de aceitar aquilo que realmente desejava era se envolver, namorar e se apaixonar novamente. Ao comentar com algunscolegas sua intenção de namorar sério e se casar, ficou surpreso com a sugestão deles aconselhando-o a deixar de ser bobo, que deveria era aproveitar e se esbaldar com várias garotas, que a idéia de se casar novamente não combina com os novos tempos do ‘ficar’ sem compromisso.

As situações relatadas acima indicam a necessidade de nos debruçarmos sobre o tema do narcisismo, tarefa premente para o psicanalista, que recebe cada vez mais pacientes comprometidos em suas relações primárias, ou seja, com danos narcísicos importantes.

O presente artigo não tem como objetivo discutir o desenvolvimento teórico do narcisismo, até porque isso já foi realizado anteriormente de forma profunda e exaustiva por vários autores. Para uma revisão completa, o leitor poderá consultar Prado (1988), obra que discute o tema de forma aprofundada e ainda ver os trabalhos de Rezze, Alves, Forlenza Neto & Nogueira (mimeo, s.d.) e de forma mais sucinta, Roudinesco & Plon (1998).

Narcisismo ou narcisismos: múltiplos olhares

A questão do narcisismo vem sendo trabalhada em psicanálise dado sua importância para compreensão da dinâmica psíquica dos vínculos, necessários para que se desenvolva o processo psicanalítico. A construção de nossa auto-estima, o cuidado que temos como nós mesmos e a possibilidade de sentirmos que temos força para lidar com os problemas são fundamentais para nosso desenvolvimento.

Como Freud nos ensinou, o narcisismo secundário constitui um movimento de desinvestimento em objetos externos e investimento no próprio Ego, que utiliza vários mecanismos defensivos primitivos, que a pessoa lança mão para sobreviver no enfrentamento da angústia. A ocorrência do fenômeno indica que houve uma desistência da relação de objeto que pode ser decorrente da frustração vivenciada no vínculo primitivo, e que deixou marcas profundas na psique, vivenciadas como buracos, faltas, morte.

O termo narcisismo já era utilizado por outros autores anteriores a Freud, como Binet, Ellis & Nacke, conforme Roudinesco (1998). O termo refere-se ao mito de Narciso, significando o amor pela imagem de si mesmo. Para ela, até o final do século XIX, o 

termo era utilizado para designar uma perversão sexual caracterizada pelo amor dedicado pelo sujeito a si mesmo, e trazia uma concepção do narcisismo compreendido como patológico.

Foi a partir de seu uso por Freud que o termo passou a figurar na teoria psicanalítica como um conceito importante. Partindo dos trabalhos de Prado (1988), Rezze e outros (s.d.) e de Roudinesco e Plon(1998) elaborei um quadro que apresenta os principais textos que abordam o tema segundo Freud.

Freud utilizou primeiramente a palavra narcisismo em uma nota acrescentada em 1910 no texto Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade e em 1910, em seu ensaio sobre Leonardo da Vinci, e no caso Schreber em 1911. Nessa primeira fase, considerava o narcisismo como um estágio normal da evolução sexual. Em 1914, com a publicação do texto Sobre o narcisismo: uma introdução, o termo adquiriu o status de conceito. No referido trabalho houve uma superação da compreensão do fenômeno sob a ótica do auto-erotismo e o narcisismo foi abordado por Freud como um atributo de toda criatura viva, como um complemento libidinal do egoísmo do instinto de autopreservação.

Freud comentava que havia, para o bebê, dois objetos sexuais: ele próprio e a pessoa que cuidava dele. Postulava a existência de um narcisismo primário como fenômeno universal e normal. Nos ensaios de 1913, 1914 e 1915, considera o narcisismo como um estádio do desenvolvimento do indivíduo, que seria o complemento libidinoso do instinto de conservação. O bebê nasce em uma situação de total dependência de sua mãe ou substituta. No início, não diferencia o que é ele mesmo e o que não é, portanto, não percebe que ele e a mãe são pessoas diferentes. Quando percebe que nem a mãe nem o mundo são extensões dele mesmo, experimenta angústia, medo e estranhamento. Diante dessa angústia sentida como enorme, e com um Ego ainda tão pouco estruturado, o bebê utiliza mecanismos de defesas primitivos como a negação e o isolamento para lidar com esseprimeiro dano narcísico, e às vezes utiliza como defesa a fuga do vínculo. Diante da frustração, o bebê retira a libido ligada a outros objetos e a retorna para si mesmo, sendo que esse movimento se configura como o narcisismo primário. Nas relações de objeto narcisistas, as defesas contra o reconhecimento da separação entre eu e o objeto, constituem parte predominante.

Apesar de ser vivenciada de forma traumática pelo bebê, essa etapa é fundamental para o seu desenvolvimento psíquico, pois ele devenecessariamente superar a fase de indiferenciação entre eu – mundo, e conquistar a percepção de que ele, sua mãe e o mundo são coisas diferenciadas,conforme nos assegurou Mahler (1986).

O narcisismo secundário refere-se ao mesmo movimento de retorno da libido ao eu para se

defender da angústia, porém ocorre após a vinculação da criança com objetos externos a ela. Laplanche e Pontalis comentando a diferença entre narcisismo primário e secundário, afirmam que:

Se quisermos conservar a distinção entre um estado em que as pulsões sexuais se satisfazem de forma anárquica, independentemente umas das outras, e o narcisismo, em que o Ego na sua totalidade é tomado como objeto de amor, seremos levados a fazer coincidir a predominância do narcisismo infantil com os momentos formadores do Ego… O narcisismo primário designa um estado precoce em que a criança investe toda a sua libido em si mesma. O narcisismo secundário designa um retorno ao ego da libido retirada dos seus investimentos objetais….. Em Freud o narcisismo primário designa, de um modo geral, o primeiro narcisismo, o da criança que toma a si mesma como objeto de amor, antes de escolher objetos exteriores. Esse estado corresponderia à crença da criança na onipotência dos seus pensamentos. (Laplanche & Pontalis,2001: 288 – 290)

O narcisismo primário segue existindo durante toda a vida, em forma de ideal do ego. Freud utilizou a expressão ideal do ego para designar o modelode referência do eu, simultaneamente substituto do narcisismo perdido da infância e produto da identificação com as figuras parentais e seussubstitutos sociais. Enquanto instância diferenciada, o ideal do ego constitui um modelo a que o sujeito procura se conformar, conforme Roudinesco & Plon (1998) e Laplanche & Pontalis (2001).

À medida que o Ego se desenvolve, ele busca desenvolver o princípio da realidade e manter o funcionamento no processo secundário. Algumas das principais aquisições do Ego são: a criatividade, a capacidade de empatia; a capacidade para tolerar frustrações e gerenciar as demandas pulsionais, capacidade para aceitar sua própria finitude e limitações, o sentido de humor e a sabedoria. (Tais aquisições recebem a energia do narcisismoprimário). Conforme Rezze e outros (s.d.), um ‘pouco de narcisismo’ é necessário e inerente a todos para a própria sobrevivência, e fundamental para que a pessoa desenvolva sua capacidade de amar e ser amado, o que para Freud seria a melhor forma de superar esse movimento de voltar-se para si mesmo.

Nos trabalhos O Problema econômico do Masoquismo (1924) e Esboço de Psicanálise (1937), Freud sinaliza que quando há uma predominância de pulsões de vida no narcisismo, pode-se denominá- lo de narcisismo de vida. Ele se expressa em forma de auto-preservação; auto-estima; cuidado consigo mesmo e em movimento de busca por vínculos de amor. Porém, quando a predominância é das pulsões de morte, o narcisismo pode assumir formas ou se expressar em isolamento, sadismo, depressão, ou até, em casos mais extremos e comprometidos, em autismo ou suicídio. Essas expressões foram utilizadas por Green (1988) para indicar quando 

há a predominância, no narcisismo, de pulsões de vida, e também narcisismo de morte, quando o que predomina são as pulsões de morte.

Algumas contribuições de autores a partir de Freud merecem destaque, dentre eles Klein (1925, 1926, 1929, 1933, 1940, 1946 e 1952) e posteriormente Calich (1993) e Green (1988), pela ampliação em relação ao estudo do narcisismo.

Melanie Klein (1925 e 1926), a partir de seu atendimento de crianças e de psicóticos, desenvolveu uma abordagem que antecipava as relações objetais entre mãe e bebê. Para ela, essas relações objetais ocorrem desde o primeiro contato com o seio, e já contendo tanto as pulsões de vida como as pulsões de morte aglutinadas. Ela ampliou o que Freud já havia sinalizado sobre a incidência do sadismo na fase oral e anal.

Klein, ao postular a existência primária dessas relações de objeto, preferiu utilizar o termo ‘estados narcísicos’ ligados aos retornos da libido para objetos internalizados, rejeitando a idéia de narcisismo primário, conforme afirma Roudinesco e Plon. Fagundes (1993), afirma que para Klein osmecanismos defensivos primitivos básicos presentes

no narcisismo são: negação, cisão, identificação projetiva, onipotência e idealização. Essas defesas são organizadas para lidar com a angústia ligada à destrutividade da criança, que existe desde o seu nascimento.

Outros autores que ampliaram a abordagem sobre o narcisismo foram Calich, Levy e Ruggero (1993). Eles partiram da abordagem kleiniana e preferem utilizar o termo organização narcisista, explicando-o da seguinte forma:

Poderíamos dizer que a organização narcisista é uma estrutura relativamente estável, que se forma na personalidade a partir da organização de objetos internos maus e partes destrutivas do self. Esses se tornam idealizados pela parte libidinal e dependente do self com a função de obter proteção frente ao sofrimento psíquico experimentado diante da frustração ou da inveja, segundo o conceito de narcisismo destrutivo descrito por Rosenfeld em 1971. Esse sofrimento psíquico, nestes casos, é vivido como um sentimento de caos, diante do qual a única saída vislumbrada é a formação desta organização narcisista, com a entrega, ou conluioda parte libidinal do self à parte destrutiva da personalidade. A ameaça de perda dessa proteção


desencadeia no paciente aquilo que Meltzer em 1968 caracterizou como sentimento de pavor, e isso é o que explica o poder dessa organização dentro da personalidade. Esse mesmo conluio entre parte do self externaliza-se na relação do paciente com o analista. (Calich, Levy & Ruggero, 1993, p. 406)

Green (1988) ressalta que, no narcisismo, tanto pode prevalecer as pulsões de vida quanto as de morte. Quando há prevalência das pulsões de vida, pode- se denominá-lo de narcisismo de vida, e a pessoa demonstra uma boa auto-estima, capacidade de cuidar de si mesma, e ainda se percebe com forças para lutar e enfrentar as dificuldades da vida. No entanto, quando a prevalência é das pulsões de morte, a pessoa começa a trabalhar contra si mesma, atuando de forma violenta, com auto-sabotagem e destrutividade. A isso se denomina de narcisismo de morte.

Após essa breve explanação sobre o narcisismo, pode-se perceber que há várias concepções e delimitações relativas ao termo como: movimento narcísico; posição narcísica; narcisismo primário e secundário; narcisismo de vida e de morte, organização narcísica e estrutura narcísica, sendo que em maior ou menor grau eles indicam um investimento de libido em si mesmo.

Prado (1988) comenta que, ao reestudarmos o tema narcisismo, verificamos extensa diferenciação conceitual a respeito, sem haver consenso. Alguns o consideraram estado do self ou condição temporária; outros (Stolorow & Lachman (1983) e Kohut (1988) o tomaram como estrutura, indicando um modo de funcionamento da personalidade, incluindo sintomas, fantasias e sistemas defensivos organizados. Neste trabalho, ao utilizarmos os termos posição, estágio, movimento e dinâmica, indicarmos traços ou condição temporária, que estão presentes no funcionamento da personalidade, não indicando patologia. Quanto utilizarmos os termos organização e estrutura narcísica, indicaremos condição mais ou menos permanente, que sugere um comprometimento ou funcionamento patológico, como ocorre no autismo e na melancolia, por exemplo.

Essa subdivisão norteará também a apresentação dos fragmentos clínicos, sendo que os primeiros se posicionam no grupo de condição temporária ou traços, e os dois últimos indicam uma organização

e estrutura narcísica ligada as pulsões de morte predominantemente.

O narcisismo na clínica atual

Devido à forma como as crianças são recebidas e educadas atualmente, a maioria dos pacientes da clínica atual chega para o tratamento analítico com danos narcísicos profundos, o que faz com que seja esperada a emergência de conteúdos relacionados a vivências primitivas na interação entre paciente- analista.

Sabemos que a clínica psicanalítica representa a possibilidade de o paciente vivenciar com o analista, na transferência, sua dinâmica psíquica interna, com o objetivo de entrar em contato com ela e por meio do enfrentamento da angústia, resignificá-la. Winnicott (1954) comenta sobre a importância dos vínculos primitivos estabelecidos entre o bebê e sua mãe, e considera que são eles que possibilitam que o desenvolvimento continue. Para isso, deve haver uma mãe suficientemente boa, capaz de permitir e tolerar que o bebê projete nela sua frustração e o acalme. Para ele,

Não há possibilidade alguma de um bebê progredir do princípio de prazer para o princípio de realidade ou no sentido, e para além dela, da identificação primária, a menos que exista uma mãe suficientemente boa. A mãe suficientemente boa é aquela que efetua uma adaptação ativa às necessidades do bebê, uma adaptação que diminui gradativamente, segundo a crescente capacidade deste em aquilatar o fracasso da adaptação e em tolerar os resultados da frustração… Se tudo correr bem, o bebê pode, na realidade, vir a lucrar com a experiência da frustração. Não existe saúde para o ser humano que não tenha sido iniciado suficientemente bem pela mãe. (Winnicott, 1954: 25-30)

Quando, no curso de seu desenvolvimento, a pessoa enquanto bebê não vivenciou essa continência, fica um registro de vazio, de buraco, como se faltasse a esperança e a confiança na força dos vínculos e do amor. A tarefa da análise será construir um vínculo que possibilite a superação dessa falha. Quando a dupla consegue alcançar essa superação, o paciente passa a contar com um Ego com mais capacidade de lidar com a realidade e, portanto, não necessitando de se utilizar maciçamente de mecanismos defensivos, como fazia anteriormente.

Masud Kahn comenta que para lidarmos com pacientes que chegam para análise com uma demanda de falha nessas relações primitivas, o analista temcomo tarefa terapêutica:

{…} criar um ambiente onde o outro, a partir de sua carência e de sua incapacidade, poderia crescer e aprender a testar e a experimentar tudo aquilo que até então era uma tentativa de autocura emudecida, ferida e vingativa, a fim de transcendê-la em direção à verdadeira capacidade de confiar nos outros e de personalizar a si mesmo, sem mais sentir-se ameaçado nem pela aniquilação nem por aquela submissão conivente representada pela definitiva dissociação do verdadeiro eu”. (Kahn, 2000: 36)

Uma vez apresentados os desafios de se trabalhar com esses pacientes, surge o questionamento de como podemos identificar patologias narcisistas neles e o quê os caracteriza enquanto tal. É importante comentar que, dependendo da força da pulsão e do comprometimento da psique, é que vamos definir se o narcisismo pode ser considerado patológico ou não. Ao levantar características descritas pelos autores acima citados, percebemos que algumas delas são descritas de forma recorrente. São elas:

1- Ao mesmo tempo em que amam a si mesmos excessivamente, manifestam sentimentos de auto- desprezo, auto-humilhação, considerando-se muitas vezes impostores;

2- Apresentam combinações de ambição intensa, fantasias grandiosas, sentimentos de inferioridade e uma dependência enorme da admiração e do aplauso dos outros;

3-Sentimentos de tédio e vazio, sérias deficiências em sua capacidade para amar e preocupar-se com os outros;

4- Falta de empatia e insatisfação consigo mesmo;

5- Ainda há intensa inveja e defesas primitivas contra ela: desvalorização, controle onipotente; retraimento narcisista; splitting, identificação projetiva e idealização patológica onipotente e o retraimento narcisista.

6- Na gênese do desenvolvimento da personalidade narcisista, indícios da participação de impulsos agressivos intensos e da presença de uma mãe fria, super-protetora ou vivenciada como morta pelo bebê.

A não ser nos casos mais severos, há sempre nos pacientes narcisistas funções normais do Ego, aspectos realistas da representação de si mesmo que são mantidos e existem ao lado do self grandioso. O tratamento das patologias narcísicas, em função das características acima comentadas não é tarefa fácil, e exige do analista uma grande capacidade de tolerar ataques à sua função analítica. Os pacientes que apresentam patologias narcisistas adotam uma atitude de superioridade, que funciona como uma muralha difícil de ser examinada por trás da qual se escondem a hostilidade e a inveja do paciente. Esses sentimentos são negados para que não possa haver a ruptura da couraça narcisista.

Uma das razões que leva a essa atitude de superioridade do paciente narcisista é a ansiedade paranóide, que se origina no temor de depender do analista-mãe e vir a sofrer com isso. Quando a auto- idealização se rompe e o paciente percebe as qualidades do objeto, surgem sentimentos intensos de inveja, e ele se apresenta como indiferente a qualquer ameaça de perda do objeto. Essa indiferença vem acompanhada de uma fantasia de que é independente e autônomo afetivamente, negando assim sua dependência do analista. É comum que haja desvalorização e desdém pelo analista, desapontamentos e retraimento narcisista.

A ocorrência do insight no narcisista é seguida por desolação, por se sentir incapaz de superar sua onipotência e arrogância e também por medo de superar estes sentimentos e se sentir despojado deles. O paciente sente como se o fato de mudar ou receber ajuda de outra pessoa significasse debilidade sua, o que lhe dá uma sensação de fracasso.

Deve-se comentar que o ônus pago pelo analista para trabalhar com esses conteúdos não é pequeno e há registros de grandes dificuldades vivenciadas pelos analistas de pacientes que apresentam essa dinâmica. Na contratransferência, é comum a emergência de sentimentos de derrota e mágoa, e defesas contra eles. Calich, Levy & Ruggero advertem que:

Os sentimentos despertados no analista frente à manifestação da parte destrutiva do paciente podem ser de diferentes tipos. Assim, poderemos observar no analista um temor à parte destrutiva do paciente, bem como o despertar de fantasias destrutivas nele próprio. A ação da parte destrutiva pode também mobilizar no analista sentimentos de outra ordem tais como impotência, nulidade, paralisia, desinteresse, rechaço, distanciamento afetivo, etc. (Calich, Levy & Ruggero, 1993, p. 418).

Uma vez descritas as características e os cuidados para se trabalhar com os aspectos relacionados ao narcisismo nos pacientes, iniciamos a segunda parte do texto, que tem como objetivo apresentar alguns fragmentos de sessões de análise de quatro pacientes: Cauã, Angélica, Maria e Isadora, que ilustram a emergência do narcisismo na clínica.

Primeiro fragmento: Angélica e o ‘carro do Batman’

Angélica é uma paciente de 39 anos, casada, mãe de dois filhos, profissional liberal. Nesse fragmento, Angélica revela seu movimento narcísico de fechar- se em si mesma como defesa diante da angústia e do medo de perder o controle.

Angélica chegou, cumprimentou-me e se deitou no divã. Então, disse:

P- “Nessa semana fiquei muito envolvida em organizar as coisas para a mudança para o novo apartamento. Olhei sofá, tecidos, tapeceiros, etc. Sabe,eu estava toda animada, e fui mostrar as opções para o meu marido dar a opinião. Eu até já imaginava que ele ia acabar reclamando, e foi assim mesmo. Ele olhou muito rapidamente e disse que estava preocupado, para que eu não ficasse inventando muita coisa não, porque o dinheiro que tínhamos guardado era pouco, e que não podia acabar. Ao ouvir isso, parece que o meu medo se confirmou, então, eu fui pegando os papeizinhos, colocando dentro do envelope, guardando e fiquei calada, com raiva e distante. Sai de perto. Então, ele percebeu e veio me abraçar, dizendo que íamos escolher” (Silêncio) 

A – É, isso me faz lembrar o carro do Batman, do filme, sabe? Ele tem um dispositivo de segurança que quando o Batman aciona o botão, ele se recobre de uma capa blindada, e ninguém consegue abrir, só o Batman.

P- “É, eu fiquei na minha, achando que podia dar conta sozinha, que não devia confiar em ninguém, que poderia me dar mal. Mas agora, quando acontecem coisas como a discussão com meu marido, fico com tanta raiva, e o pior é que não conseguimos resolver: no final, ou as coisas ficam como eu quero ou como ele quer, e com o outro achando ruim…”

A – Fico pensando se haveria uma forma de antes de apertar o botãozinho, apressadamente, seria possível pensar, esperar um pouco, negociar, voltaratrás. Quem sabe fazer diferente, descobrir o nós, o nosso …

Nesse fragmento, fica clara a tentativa de Angélica para enfrentar sua angústia, suas dores, seu medo da solidão e sua impotência. A emergência de conteúdos primitivos contribuiu para a repetição na relação com a analista. Quanto mais ela entrava em contato com esses conteúdos, mais dificuldade de se aproximar da analista ela demonstrava. Começou a faltar a algumas sessões, deixando a analista esperando. Assim conseguiu me comunicar como se sentia abandonada, e o quanto isso era doloroso para ela. Apesar das dificuldades, continuamos nosso trabalho.

Segundo fragmento: A Tatuagem de Cauã

 

Cauã tinha 37 anos quando iniciou sua análise . Divorciado e tinha uma filha de 8 anos. Buscou a análise para autoconhecimento e em função daangústia que sentia.

Chegou, deitou-se no divã e contou que quando ficou noivo, fez uma tatuagem com um crucifixo e as iniciais dele e dela

A- O que significou para você fazer a tatuagem?

P- “Eu achava lindo ver tatuagem nos outros, mas todos os desenhos que olhava não tinham a ver comigo, então eu achei que esse teria, que significaria que nosso casamento seria para sempre. Quando meus amigos me questionavam, eu respondia: as marcas deixadas por um casamento seriam mais profundas do que as deixadas na pele por uma tatuagem.”

A- Você simbolizou isso ao fazer a tatuagem…

P- É, apesar de ter medo da dor, fui lá e fiz. Era pequena e escondida. Quando minha filha nasceu, fui lá e fiz uma com o nome dela. Ficou linda.

A- E hoje você me disse que um dos motivos de sua tristeza era a tatuagem…

P- Pois é, quando me separei, tive que decidir. Ou apagava a tatuagem antiga e ficaria com uma marca pequena ou faria uma outra tatuagem para tampar a anterior. A única que deu para tampar a tatuagem anterior foi a de um dragão enorme, que chama a atenção, e agora fico incomodado com ela, querendo esconder dos outros. 

A- Uma marca na pele tamponando uma dor na alma, incomodando.

P-Eopioréqueoquemaismeincomodaéa parte preta que tampa a tatuagem antiga..

A- A parte preta pode até tampar uma tatuagem antiga, mas não consegue apagar a dor da separação. ( a parte preta poderia simbolizar a depressão e o luto ligado à tatuagem).

Anzieu (1989, p. 44-45 ) comenta que “ dentre as várias funções, a pele representa um lugar, um meio primário de comunicação com os outros, de estabelecimento de relações significantes, e, além disso, é uma superfície de inscrição de traços deixados por tais relações”.

O fragmento de sessão demonstra que o movimento de Cauã buscar inscrever sua relação na pele em forma de tatuagem teve um significado de “guardá-la”, mas quando houve a separação, ao fazer outra tatuagem em forma de um dragão enorme, ele se utilizou de uma defesa narcísica. Ao tatuar um enorme e poderoso dragão exatamente para encobrir o registro amoroso de sua família, ele atuou reativamente à dor da separação e ao sentimento de desamparo.

Bateman (2000) comenta que há os narcisistas de pele grossa, que são os mais resistentes e de difícil acesso, e que há os narcisistas de pele fina, que são mais frágeis e vulneráveis. Cauã, pelo fragmento demonstra se incluir no tipo de narcisista de pele fina.

Terceiro fragmento: A despedida de Isadora

Isadora tinha 42 anos quando me procurou, era casada e mãe de três filhos. Buscou a análise para trabalhar sua angústia e depressão. No período de um ano, trabalhamos seu ódio diante da angústia de separação. Isadora desenvolveu desde criança uma dinâmica defensiva que consistia em negar seu desamparo e mostrar-se, de forma reativa, como independente e autônoma.

O terceiro fragmento que apresentarei é de uma sessão que ocorreu após o recesso de férias. No retorno houve mudança no valor da sessão e alterações dos horários e dias da semana. Esses elementos provavelmente fizeram-na sentir-se muito ameaçada. Tentamos trabalhar isso em várias sessões, porém essa foi escolhida por indicar a força da reação terapêutica negativa, pois foi nossa última sessão, onde ela interrompeu o processo de análise comigo.

Isadora chegou atrasada, deitou-se no divã e disse, com muita raiva, falando alto e muito depressa, como se estivesse descarregando um peso:

P – “Cheguei atrasada de novo hoje porque apertei o oitavo andar, quando vi que estava lá, tive que subir dois andares a pé. Já é a terceira vez que faço isso…. Também comecei a ficar com saudades da minha ex- analista, têm alguns conhecidos que estão com ela, e quando comentam algo, fico com uma inveja…. Eu sei que após 3 anos de análise, e com toda a minha resistência, chegamos à conclusão que deveríamos dar um tempo, para eu usar o dinheiro para o meu marido fazer análise também. Então ele começou a fazer. Quando as coisas melhoraram, eu cedi minha vez para minha filha que estava me dando muito problema. Foi aí que conversei com uma colega e pedi que me indicasse alguém que cobrasse barato, tivesse um consultório perto de minha casa para eu me obrigar a vir. Sinto que preciso fazer análise, mas com ela foi muito difícil, então eu vim aqui….”.

A – Então você optou por uma analista que valia no máximo oito (oitavo andar), e não dez (como a outra que era mais cara – em preço e apreço, pelo jeito). Me ocorreu que essa seria sua forma de me dizer que está com muita raiva de mim, pelo recesso de férias, pela mudança no valor e no número de sessões… Assim, me dá oito, e não dez..

P- “Eu não tinha pensado nisso…. engraçado, que quando eu anotei nossos horários na minha agenda, anotei do mesmo jeito que anoto dos pacientes que atendo.”.

A – Interessante me colocar em sua agenda como sua paciente: assim, ao mesmo tempo em que paciente é quem tem paciência, também é alguém que na situação com você, fica sob seu controle….

P – “É…. eu precisei muito de você nas férias…” (com raiva)

A – E isso te mobilizou muito. Enquanto eu estava de férias, você aqui, precisando de mim, se sentindo abandonada. Interessante você sentir saudades da outra analista exatamente neste período….

P- “É, e depois de pensar muito, eu decidi que hoje é a nossa última sessão, que estou com saudades da outra analista, e que vou procurá-la.”

(Com muita raiva, levantou-se do divã, pegou a bolsa, perguntou quanto me devia, fez um cheque, despediu-se e saiu, com atitude de arrogância e independência, como se estivesse se sentindo vingada.)

Provavelmente Isadora vivenciou o recesso de férias e a mudança no valor das sessões com algo muito ameaçador, uma revivência de sua relação com a mãe, vista por ela como uma mãe injusta, que a explorava e depois a abandonava. Quando ela diz que sentiu falta da análise nas férias, comunica que se sentiu abandonada. Então, se lembrou da analista anterior, como forma de se vingar da analista, uma reedição da lei de Talião: “olho por olho, dente por dente; ou seja, abandono por abandono…

Se considerarmos a descrição clínica acima como emergente de uma experiência narcísica, alguns dados nos chamam atenção nessa paciente: sua ansiedade de separação e seu desejo de retaliação, expressos na tentativa de controlar a analista; mecanismos de negação; componentes de arrogância e negação da dependência; despojamento invejoso da pessoa do analista. Verificamos que a paciente se exibe arrogantemente, desfazendo da analista, como forma de lidar com sua inveja; ressentimento e ódio pelo abandono que sentiu no período de recesso de férias. Sentiu-se tão ameaçada que decidiu interromper o processo de análise.

Quarto fragmento: Maria e o seu sonho de ‘sumir do mapa’

Maria, 32 anos, casada e mãe de um menino de oito anos. Sofreu uma situação de abandono afetivo de sua mãe e pai, que teve como conseqüênciasgraves danos narcísicos. Quando chegou à análise apresentava depressão, usava medicamentos e havia feito uma tentativa de suicídio no ano anterior, como relata no trecho abaixo.

P – É, já te contei o que aconteceu no ano passado, com os remédios de minha mãe. “No final do ano passado, peguei uma caixa de Rivotril da minha mãe e tomei vários comprimidos. Fiquei 3 dias fora do ar, meu marido me levou num médico psiquiatra que deu uma receita. Eu não queria morrer, só dormir e esquecer de tudo, ficar longe de tudo.”

Esse material ilustra especialmente o movimento narcísico da paciente, que busca na tentativa de suicídio uma forma de se apartar da realidade, e também uma forma de comunicar a predominância das pulsões de morte, aliadas ao movimento de desligamento dos vínculos exteriores.

Green (1988a e 1988b) afirma que quando a pessoa usa a defesa narcísica, há uma descatexia em relação ao objeto externo e uma catexia dos objetosinternos. Comenta que encontrou na clínica várias pacientes deprimidas que tinham mães também deprimidas, o que dificultou ou impossibilitou a formação de um vínculo primitivo entre mãe e bebê (positivo ou continente). Assim, a criança vivenciou sua mãe como uma mãe morta, e se identificou com ela. Ao se identificar com essa mãe morta, também levou para dentro de si o registro de uma falta, de um buraco, um vazio. Esse núcleo depressivo se organiza com um tríplice objetivo: manter o ego vivo; reanimar a mãe morta e rivalizar-se com o objeto de abandono dela na triangulação primitiva.

A depressão surgiu como defesa diante dessa angústia de morte. O desamparo, o desespero, a angústia relativa e a falta de fé de encontrar na relação com alguém um mínimo de acolhimento são os componentes do quadro vivenciado por Maria.

Percebe-se na fala de Maria alguns aspectos que sugerem uma predominância das pulsões de morte,evidenciando narcisismo de morte, conformeGreen (1988): auto-imagem denegrida; sentimento de tédio e vazio, insatisfação consigo mesma, ataque ao vínculo e dependência, pois o vínculo de dependência é sentido como ameaçador.

Os fragmentos ilustram como a dinâmica psíquica do paciente com traços narcísicos dificulta a construção de um vínculo que possibilite a revivência de seus traumas psíquicos e sua ressignificação. Na análise, Maria lidava com conteúdos relacionados

a competição, inveja, e a identificação projetiva era um modo particularmente utilizado por ela para me comunicar o terror ao entrar em contato comsuas partes denegridas… A situação toda pode ser vista como uma seqüência de tentativas de afastar a percepção que lhe traz uma visão de si que é dolorida, pois propicia a emergência da inveja, auto-estima denegrida, depressão, indicando ódio à realidade interna. Marucco (2007:121-23) afirma :

A repetição se traduz também no social e no cultural, como efeito de um trauma que, ao não encontrar possibilidade de representação e elaboração, reaparece e se atualiza em um retorno ao mesmo, ao idêntico…. As repetições marcadas pela pulsão de morte deixam um sulco em certa naturalização como destino… Nos primórdios do nascimento do psíquico, inaugura-se a relação dialética entre a pulsão e o objeto. A repetição traria à luz as marcas dessa relação, com suas transformações, suas obstruções, sua articulação particular com o traumático e com aquilo que está além do trauma: o vazio, a ausência, o nada. Diante da impossibilidade de subjetivação desse trauma, o sujeito parece ficar agarrado ao destino, a esse tempo retido, coagulado na repetição daquelas marcas primeiras do que se poderia chamar de psíquico-pré-psíquico, cristalizado nesse núcleo em que se condensam as configurações específicas da pulsão com as primeiras identificações, e onde se encontram as chaves daquilo que se expressa na clínica

Assim, ao mesmo tempo em que a repetição ocorre como forma de reafirmar a defesa, também traz junto a esperança de alguém perceber e ajudar a transformar o trauma. Garcia-Rosa (1997, 2003) também compartilha dessa dupla função da repetição em análise.

Considerações Finais

O objetivo deste texto foi abordar a questão do narcisismo e apresentar fragmentos de sessões analíticas, de forma ilustrativa, para propiciar materialque exemplificasse a emergência do fenômeno.

Se considerarmos que nossa cultura e sociedade estimulam o individualismo, a competitividade e o isolamento, a proposta de a psicanálise trabalhar o narcisismo, por si só já se reveste de um caráter contestador, irreverente e crítico. Ela se coloca a serviço da emancipação e “des-alienação” do paciente.

Conforme já foi assinalado, pacientes que apresentam essa dinâmica exigem do analista uma continência para que esses conteúdos possam ser projetados, trabalhados na transferência e ressignificados, para que o Ego desenvolva então, tolerância à frustração. Isso só é possível quando houver um registro de que “vale a pena esperar, que no lugar da morte, virá auxílio”. Quando o registro da esperança superar o desespero do terror sem nome, então se pode pensar em des envolvimento da psique.

Se conseguirmos formar um vínculo, auxiliando

o paciente a ressignificar sua dor psíquica ligada aos danos narcísicos de suas relações primitivas, talvez consigamos auxiliá-lo a desenvolver um Ego que seja capaz de tolerar melhor as frustrações da realidade. E então, ele, podendo lidar melhor com a realidade, possa entrar em contato com seu desamparo (nossa condição humana), de forma menos persecutória. 

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Recebido: 24/05/2010 Última Revisão: 29/11/2010 Aceite Final: 06/12/2010

Sobre a autora:

Kátia Barbosa Macêdo – Graduada em Psicologia, Especialista em Psicologia Analítica pela Universidade Católica de Goiás; Especialista em Dinámica de Grupos pela Universidad de Comillas-Espanha, Master em Psicología pela EAE-Barcelona , Mestre em Educação pela Universidade Federal de Goiás e Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pesquisadora e professora titular da Pontifícias Universidade Católica de Goiás. Membro do Instituto de Psicanálise Virgínia Leone Bicudo da SPB e Núcleo de Psicanálise de Goiânia, filiada A IPA – International Psychoanalitic Association
Telefones (62) 3532 7002, (62) 99738495;
E-mail: katia.macedo@cultura.com.br

 

Publicado na Revista Psicologia e Saúde, p.65 – 75, 2010.

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